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“Que horas ela volta?” e a noção de que nenhuma pessoa é naturalmente inferior

Finalmente assisti “Que horas ela volta?”, dirigido pela paulista Anna Muylaert. A cineasta tem “É proibido fumar”, “O ano em que meus pais saíram de férias” e “Durval Discos” em sua filmografia, entre outras obras, e foi roteirista de séries de televisão que marcaram a minha infância, como “Mundo da Lua” e “Castelo Rá-tim-bum”. Eu tinha expectativas altas. Andei lendo bastante sobre o “Que horas ela volta?”, que está sendo muito bem recebido não só aqui no Brasil, mas em diversos países – o filme ganhou prêmios nos festivais de Sundance e Berlim, e está cotado para representar o Brasil no Oscar de 2016.

E fico feliz em dizer que minhas expectativas não foram frustradas. Mais do que isso, saí da sala de cinema com lágrimas nos olhos. Aviso que, a partir daqui, vou postar diversos spoilers no texto. Caso ainda não tenha visto o filme, se liga.

“Que horas ela volta?” mostra o dia a dia da pernambucana Val – interpretada por Regina Casé – como empregada doméstica na casa de uma família tradicional e classe média alta que mora em Morumbi, bairro nobre da cidade de São Paulo. Tem mais de uma década que ela trabalha na casa de Bárbara e Carlos – Karine Teles e Lourenço Mutarelli respectivamente – e cuida do filho deles, Fabinho (Michel Joelsas). E é aquela história que nós, brasileiros, conhecemos bem: “ela é como se fosse da família”, mas mora em um quartinho minúsculo e abafado, não pode tomar o sorvete caro dos patrões e mal teve tempo de ver a própria filha crescer, porque estava ocupada cuidando do filho de outra pessoa. No entanto, tudo funciona bem dentro de casa, por meio de uma estrutura frágil em que ninguém realmente se aproxima mas mantém uma aparente relação de afeto e cordialidade. Dessa forma, as hierarquias se neutralizam por meio da naturalização das diferenças – tem gente que nasce pra servir, e tem gente que nasce pra ser servido, tipo isso, sacou?

A empregada doméstica Val, interpretada por Regina Casé no filme

A empregada doméstica Val, interpretada por Regina Casé

Ninguém move um dedo dentro de casa: é Val que coloca pratos na mesa e depois tira, prepara café da manhã, leva isso, leva aquilo, e assim vai. Algumas pessoas podem dizer que, ah, esse é o emprego dela. Mas será mesmo que é um sistema justo esse de servir uma família inteira o dia todo até mesmo em tarefas simples que uma pessoa poderia muito bem executar sozinha? E que tipo de emprego é esse em que uma pessoa “praticamente da família” simplesmente não tem demandas predefinidas e, por um salário fixo (e geralmente baixo), se encarrega de cozinhar, limpar, lavar, cuidar de pessoas, animais, plantas, ser garçonete em festas e tudo mais o que aparecer pela frente? Fica a reflexão.

Ainda assim, tudo segue tranquilamente, até que Val recebe uma notícia: sua filha Jéssica (Camila Márdila), que ela não via há anos, quer prestar o vestibular para a Universidade de São Paulo (USP), a mesma que Fabinho vai tentar ingressar – aliás, o diminutivo no nome do personagem mostra a pessoa que ele representa: o menino rico, branco, extremamente privilegiado e superprotegido. Ele não chega a ser uma má pessoa, e em alguns momentos é até carismático (apesar de bobão), mas é totalmente blindado, ignorante em relação à realidades diferentes da dele, e também mimado e passivo.

