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“Pink”: o novo cinema da Índia traz também novas ideias

Dia desses fui a uma mostra maravilhosa que rolou no Centro Cultural Branco do Brasil (CCBB) aqui de Brasília: a “Novo Cinema Indiano”, que passou também por outras cidades – mas infelizmente não está mais em cartaz. Como o nome diz, o objetivo foi evidenciar trabalhos recentes da Índia (os filmes da exibição foram realizados a partir de 2013) e que estejam, em grande maioria, fora do circuito de Bollywood.

O país é, com certeza, bastante rico e diverso em línguas, regiões, religiões e costumes, e a mostra captou isso muito bem ao dar espaço não apenas para produções de diferentes localidades da Índia, como também ao selecionar obras que abordam conflitos contemporâneos marcantes – e importantes.

Dentre os filmes que tive a oportunidade de assistir, quero falar especificamente sobre um que mexeu bastante comigo – e que tem muito a ver com os temas tratados aqui no blog: Pink (2016), dirigido por Aniruddha Roy Chowdhury e escrito por Ritesh Shah. Ele é uma das exceções da programação, por ser, na verdade, bem bollywoodiano. No entanto, é uma espécie de subversão do estilo: como aponta uma matéria da BBC (em inglês), Pink desafia o discurso padrão dessa indústria cinematográfica, que romantiza coisas como ameaça de estupro e stalking, por exemplo, como se fizessem parte dos ritos amorosos – nada muito diferente da tradicional Hollywood, rs.

Atenção: a partir daqui, contém spoilers.

O começo do filme mostra um carro cheio de homens com raiva – um deles com o rosto sangrando – e indo até a um hospital, entre lamúrias e xingamentos. Paralelamente, um táxi leva três amigas bastante apreensivas e nervosas para casa. A história envolve um grupo de garotas que, após um show de rock, vão tomar mais umas com uns rapazes semi-conhecidos. No entanto, o que era pra ser um pós-noite envolvendo diversão e alguns drinks, termina em confusão.

A cada nova cena, vai ficando claro que essa tensão inicial é, na verdade, um fio condutor que permeia toda a trama. Porém, aos poucos, o que aconteceu vai se tornando menos nebuloso: uma das moças machucou um dos rapazes, mas não se sabe ainda o porquê – embora seja possível notar que não houve uma briga justa entre as partes.

As amigas – Minal (Taapsee Pannu), Falak (Kirti Kulhari) e Andrea (Andrea Tariang) – são também colegas de apartamento e começam a sofrer, no dia a dia, as consequências dessa fatídica noite. Os caras tentam difamá-las o tempo inteiro, fazem ligações repletas de ameaças, as perseguem nas ruas (e chegam a sequestrar e abusar do principal alvo: Minal), intimidam e agridem o locador do apartamento delas, na tentativa de convencê-lo a mandá-las embora, entre várias outras coisas. Eles não querem nenhum tipo de conciliação e sim a propagação de um terrorismo – com ataques físicos e psicológicos – que os mantenha no topo de uma hierarquia de poder que foi ameaçada pela agressão de uma das jovens (e também pela rejeição que eles sofreram de todas elas).

Minal, a “agressora” de Rajveer (Angad Bedi), um playboyzinho filho de um influente político, se recusa a pedir desculpas pelo que fez: ao ser agarrada à força, acaba quebrando uma garrafa de vidro na cabeça dele para se defender e conseguir se soltar. Ela não considera que sua legítima defesa seja, de fato, uma agressão, e sim uma reação à violência iniciada por Rajveer, que não respeitou os limites impostos e utilizou força física e coação para forçá-la a ficar com ele.

Quando Minal, que é bastante forte e decidida, finalmente decide ir à polícia, o que começa a rolar exemplifica o porquê de muitas vítimas não terem coragem de realizar denúncias formais: a situação é tratada com extremo descaso e as moças são apontadas como as culpadas por terem “provocado” os rapazes. Fora a corrupção presente em todo lugar: por conta da influência familiar, Rajveer consegue realizar boletins de ocorrência com data adulterada bem como coloca panos quentes nas denúncias das jovens. O intuito final é fazer com que elas sejam incriminadas, e a desigualdade social somada ao machismo vai colaborar com que o foco dos dedos apontados mirem as vítimas, e não os agressores.

