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Ruga na testa

Quando acordo de manhã, sempre tomo banho e depois me olho no espelho. Minha ruga na testa grita, todas as vezes, como quem diz “estou aqui, querida” e grito de volta, por dentro, impactada com o fato de que a passagem do tempo realmente se instala em nossa carne de maneiras definitivas. Minha mãe tem uma ruga como a minha, que veio da minha avó, e provavelmente minha bisavó e tataravó e tatatatatataravó tinham também esse selo ancestral que nos une por meio de uma inscrição na pele. A do meu pai é severa, profunda, parece uma facada, e espero, sinceramente, que a minha “ruga da raiva”, como gosto de chamar, nunca evolua para esse nível.

Ela apareceu sem que eu nem percebesse, vinda de lugares que não faço ideia. Será que foram as noites em claro em festas, as tardes estudando, as lágrimas, a tensão constante, os passeios alegres sob o sol que me forçaram a franzir a região dos olhos ou é simplesmente uma questão genética? Não sei. O que sei é que ela me incomoda, faz com que eu me sinta ainda mais imperfeita do que já sou, ainda que eu tenha plena noção de que esse sentimento é uma construção social que se moldou por meio de diferentes frentes. O antropólogo francês David Le Breton fala sobre como tratamos o corpo como um objeto imperfeito, “um rascunho a ser corrigido” e tido, vez ou outra, como um mero “acessório da presença”.

Entendo isso tudo, conceitualmente, mas a racionalização de certas coisas, ainda assim, não impede que elas deixem de ser sentidas. A filósofa francesa Simone de Beauvoir evidenciava, já na década de 40, que não existe um destino biológico, psíquico, econômico que “define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”; a cena social é que qualifica o ser mulher — que é algo que ninguém nasce, de fato, mas torna-se. Coço o queixo com uma mão e, com a outra, passo os dedos bem forte sobre a ruga, na esperança de que desapareça, enquanto reflito sobre o quanto do meu tornar-se mulher não envolveu também vigiar a mim mesma de forma pouco carinhosa, tratando características físicas e psicológicas perfeitamente humanas como imperfeições, defeitos.

Lembro de quando eu nem tinha ruga ainda, mas alisava o cabelo. Ou de quando não alisava o cabelo, mas tentava perder peso. Ou de quando não tentava perder peso, mas ficava quietinha, no canto da sala, com medo de expressar alguma dúvida ou consideração e acabar falando besteira. Tornei-me mulher sempre buscando corrigir esse corpo-rascunho em busca de uma rigidez que sequer gosto quando vejo em outras pessoas, espelhando o comportamento de mulheres ao redor, com queixas e mais queixas sobre si mesmas, como se o autoamor fosse inalcançável e até mesmo ofensivo. Tornei-me mulher aprendendo o autossilenciamento para evitar o constrangimento de ser, de fato, silenciada pelo outro. Mesmo atualmente, consciente de tudo isso, eu, justo eu, que agora estudo medicalização do envelhecimento feminino, esfrego minha ruga na testa esperando que ela suma e dou minha opinião em voz alta muito menos do que gostaria — e deveria.

Percebo, então, que minha ruga na testa não é necessariamente a questão, notar a existência dela é que é a denúncia de um sintoma que, observado mais de perto, aponta para causas muito mais profundas, imbricadas e historicamente produzidas do que a minha mera insatisfação pessoal. Sempre tem um problema e a vida vai passando e um outro problema vai surgindo e a vida vai passando e problemas, problemas e mais problemas acabam sendo sempre o foco. De fato, o gostar de si é um trabalho difícil, principalmente em uma sociedade com constantes bombardeios midiáticos, publicitários, religiosos, familiares e afins em cima do corpo e mente de todas as pessoas.

Talvez seja a busca por desfazer esses nós e religar os fios em novas conexões, mais amplas e mais humanizadas, que faz com que eu pesquise o que pesquiso. Para mim mesma, para o outro, para indivíduos e para a coletividade, porque o ser humano só existe em comunidade — mas existem diferentes maneiras de estar junto e de estar consigo mesmo. Priorizar o bem-estar de pessoas ao invés de colaborar com uma teia de manutenção de inseguranças que é antiquíssima e que gera bastante lucro: é possível?