E isso é uma coisa forte no filme, aliás, ninguém ali é mau em um sentido óbvio e explicitamente violento, e considero isso um dos métodos que pessoas “de bem” utilizam para perpetuar relações de dominação e exploração. Tudo isso se relaciona com o que eu já falei antes, da naturalização de que existem pessoas inferiores às outras para a manutenção do status quo. Um grande passo para manter uma pessoa dentro do ciclo de pobreza, por exemplo, – e consequentemente torná-la mão-de-obra barata e servil – é fazê-la assimilar essa ideia de que só alguns são capazes, e ela não está entre esses alguns, bem como o de retirar suas possibilidades de autonomia e crescimento com excesso de atividades braçais e/ou mecanizadas mal renumeradas e com pouco tempo para lazer ou estudo.

No entanto, quando Jéssica chega, ela sacode os laços fracos que unem as pessoas e as certezas daquela casa. A família toda se espanta por ela – a filha da empregada – ser ~inteligente~ (de modo formal e “intelectualizado”, digamos), ambiciosa e querer, veja só, estudar arquitetura. Todos concluem que o curso é difícil e ela vai ter que ralar para passar no vestibular, e o menino ainda zomba o sotaque nordestino dela. Porém, a descrença alheia não afeta Jéssica. Ao contrário de Val, ela não demonstra acreditar na veracidade dos papeis hierárquicos e, de repente, a garota logo migra do quartinho da mãe para o quarto de hóspedes da casa e ainda pula na piscina da galera – piscina que Val, por ter introjetado o seu devido lugar na hierarquia daquele lar, nunca ousou entrar.

Porém, Val não tem culpa de sua subserviência, ainda que isso irrite Jéssica. Para sobreviver, – e mandar dinheiro para a filha, que estava sendo criada por outra pessoa em Pernambuco – ela precisou trabalhar anos como empregada doméstica e, devido aos ajustes sociais e econômicos da profissão que precisou exercer, acabou vivendo para aquela família, sem contato com a sua própria. É muito mais fácil cair na armadilha de se inferiorizar quando não se tem escolhas. Jéssica, embora tenha se sentido abandonada pela mãe e sofrido as consequências dessa ausência, teve mais condições – pelo menos em relação a Val – de desenvolver melhor a própria individualidade. Mesmo sendo pobre, sua intelectualidade acaba sendo um valioso capital dentro daquele espaço – e uma prova de que pessoas de diferentes realidades são capazes, o que muda são as oportunidades dadas à cada uma.

Desde a chegada de Jéssica, Carlos fica de olho nela. Em um determinado momento, ele convida a jovem para almoçar com ele, na mesa da sala – lugar que Val considera um ultraje a filha da empregada estar. E ela não apenas senta ali, como recusa o sorvete barato de sobremesa e aceita o “sorvete do Fabinho” que Carlos oferece, um mais caro (e mais gostoso). Isso sintetiza a filosofia de vida da garota, que em uma conversa com a mãe resume: “eu não me acho superior, só não me acho inferior a ninguém”. Porém, para Val, a mentalidade da menina é um absurdo, e ela alerta Jéssica: “quando eles  oferecem algo, é por educação, porque sabem que a gente vai dizer não”, e reafirma que o sorvete que elas devem consumir é o barato, em uma tentativa de fazer a garota assimilar o papel dela naquela hierarquia.

O sorvete do Fabinho é uma caixa-preta que guarda informações importantes sobre as subjetividades das relações existentes ali naquela casa. Jéssica se acha no direito de tomar esse sorvete, Val acha que não. Fabinho, o dono do sorvete, não tá nem aí pra nada. Carlos oferece o sorvete porque está interessado na garota e, a todo momento, tenta criar cenários de troca, onde ele deixa claro que as posses dele podem ser permanentemente acessadas por Jéssica caso ela queira algo com ele. Bárbara recrimina a menina e tenta constrangê-la quando, em outro momento, a encontra tomando o sorvete. A mulher, que até café da manhã preparou para Jéssica, em um dia que Val perdeu a hora e acordou mais tarde, não aguenta mais a moça pela casa e chega até mesmo a pedir para Val mantê-la da cozinha pra dentro – algo que causa uma enorme briga e faz com que Jéssica vá embora em uma noite chuvosa, um dia antes do vestibular.