As amigas possuem um vizinho um tanto quanto estranho, que está sempre de butuca, acompanhando tudo. À medida que vai sendo revelado que ele é, na verdade, confiável, o filme vai mudando o tom. Enquanto a primeira metade é uma espécie de suspense urbano, a metade seguinte é um dramão de tribunal. O misterioso Deepak Sehgal (Amitabh Bachchan) não representa perigo: é apenas um homem doente, desencantado com a vida e prestes a perder a esposa. Porém, não consegue deixar de se envolver com o caso – e então é revelado que ele é também um advogado famoso e aposentado, que acaba decidindo fazer a defesa das moças. Uhu!

Não tem como negar que a obra tem uma vibe novelesca e melodramática em muitos instantes. Porém, considero isso uma qualidade: achei bom um tema tão importante ser tratado de modo tão acessível, descomplicado, quase esquemático. Pink fala sobre violência contra a mulher e coloca em debate a questão do consentimento, que é destrinchada de forma bastante didática (até demais, ás vezes, mas melhor pecar pelo excesso do que pela falta, nesse caso) durante o julgamento das moças.

No tribunal, as mulheres são acusadas de serem prostitutas que queriam se aproveitar financeiramente dos pobre rapazes, e são também, o tempo todo, acusadas de serem pobres – como se não ter dinheiro fosse crime! A acusação vasculha a vida inteira de cada uma delas, com o intuito de provar que possuem “cárater duvidoso”, e alega que “o aspecto do consentimento foi introduzido pela defesa porque está na moda hoje em dia”. A maior parte do tempo, a discussão gira ao redor das mentiras que os caras inventaram e dos supostos danos que eles sofreram. Tipo na vida real: é mais importante considerar não estragar o futuro de um agressor do que pensar no bem-estar de uma vítima e prevenir novos crimes.

O advogado de defesa dá umas vaciladas no começo, só pra deixar aquele clima de que tudo vai dar errado, mas depois engata e não para mais. Ele explica que mulheres são inferiorizadas o tempo inteiro apenas por serem mulheres, desmascara esquemas de corrupção, coloca em evidência como homens e mulheres que fazem as mesmas coisas – tipo beber, dançar ou sorrir – são vistos de formas diferentes e deixa bem claro que não é sempre não.

É bem emocionante porque é tipo um alívio. Vitórias – e justiça –  para essas questões ás vezes parecem ainda tão distantes…  Portanto, é gostoso enxergá-las pelo menos na ficção, para fins de inspiração, enquanto a gente vai transformando a realidade. E, querendo ou não, o cinema é também uma possível porta para transformações de realidades, não acham?

De acordo com uma das responsáveis pela mostra, Carina Bini, curadora, produtora e jornalista brasileira que já morou um tempão na Índia, um ponto importante para o sucesso da obra foi a escolha de Bachchan – conhecido também como “Big B” – para o papel de advogado de defesa. Considerado um ídolo nacional, o ator está desde os anos 70 nas telinhas e telonas do país, e ajudou a atrair vários espectadores para o cinema. Grande parte das falas mais impactantes que denunciam o machismo da sociedade indiana saem da boca dele, aliás.

Tal explicação me ajudou a ver de maneira mais positiva aspectos que poderiam ter sido interpretados de outra forma caso eu não estivesse ciente do contexto. Porque, assim, em um primeiro instante, chega a soar quase como mansplaining um filme dirigido e roteirizado por homens ter um outro homem falando pelas mulheres que elas precisam ser respeitadas.

No entanto, assistir uma figura admirada na Índia proferindo argumentações que desmontam o discurso machista e senso comum é impactante. E, sendo ele um advogado de defesa, fica mais coerente fazer isso (mas claro que, ainda assim, o cara é meio que colocado como um herói). Aliás, o cinema é ainda um território bastante masculino, como tantos outros. Será que um filme assim, mas feito e protagonizado por mulheres apenas, seria recebido da mesma forma? Vale uma reflexão. Essa resenha aqui (em inglês) do site Feminism in India discute um pouco essa questão e, a partir de uma ótica feminista, levanta alguns problemas existentes em Pink.