Como diria a escritora feminista Naomi Wolf, talvez buscar o prazer, esquecer a necessidade de levar estranhos a nos admirarem e finalmente aguardar o envelhecimento do rosto com expectativa positiva sejam boas maneiras de considerar o nosso corpo como mais do que um monte de imperfeições, “já que não há nada em nós que não nos seja precioso”. O envelhecer é intrínseco ao nascer e nossas marcas são as memórias de nossas experiências.

Cecile

Ilustração da artista francesa Cécile Dormeau. Os potinhos de creme dizem “você é nojenta”, “você é velha” e “ohmeudeus, você tem mais de 18”. Pode a mulher envelhecer em paz?

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Esse meu texto foi publicado originalmente na coluna “Pós-Tudo” da Radis de novembro passado, a revista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), tanto no papel quanto no site da publicação. Conheça (e assine, é de graça e vale muito a pena): radis.ensp.fiocruz.br. Estou no primeiro ano do mestrado em Informação e Comunicação em Saúde da instituição e, uau, que experiência boa! Um dia, com mais tempo, falo mais sobre, quem sabe (na verdade, até hoje não falei por aqui nem da especialização que fiz lá, e que foi ótima também). Muita coisa acontecendo ao mesmo tempo (que bom, de certo modo, né). 

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IT’S MY PARTY AND I WILL CRY IF I WANT TO

De acordo com os tilelês, hoje é dia de mais uma volta ao redor do sol ou algo parecido. As pessoas alegres celebram mais um ano de vida e os pessimistas menos um. Sim, hoje é meu aniversário. E por mais que eu tenha tentado pagar de blasé algumas vezes, dizendo coisas tipo “oh, não ligo para datas comemorativas”, a verdade é que eu ligo sim. Somos ensinados a viver de uma forma tão emocionalmente contida (algo que eu orgulhosamente me recusei a aprender), que vejo de forma positiva algumas das válvulas de escape que as pessoas usam para transmitir bons sentimentos umas às outras (claro que em uma sociedade capitalista todos esses rituais são cooptados – e até mesmo inventados – em prol do consumo, mas essa é outra questão).

Essa é, aliás, uma das partes interessantes de ficar mais velha: começar a perceber (e assumir) o que realmente gosta ou não, o que quer ou não, sem tanta interferência da necessidade de pertencer a um grupo ou manter uma imagem. Quero dizer, conheço pessoas bem mais velhas do que eu que ainda vivem muito atreladas às engrenagens dos mecanismos da vida social e de um pretenso status e não as julgo (mentira, julgo sim, heh). De qualquer forma, acho que todos ficamos mais sábios a medida que acumulamos experiências e refletimos sobre elas.

No entanto, é esquisita a sensação de completar vinte-e-muitos-anos. Todo mundo gosta de lembrar o tempo inteiro que estou mais perto dos trinta que dos vinte anos, como se isso fosse algo assustador. Cada vez mais produtos e procedimentos de beleza são insinuados como necessários. Cada vez mais coisas são esperadas de mim, sendo que mal consigo me referir a mim mesma como “mulher”. Na minha cabeça, “mulheres” sempre foram aquelas pessoas de salto, com filhos, emprego, marido, roupas bem passadas, dotes culinários e sem crises existenciais. Sim, por um tempo eu comprei a ideia da ~mulheridade~ como algo totalmente heteronormativo e castrante, afinal, é isso que nos empurram o tempo todo, não?

E eu, vejam bem… Eu trabalho. E cozinho muito bem. Mas vivo de tênis sujo, roupa amassada, não sei se quero ~constituir família~ e estou sempre por aí, chafurdando na lama da existência. Guardo culpas, mágoas, rancores e tristezas. Tenho ataques de pânico. Fico muito feliz com coisas banais. Canto alto e faço danças ridículas. Me angustio por querer construir algo significativo e não apenas ser uma mera reprodutora de ideias alheias. E não consigo, de forma alguma, assimilar o conceito de vida adulta que me foi apresentado, embora, meu deus, eu seja uma adulta. Uma mulher. Não digo essas coisas me achando única e especial. Sei que a sensação de inadequação é comum e constante em um monte de gente. Não tem como ser diferente vivendo em uma sociedade que vende tanta crueldade e desumanização como sinônimo de sucesso.