A cena do café da manhã é, inclusive, bem interessante. É a primeira vez que alguém da casa aparece fazendo alguma coisa doméstica, o que é bastante simbólico, porque é a postura de autoafirmação de Jéssica que causa esse nivelamento nos degraus que Bárbara queria colocar entre elas. A mulher tinha oferecido café da manhã para a jovem apenas por educação. No entanto, quando Jéssica aceitou, Bárbara se viu ali, debruçada sobre a pia e preparando – de maneira irritada – uma refeição matinal para a filha da empregada, que ainda por cima estava sentada na mesa que a família sentava. A mulher sai sem comer, enquanto a garota se delicia tranquilamente – sob os protestos da mãe, sempre preocupada com as consequências de se atravessar as fronteiras preestabelecidas na dinâmica daquele lar.

Se formos olhar mais atentamente, podemos pensar em um lance: se a gente retira o sufixo “filha da empregada” de Jéssica, o que sobra é uma visita de outra cidade passando uns dias para estudar para o vestibular. Qual seria o problema dessa visita dormir no quarto de hóspedes, comer com as outras pessoas da casa, nadar na piscina com Fabinho? O estranhamento que Jéssica causa por querer ser como as outras pessoas denuncia o que as outras pessoas realmente pensam de alguém que elas dizem ser “praticamente da família”. E a rejeição de Bárbara demonstra um misto de elitismo e rivalidade feminina, algo meio “quem essa garota tá pensando que é?”.

E Carlos… Ah, ele tem aquele jeito ~maravilhoso~ (só que não) de homens (principalmente os privilegiados) que acham que tudo na vida pode ser comprado. Desde que Jéssica chega, ele cerca ela, simulando uma amizade que só não descamba praquela conversa ridícula de friendzone porque o cara não tem idade pra isso. É maravilhosa a cena em que Carlos pede Jéssica em casamento e, ao notar o espanto da garota, diz que é brincadeira. Covardia e falta de noção embalados em uma grande dose de constrangimento. Muitos homens, infelizmente, agem assim. O personagem mostra como não é preciso ser violento de uma forma explícita para ser escroto: será que Carlos concederia benefícios a ela se não houvesse interesse sexual da parte dele? Acho que não, hein. E se ela não fosse branca, ou jovem, ou não ostentasse o tipo de inteligência que o meio dele valoriza, será que ele iria tratar Jéssica “bem”? – coloco bem entre aspas por ser questionável; ainda que seja melhor dormir na cama macia de um quarto de hóspedes do que no chão de um cubículo, ninguém merece gentileza como tentativa de moeda de troca “amorosa” (cof, cof, aspas de novo. Posse não é amor).

E gostei muito da forma que Jéssica é retratada: usa tênis, camiseta e em diversos momentos o cabelo aparece preso e/ou bagunçado. A garota é séria e a sensualidade dela não é explorada – a de nenhuma das mulheres, aliás. O que vemos ali são personagens que se vestem, falam e andam como nós costumamos ser na vida real: mulheres que ás vezes estão produzidas e maquiadas, ás vezes não, e que trabalham, estudam, saem e agem por motivações próprias; e não pensando, 24 horas por dia, em como seduzir todos os homens ao redor – coisa que o senso comum parece acreditar. E sobre os os personagens em geral, a interação entre eles, brincadeiras, gírias, tensões, tudo me pareceu bem natural, sabe? Tipo quando Val busca Jéssica no aeroporto e dá um tapinha carinhoso na bunda dela, isso é super uma coisa que eu e minha mãe ou amigas faríamos