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Uma coisa interessante é que o filme trata de uma história que não envolve vítimas virginais e perfeitas. Mostrar mulheres jovens, que vivem sozinhas em um contexto urbano, trabalham e vão para festas talvez facilite a identificação de pessoas de outros países com a obra – e facilite também o entendimento geral de que violências acontecem em todos os lugares e são cometidas/sofridas por pessoas de diferentes recortes sociais.

E, como já falei antes por aqui, essa “mulher perfeita” (que nunca vai existir) em contraste com todas as outras (que são horríveis e usam roupas curtas e são vadias e merecem apanhar e falam demais e deveriam estar em casa lavando a louça) é uma invenção do machismo, seja ele individual ou institucional, para tentar culpar as vítimas pelas violências que sofrem. Gente, existem casos em que as pessoas conseguem arrumar desculpas para culpar até mesmo crianças que foram alvo de violência sexual, argh!

Outro aspecto interessante que é mostrado é o machismo enquanto um acontecimento coletivo. O universo individual respalda o institucional – e vice-versa – e, a partir disso, o senso de impunidade caminha junto com a inferiorização de quem se encontra fora da esfera do poder masculino. Mentiras, corrupção, agressões verbais, físicas e psicológicas: tudo se torna válido para manter o status quo. Porém, fica evidente também que a sede por vingança dos rapazes é bastante infantil e que a masculinidade é algo paradoxalmente forte, quando se pensa nos estragos que são causados por ela, mas bastante frágil, no sentido de identidade.

A sociedade indiana se organiza por um sistema de castas que expõe principalmente mulheres em um nível “inferior” à violência – mas todas estão sujeitas a sofrer algo (qualquer semelhança com nossa pátria amada não é mera coincidência). E, assim como na China, por exemplo, é estimulado o aborto seletivo de fetos do sexo feminino (nem sempre por “escolha”, li relatos envolvendo coação externa), o que ocasionou na diminuição da população de mulheres do país.

Por lá, acontecem muitos estupros, sejam eles individuais ou coletivos, mulheres são atacadas com ácido, existem problemas de exploração sexual e meninas são obrigadas a se casar com adultos, entre várias outras coisas horríveis. A sociedade brasileira adora apontar para essas questões com o intuito de reforçar a “incivilidade” de países que não sejam os Estados Unidos ou lugares famosos da Europa (que também possuem tretas, não se iludam). Até parece que estamos em uma situação assim tão diferente de vários locais que criticamos (e postamos notícias com comentários tipo “ohhh, que absurdo”), né? Então, no fim, sobra muita coisa pra pensar sobre.

Pink ganhou vários prêmios, foi exibido para a polícia do Rajastão, um dos maiores estados da Índia, com o intuito de sensibilizá-la sobre os direitos das mulheres, e foi também convidado para sessão especial na sede da ONU, em Nova York. Clique aqui e veja o catálogo da mostra “Novo Cinema Indiano” para saber mais sobre os outros filmes que foram exibidos.

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“Que horas ela volta?” e a noção de que nenhuma pessoa é naturalmente inferior

Finalmente assisti “Que horas ela volta?”, dirigido pela paulista Anna Muylaert. A cineasta tem “É proibido fumar”, “O ano em que meus pais saíram de férias” e “Durval Discos” em sua filmografia, entre outras obras, e foi roteirista de séries de televisão que marcaram a minha infância, como “Mundo da Lua” e “Castelo Rá-tim-bum”. Eu tinha expectativas altas. Andei lendo bastante sobre o “Que horas ela volta?”, que está sendo muito bem recebido não só aqui no Brasil, mas em diversos países – o filme ganhou prêmios nos festivais de Sundance e Berlim, e está cotado para representar o Brasil no Oscar de 2016.