Sinto falta de me jogar de peito aberto no mundo e acreditar no melhor das pessoas. O passar dos anos me tornou cínica e desconfiada. Desmontei caixas e certezas de tal maneira que as tênues fronteiras entre dominação e amor, amizade e interesse, preto e branco ou gases, infarto e ataque de pânico me parecem cada vez mais borradas. No entanto, as desconstruções me fizeram também aprender com os meus erros – o que não quer dizer que eu não os cometa mais – e com as histórias dos outros. Experimentei relações, problematizei comportamentos, moldei minha rudeza, exercitei a empatia. E pensei mais em mim.

Essa é uma nova fase. Que eu espero que seja de descobrimento, redescobrimento e canalização de forças e energia. Ainda que sejamos todos seres errantes buscando sentido para coisas que talvez estejam além da nossa compreensão humana, temos o agora para lidar. E o agora pode ser bom. Que eu aprenda a viver o presente com menos angústia e as batidas aceleradas do meu coração se convertam em suaves tum-tuns.

(E você aí, que me lê: obrigada! Ser lida está entre os meus planos e desejos ocultos – mas esse nem é tão oculto assim, né?)

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O envelhecimento da mulher como um fato incomum

Durante a semana passada, meus olhos sangraram quando me deparei com a seguinte “notícia” circulando pelo Facebook:

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Pois é. Eu sei que é meio ilusório acreditar que o jornalismo é uma atividade responsável por transmitir informações relevantes à sociedade e tal. Era pra ser assim, mas nem sempre é assim. No entanto, não consigo mesmo deixar de me espantar com o fato de Liv Tyler estar envelhecendo ser notícia. Todo mundo envelhece, oras. Se ela tivesse voltado no tempo e, ao invés de ficar mais velha, ficasse cada vez mais jovem até se tornar uma criança de novo, aí sim eu entenderia o alarde. Mas a manchete “Aos 37 anos, Liv Tyler não é mais a mesma; veja a transformação da musa dos anos 90” não diz nada. Acho que aos 37 ninguém é a mesma pessoa que era na década de 90.

Vamos nos focar nos critérios jornalísticos de noticiabilidade, ou seja, o que dá valor-notícia para um fato. Relevância (se a informação afeta a vida do público-alvo), proximidade (se acontece perto ou na cidade das pessoas que receberão a notícia), surpresa (se é algo inesperado, surpreendente), etc e etc, são alguns dos critérios que tornam um acontecimento noticiável. Teoricamente, se vivêssemos em uma sociedade mais justa e que tratasse a mulher com um mínimo de respeito necessário para a manutenção de sua integridade física e psicológica, seria óbvio para todo mundo o quanto essa matéria é absurda.

Só que, infelizmente, vivemos em uma sociedade desigual. Essa assimetria pode ser vista em diversos aspectos que se relacionam, como sexo, economia e cor de pele. E para a sociedade (falo principalmente da ocidental e inserida em um sistema capitalista), ser mulher envolve principalmente ser “bonita”, “desejável”, “atraente”, “sexy”, “obediente”. Lógico que não é assim tão simples. Um determinado setor vai valorizar mais a “beleza natural” (mas o que é vendido como “natural” na verdade costuma ser maquiagem leve que “disfarça imperfeições”). Outro vai dizer que mulher “de verdade” é a de batonzão vermelho e roupa decotada. Independentemente da mitologia vigente no meio em que estamos inseridas, somos bombardeadas por opiniões diretas e indiretas sobre nossa aparência o tempo inteiro. A indústria da beleza lucra com essas ideias e investe capital na mídia, para que o alcance desse discurso seja maior. A mídia dissemina essa ideia e lucra também. Não é à toa que é muito mais fácil enumerar, de cabeça, “divas” conhecidas por sua “beleza” do que mulheres que são famosas por motivos que não estão necessariamente ligados à aparência.

As inseguranças da mulher geram lucro, logo, o corpo da mulher é tratado como capital. E em uma sociedade que trata pessoas mais velhas como improdutivas, a mídia acaba tratando envelhecimento (principalmente o feminino, já que o acúmulo de capital costuma estar na mão de homens mais velhos) como perda. O estereótipo da mulher mais velha é que ela perde cabelo, poder, sedução. Os ganhos são sempre vistos de forma negativa (aumento de peso sendo tratado como algo ruim, por exemplo, e as conquistas pessoais e profissionais são ignoradas). O subjetivo da mulher, no geral, não é levado em conta. O corpo passa a ser tratado como algo à parte, algo descolado de tudo que a mulher é. “O corpo que eu quero ter” passa a ser um desejo tão corriqueiro quanto “a bolsa que eu quero ter”. Nossas experiências impressas nele passam a ser vergonhosas. Queremos ser lisas como um papel intacto – como as mulheres que vemos nas revistas e na televisão.