Eu já sabia, desde que foi mencionada a palavra vestibular, que Jéssica seria aprovada e Fabinho não. Era algo lógico dentro do que o filme parece propor, que é meio que refletir mudanças que a mobilidade de classes sociais e aumento de autoestima geraram na população brasileira, entre outras questões (a diretora comenta em várias entrevistas que o roteiro começou a ser escrito há 20 anos e, com as mudanças do país, ele também acabou mudando bastante). Mas ainda assim, o filme conseguiu surpreender ao relacionar o que já era esperado com uma cena tão bonita: quando Val, muito feliz com a notícia, finalmente entra na piscina dos patrões. Se meus olhinhos já tinham marejado diversas vezes durante o a sessão, lágrimas pesadas escorreram deles nessas horas. É muito bonito ver as pessoas adquirindo consciência de que elas têm direito de ocupar espaço no mundo – e todos os espaços.

A partir daí, começa uma série de outras mudanças: Val e Jéssica encontram um apartamento para morar, Fabinho vai curar a frustração de não ter passado no vestibular indo passar uma temporada na Austrália, Val descobre que Jéssica tem um filho deixado em Pernambuco – a garota, no fim das contas, foi para São Paulo em busca de uma vida melhor, igual a mãe – e Val decide mudar drasticamente o rumo da sua vida e se demite do emprego na casa de Carlos e Bárbara.

O pai de Jéssica não aparece. Carlos, sempre distante, só demonstra algum interesse por alguém naquela casa quando começa a pensar com o pinto. Não se fala sobre o pai do filho de Jéssica também, que Val se dispõe a buscar e cuidar. Isso é um retrato sintomático de nossa realidade, cujos homens, mesmo perto de seus filhos, enxergam a paternidade como uma opção e não como uma obrigação. Enquanto isso, mães, avós e outras mulheres se encarregam da criação de crianças – ou contratam empregadas e babás. E o filme mostra as consequências que essa omissão paterna e terceirização de cuidados por parte de algumas mulheres privilegiadas pode gerar, como um garoto emocionalmente desconectado dos pais e uma mulher pobre ausente na vida da filha, por exemplo.

Ainda assim, o final é esperançoso, mas de uma forma pé no chão e sem aquelas reviravoltas melosas e novelísticas. Apesar de todos os problemas, Val e Jéssica conseguem caminhar, juntas, rumo à uma vida cada vez mais autônoma.

Saí da sala de cinema pensando nas nuances suaves e específicas do filme, e me deu a curiosidade de saber várias coisas: como será que os estrangeiros veem tudo isso? E os homens, visto que o trabalho doméstico sempre foi executado, ou terceirizado e gerenciado, por mulheres? Como é a experiência de assistir “Que horas ela volta?” para uma empregada doméstica? E para uma pessoa privilegiada que teve, a vida inteira, sua sujeira sendo recolhida por outra pessoa? Embora existam diversos momentos no filme que podem ser deduzidos, isso não é um problema. Como em uma viagem em que a observação do percurso é o que importa, e não apenas o ponto de chegada, a narrativa sutilmente desnuda os bastidores de relações duais, e as intersecções dessas relações (mãe e filha, homem e mulher, rico e pobre, patrão e empregada, etc), a partir dos tensionamentos que vão surgindo.

P.S: Decidi não comentar o caso do debate porque chega de mídia espontânea para dois manés bêbados em um bate-papo, né? Pra muito homem, mídia ruim ainda é mídia – só com mulher que não funciona, porque como existe um movimento muito forte para barrar nossos acessos ao mundo público, nossa reputação é quase de cristal e qualquer coisinha pequena quebra ela. O ocorrido levantou uma questão importante sobre como muito homem fica butthurt com o sucesso de mulher, mas como já postei e discuti o assunto na fanpage da Vulva Revolução no Facebook (curte lá, se ainda não curtiu), preferi focar no que importa: o filme, ué – que além de tudo, tem belas imagens.

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“Quase da família”, por Aline Valek

“Que horas ela volta? – canção para minha mãe”, por Felipe André Silva