E fico feliz em dizer que minhas expectativas não foram frustradas. Mais do que isso, saí da sala de cinema com lágrimas nos olhos. Aviso que, a partir daqui, vou postar diversos spoilers no texto. Caso ainda não tenha visto o filme, se liga.

“Que horas ela volta?” mostra o dia a dia da pernambucana Val – interpretada por Regina Casé – como empregada doméstica na casa de uma família tradicional e classe média alta que mora em Morumbi, bairro nobre da cidade de São Paulo. Tem mais de uma década que ela trabalha na casa de Bárbara e Carlos – Karine Teles e Lourenço Mutarelli respectivamente – e cuida do filho deles, Fabinho (Michel Joelsas). E é aquela história que nós, brasileiros, conhecemos bem: “ela é como se fosse da família”, mas mora em um quartinho minúsculo e abafado, não pode tomar o sorvete caro dos patrões e mal teve tempo de ver a própria filha crescer, porque estava ocupada cuidando do filho de outra pessoa. No entanto, tudo funciona bem dentro de casa, por meio de uma estrutura frágil em que ninguém realmente se aproxima mas mantém uma aparente relação de afeto e cordialidade. Dessa forma, as hierarquias se neutralizam por meio da naturalização das diferenças – tem gente que nasce pra servir, e tem gente que nasce pra ser servido, tipo isso, sacou?

A empregada doméstica Val, interpretada por Regina Casé no filme

A empregada doméstica Val, interpretada por Regina Casé

Ninguém move um dedo dentro de casa: é Val que coloca pratos na mesa e depois tira, prepara café da manhã, leva isso, leva aquilo, e assim vai. Algumas pessoas podem dizer que, ah, esse é o emprego dela. Mas será mesmo que é um sistema justo esse de servir uma família inteira o dia todo até mesmo em tarefas simples que uma pessoa poderia muito bem executar sozinha? E que tipo de emprego é esse em que uma pessoa “praticamente da família” simplesmente não tem demandas predefinidas e, por um salário fixo (e geralmente baixo), se encarrega de cozinhar, limpar, lavar, cuidar de pessoas, animais, plantas, ser garçonete em festas e tudo mais o que aparecer pela frente? Fica a reflexão.

Ainda assim, tudo segue tranquilamente, até que Val recebe uma notícia: sua filha Jéssica (Camila Márdila), que ela não via há anos, quer prestar o vestibular para a Universidade de São Paulo (USP), a mesma que Fabinho vai tentar ingressar – aliás, o diminutivo no nome do personagem mostra a pessoa que ele representa: o menino rico, branco, extremamente privilegiado e superprotegido. Ele não chega a ser uma má pessoa, e em alguns momentos é até carismático (apesar de bobão), mas é totalmente blindado, ignorante em relação à realidades diferentes da dele, e também mimado e passivo.

E isso é uma coisa forte no filme, aliás, ninguém ali é mau em um sentido óbvio e explicitamente violento, e considero isso um dos métodos que pessoas “de bem” utilizam para perpetuar relações de dominação e exploração. Tudo isso se relaciona com o que eu já falei antes, da naturalização de que existem pessoas inferiores às outras para a manutenção do status quo. Um grande passo para manter uma pessoa dentro do ciclo de pobreza, por exemplo, – e consequentemente torná-la mão-de-obra barata e servil – é fazê-la assimilar essa ideia de que só alguns são capazes, e ela não está entre esses alguns, bem como o de retirar suas possibilidades de autonomia e crescimento com excesso de atividades braçais e/ou mecanizadas mal renumeradas e com pouco tempo para lazer ou estudo.

No entanto, quando Jéssica chega, ela sacode os laços fracos que unem as pessoas e as certezas daquela casa. A família toda se espanta por ela – a filha da empregada – ser ~inteligente~ (de modo formal e “intelectualizado”, digamos), ambiciosa e querer, veja só, estudar arquitetura. Todos concluem que o curso é difícil e ela vai ter que ralar para passar no vestibular, e o menino ainda zomba o sotaque nordestino dela. Porém, a descrença alheia não afeta Jéssica. Ao contrário de Val, ela não demonstra acreditar na veracidade dos papeis hierárquicos e, de repente, a garota logo migra do quartinho da mãe para o quarto de hóspedes da casa e ainda pula na piscina da galera – piscina que Val, por ter introjetado o seu devido lugar na hierarquia daquele lar, nunca ousou entrar.