Porém, essas mulheres das revistas e da televisão também não são “perfeitas” – ninguém é. E em uma sociedade como a nossa, se torna noticiável o fato de uma sex symbol deixar de cumprir a sua função decorativa, porque é praticamente uma tragédia. E funciona como um alerta de que nós, reles mortais, teremos que nos cuidar em dobro, já que até mesmo a Liv Tyler “deu uma engordada” e “está bem diferente do que estamos acostumados”. E o “se cuidar” envolve inúmeros produtos e serviços. Assim, a teia lucrativa gerada por nossas inseguranças permanece ativa, bem como a tentativa de controle sobre nós (tanto que, muitas vezes, quando se tenta silenciar uma mulher é apelando para sua aparência. O clássico “toda feminista é gorda e peluda” é uma prova disso. E daí se formos? O que isso altera na nossa capacidade discursiva?).

Ano passado, após “polêmica” gerada pela mídia ao mostrar foto da atriz Betty Faria, de 72 anos, usando biquini na praia (oh, que absurdo), ela recebeu todos os xingamentos possíveis e precisou manifestar publicamente que tem o direito de ficar velha (infelizmente, suas aparições seguintes em praias foram de maiô. Olha que saco ter que ficar pensando e pensando sobre o que se vai usar em uma praia pra ter que se prevenir de uma enxurrada de hostilidade. Homens  – famosos ou não – simplesmente vestem qualquer merda e vão). Chega a ser bizarro como a mulher que existe para além das aparências ofende. Não se pode ir a praia, se divertir, dançar, nadar… Viver. Uma mulher deve estar sempre atenta se a sua aparência está agradando. Caso seja paquerada, só é respeitada se já for “posse” de algum outro homem. O envelhecimento dela, processo natural no decorrer da vida de todos os seres vivos, é tratado como um acontecimento incomum.

Aliás, se observarmos bem, a mulher mais velha (não apenas as idosas, creio que essa invisibilidade começa bem antes) não tem espaço na mídia. Muitas mães e avós de novelas, filmes e propagandas, que na vida real teriam cabelos brancos, rugas no rosto, ou manchas nas mãos, são retratadas como mulheres bem mais jovens. Não vemos feitos importantes realizados por mulheres sendo celebrados da mesma forma que celebram o fato de uma mulher de 30 parecer ter 25 anos, por exemplo. As idosas, então… Só são lembradas na hora de vender Corega. E o tempo inteiro temos que ler notícias pejorativas sobre como alguma mulher emagreceu ou engordou ou envelheceu ou mostrou a calcinha ou borrou a maquiagem, como se isso fosse algo extremamente relevante. Precisamos reivindicar mais do que uma representação digna e plural. Precisamos reivindicar nossos corpos como parte de nós, como vitrines de nossas histórias. Histórias que devem ser contadas com orgulho, e não apagadas de forma cruel pela mídia e pela indústria.

O corpo que eu quero ter é esse, o que traz marcas de experiências boas e ruins vividas por uma mulher inteira. E esse corpo não vai ser desconectado do meu “eu”.

P.S: Já passou da hora de tantos jornalistas despreparados e incompetentes inundarem sites, revistas, programas de televisão e afins com tanta porcaria. Essa chuva de chorume com certeza vem não apenas da misoginia internalizada, mas também da preguiça de pesquisar assuntos realmente relevantes e da falta de capacidade de gerar conteúdo interessante, que chame a atenção de forma criativa e construtiva. Tomem vergonha e vão estudar.

Algumas ideias desse texto eu tirei de anotações que fiz em um seminário feminista em 2009, de uma mesa chamada “Mídias e Feminismos”, que contou com as professoras Tânia Montoro (Comunicação Social/UnB), Maria Luiza Martins de Mendonça (Comunicação e Biblioteconomia – UFG) e Márcia Coelho Flausino (UCB).