Porém, Val não tem culpa de sua subserviência, ainda que isso irrite Jéssica. Para sobreviver, – e mandar dinheiro para a filha, que estava sendo criada por outra pessoa em Pernambuco – ela precisou trabalhar anos como empregada doméstica e, devido aos ajustes sociais e econômicos da profissão que precisou exercer, acabou vivendo para aquela família, sem contato com a sua própria. É muito mais fácil cair na armadilha de se inferiorizar quando não se tem escolhas. Jéssica, embora tenha se sentido abandonada pela mãe e sofrido as consequências dessa ausência, teve mais condições – pelo menos em relação a Val – de desenvolver melhor a própria individualidade. Mesmo sendo pobre, sua intelectualidade acaba sendo um valioso capital dentro daquele espaço – e uma prova de que pessoas de diferentes realidades são capazes, o que muda são as oportunidades dadas à cada uma.

Desde a chegada de Jéssica, Carlos fica de olho nela. Em um determinado momento, ele convida a jovem para almoçar com ele, na mesa da sala – lugar que Val considera um ultraje a filha da empregada estar. E ela não apenas senta ali, como recusa o sorvete barato de sobremesa e aceita o “sorvete do Fabinho” que Carlos oferece, um mais caro (e mais gostoso). Isso sintetiza a filosofia de vida da garota, que em uma conversa com a mãe resume: “eu não me acho superior, só não me acho inferior a ninguém”. Porém, para Val, a mentalidade da menina é um absurdo, e ela alerta Jéssica: “quando eles  oferecem algo, é por educação, porque sabem que a gente vai dizer não”, e reafirma que o sorvete que elas devem consumir é o barato, em uma tentativa de fazer a garota assimilar o papel dela naquela hierarquia.

O sorvete do Fabinho é uma caixa-preta que guarda informações importantes sobre as subjetividades das relações existentes ali naquela casa. Jéssica se acha no direito de tomar esse sorvete, Val acha que não. Fabinho, o dono do sorvete, não tá nem aí pra nada. Carlos oferece o sorvete porque está interessado na garota e, a todo momento, tenta criar cenários de troca, onde ele deixa claro que as posses dele podem ser permanentemente acessadas por Jéssica caso ela queira algo com ele. Bárbara recrimina a menina e tenta constrangê-la quando, em outro momento, a encontra tomando o sorvete. A mulher, que até café da manhã preparou para Jéssica, em um dia que Val perdeu a hora e acordou mais tarde, não aguenta mais a moça pela casa e chega até mesmo a pedir para Val mantê-la da cozinha pra dentro – algo que causa uma enorme briga e faz com que Jéssica vá embora em uma noite chuvosa, um dia antes do vestibular.

A cena do café da manhã é, inclusive, bem interessante. É a primeira vez que alguém da casa aparece fazendo alguma coisa doméstica, o que é bastante simbólico, porque é a postura de autoafirmação de Jéssica que causa esse nivelamento nos degraus que Bárbara queria colocar entre elas. A mulher tinha oferecido café da manhã para a jovem apenas por educação. No entanto, quando Jéssica aceitou, Bárbara se viu ali, debruçada sobre a pia e preparando – de maneira irritada – uma refeição matinal para a filha da empregada, que ainda por cima estava sentada na mesa que a família sentava. A mulher sai sem comer, enquanto a garota se delicia tranquilamente – sob os protestos da mãe, sempre preocupada com as consequências de se atravessar as fronteiras preestabelecidas na dinâmica daquele lar.

Se formos olhar mais atentamente, podemos pensar em um lance: se a gente retira o sufixo “filha da empregada” de Jéssica, o que sobra é uma visita de outra cidade passando uns dias para estudar para o vestibular. Qual seria o problema dessa visita dormir no quarto de hóspedes, comer com as outras pessoas da casa, nadar na piscina com Fabinho? O estranhamento que Jéssica causa por querer ser como as outras pessoas denuncia o que as outras pessoas realmente pensam de alguém que elas dizem ser “praticamente da família”. E a rejeição de Bárbara demonstra um misto de elitismo e rivalidade feminina, algo meio “quem essa garota tá pensando que é?”.

E Carlos… Ah, ele tem aquele jeito ~maravilhoso~ (só que não) de homens (principalmente os privilegiados) que acham que tudo na vida pode ser comprado. Desde que Jéssica chega, ele cerca ela, simulando uma amizade que só não descamba praquela conversa ridícula de friendzone porque o cara não tem idade pra isso. É maravilhosa a cena em que Carlos pede Jéssica em casamento e, ao notar o espanto da garota, diz que é brincadeira. Covardia e falta de noção embalados em uma grande dose de constrangimento. Muitos homens, infelizmente, agem assim. O personagem mostra como não é preciso ser violento de uma forma explícita para ser escroto: será que Carlos concederia benefícios a ela se não houvesse interesse sexual da parte dele? Acho que não, hein. E se ela não fosse branca, ou jovem, ou não ostentasse o tipo de inteligência que o meio dele valoriza, será que ele iria tratar Jéssica “bem”? – coloco bem entre aspas por ser questionável; ainda que seja melhor dormir na cama macia de um quarto de hóspedes do que no chão de um cubículo, ninguém merece gentileza como tentativa de moeda de troca “amorosa” (cof, cof, aspas de novo. Posse não é amor).

E gostei muito da forma que Jéssica é retratada: usa tênis, camiseta e em diversos momentos o cabelo aparece preso e/ou bagunçado. A garota é séria e a sensualidade dela não é explorada – a de nenhuma das mulheres, aliás. O que vemos ali são personagens que se vestem, falam e andam como nós costumamos ser na vida real: mulheres que ás vezes estão produzidas e maquiadas, ás vezes não, e que trabalham, estudam, saem e agem por motivações próprias; e não pensando, 24 horas por dia, em como seduzir todos os homens ao redor – coisa que o senso comum parece acreditar. E sobre os os personagens em geral, a interação entre eles, brincadeiras, gírias, tensões, tudo me pareceu bem natural, sabe? Tipo quando Val busca Jéssica no aeroporto e dá um tapinha carinhoso na bunda dela, isso é super uma coisa que eu e minha mãe ou amigas faríamos

Eu já sabia, desde que foi mencionada a palavra vestibular, que Jéssica seria aprovada e Fabinho não. Era algo lógico dentro do que o filme parece propor, que é meio que refletir mudanças que a mobilidade de classes sociais e aumento de autoestima geraram na população brasileira, entre outras questões (a diretora comenta em várias entrevistas que o roteiro começou a ser escrito há 20 anos e, com as mudanças do país, ele também acabou mudando bastante). Mas ainda assim, o filme conseguiu surpreender ao relacionar o que já era esperado com uma cena tão bonita: quando Val, muito feliz com a notícia, finalmente entra na piscina dos patrões. Se meus olhinhos já tinham marejado diversas vezes durante o a sessão, lágrimas pesadas escorreram deles nessas horas. É muito bonito ver as pessoas adquirindo consciência de que elas têm direito de ocupar espaço no mundo – e todos os espaços.

A partir daí, começa uma série de outras mudanças: Val e Jéssica encontram um apartamento para morar, Fabinho vai curar a frustração de não ter passado no vestibular indo passar uma temporada na Austrália, Val descobre que Jéssica tem um filho deixado em Pernambuco – a garota, no fim das contas, foi para São Paulo em busca de uma vida melhor, igual a mãe – e Val decide mudar drasticamente o rumo da sua vida e se demite do emprego na casa de Carlos e Bárbara.

O pai de Jéssica não aparece. Carlos, sempre distante, só demonstra algum interesse por alguém naquela casa quando começa a pensar com o pinto. Não se fala sobre o pai do filho de Jéssica também, que Val se dispõe a buscar e cuidar. Isso é um retrato sintomático de nossa realidade, cujos homens, mesmo perto de seus filhos, enxergam a paternidade como uma opção e não como uma obrigação. Enquanto isso, mães, avós e outras mulheres se encarregam da criação de crianças – ou contratam empregadas e babás. E o filme mostra as consequências que essa omissão paterna e terceirização de cuidados por parte de algumas mulheres privilegiadas pode gerar, como um garoto emocionalmente desconectado dos pais e uma mulher pobre ausente na vida da filha, por exemplo.

Ainda assim, o final é esperançoso, mas de uma forma pé no chão e sem aquelas reviravoltas melosas e novelísticas. Apesar de todos os problemas, Val e Jéssica conseguem caminhar, juntas, rumo à uma vida cada vez mais autônoma.

Saí da sala de cinema pensando nas nuances suaves e específicas do filme, e me deu a curiosidade de saber várias coisas: como será que os estrangeiros veem tudo isso? E os homens, visto que o trabalho doméstico sempre foi executado, ou terceirizado e gerenciado, por mulheres? Como é a experiência de assistir “Que horas ela volta?” para uma empregada doméstica? E para uma pessoa privilegiada que teve, a vida inteira, sua sujeira sendo recolhida por outra pessoa? Embora existam diversos momentos no filme que podem ser deduzidos, isso não é um problema. Como em uma viagem em que a observação do percurso é o que importa, e não apenas o ponto de chegada, a narrativa sutilmente desnuda os bastidores de relações duais, e as intersecções dessas relações (mãe e filha, homem e mulher, rico e pobre, patrão e empregada, etc), a partir dos tensionamentos que vão surgindo.

P.S: Decidi não comentar o caso do debate porque chega de mídia espontânea para dois manés bêbados em um bate-papo, né? Pra muito homem, mídia ruim ainda é mídia – só com mulher que não funciona, porque como existe um movimento muito forte para barrar nossos acessos ao mundo público, nossa reputação é quase de cristal e qualquer coisinha pequena quebra ela. O ocorrido levantou uma questão importante sobre como muito homem fica butthurt com o sucesso de mulher, mas como já postei e discuti o assunto na fanpage da Vulva Revolução no Facebook (curte lá, se ainda não curtiu), preferi focar no que importa: o filme, ué – que além de tudo, tem belas imagens.

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Leia também:

“Quase da família”, por Aline Valek

“Que horas ela volta? – canção para minha mãe”, por Felipe André Silva

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“A verdade inconveniente sobre Teena Brandon”

O texto a seguir é uma tradução enorme, feita com muito suor, sobre Teena Brandon  – ou Brandon Teena. Desde que assisti “Meninos não choram”, fiquei intrigada e passei a pesquisar mais sobre a história. Brandon queria realmente “ser homem”? Ou apenas não correspondia ao que se espera de uma pessoa que nasce com o sexo feminino? O que é “ser homem” afinal? E “ser mulher”? Ah, vamos lembrar que Brandon vivia no interior dos Estados Unidos, com diversas pessoas preconceituosas ao redor, não tinha condições econômicas favoráveis, sofreu abuso e estupro sem nunca ter tido seus traumas devidamente cuidados, internalizou diversos sentimentos ruins sobre si e era muito jovem.  Além disso tudo, os médicos pareciam querer se aproveitar da fragilidade e inadequação de Brandon para realizar experimentos em seu corpo.

Este artigo, de Carolyn Gage, escritora lésbica e feminista, traz análises sólidas, que ajudam a pensar em aspectos da história de Brandon que não são discutidos normalmente. Sempre me identifiquei bastante com a narrativa de diversos homens trans porque, como muita gente que nasce com o corpo do sexo feminino, eu sofri com disforia em diversos momentos da vida. E é realmente enojante o ~tratamento especial~ (pra não dizer abusivo e constrangedor) que se dá a corpos que possuem seios e vagina. Descobri que diversas amigas e colegas compartilham o sentimento, o que mostra que estamos em situações parecidas, mas lidando de formas diferentes. Mas isso é assunto pra depois.

O que Brandon realmente sentia ou queria nunca saberemos. No entanto, é válido pensar como a “casta sexual mulher” é aprisionante, aterrorizante e torna legítimo o acesso não autorizado aos corpos de sexo feminino. Leiam e digam o que acham. Os comentários estão abertos para críticas, opiniões e tudo mais.  Ah, como eu já disse antes, não sou nenhuma expert em tradução, então algumas partes podem estar confusas. Obrigada a todo mundo que ajudou, vocês foram fundamentais.

Segue o texto:

A verdade inconveniente sobre Teena Brandon

Carolyn Gage

Teena Brandon é lembrada nos dias de hoje como o transexual feminino-para-o-masculino vítima de um assassinato brutal motivado por transfobia. Quando ela tinha dezoito anos de idade, três anos antes de sua morte, foi aceita em um centro de crise como consequência de uma overdose, que pode ter sido intencional. No período, ela estava muito abaixo do peso por conta de um transtorno alimentar e tomava sete banhos por dia, com sete trocas completas de roupa. Bebia muito, enfrentou doze acusações pendentes de falsificação de documentos e uma possível acusação de agressão sexual contra uma menor de idade, estava sofrendo por conta de um estupro recente, não declarado e não tratado, e estava envolvida em um relacionamento sexual com uma menina de catorze anos de idade, no qual se passava por homem. Ela alegou aos terapeutas que, quando criança, foi vítima de abuso sexual durante anos, cometido por um membro da família do sexo masculino. De acordo com a pessoa responsável pela sua biografia, ela foi diagnosticada com “leve disforia de identidade de gênero”, e relatou aos amigos e amigas que uma cirurgia de mudança de sexo havia sido sugerida. Eu quero falar sobre uma verdade inconveniente. Eu quero falar sobre o fato da pessoa chamada Teena Brandon ter sido uma sobrevivente de incesto. Você não vai ouvir isso ser mencionado em “Boys Don’t Cry” (“Meninos Não Choram”), e não vai ouvir isso ser mencionado no documentário “The Brandon Teena Story” (“A História de Teena Brandon”). Você não vai ler sobre isso na edição atual da Wikipédia. É, como eu disse, inconveniente.

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Cena do filme “Meninos não choram”

“Inconveniente” significa “causando problemas ou dificuldades”. A verdade inconveniente sobre a história de incesto de Brandon causa problemas porque incorporar informação sobre abuso sexual infantil na narrativa de vida de Brandon patologiza a identidade transgênera que ela adotou e a fez se tornar um ícone. Isso é percebido como desrespeitoso e transfóbico — como um ataque à identidade de Brandon e uma tentativa póstuma de se apropriar da identidade da vítima.

Mas omitir a história de incesto de Brandon é desrespeitoso e fóbico para sobreviventes de abuso sexual infantil. Isso, inclusive, constitui uma tentativa póstuma de apropriação da identidade da vítima. Como uma sobrevivente, eu me sinto perturbada pelas histórias revisionistas de Brandon que omitem o status dela como uma vítima de abuso sexual infantil — e todas as verdades inconvenientes que, consequentemente, acompanham esse status.

Verdades inconvenientes tendem a permanecer desarticuladas, porque elas existem fora do quadro de referência em que foram estabelecidas. A primeira dificuldade que uma pessoa encontra ao falar sobre essa inconveniente verdade de Teena Brandon é a questão dos pronomes. Brandon foi sexualmente abusada como uma menina, nascida biologicamente fêmea, por um agressor adulto do sexo masculino que era um membro da família. O gênero da vítima e do agressor são detalhes clínicos importantes e fundamentais para o entendimento da agressão e do impacto dela em Brandon. Por isso, vou usar pronomes femininos para me referir a Brandon quando criança, ainda que, na vida adulta, Brandon se identificasse como homem. Isso coloca minha narrativa fora do protocolo aceitável para um diálogo respeitoso quando se fala sobre identidade trans.

Neste artigo, vou me referir a ela como “Brandon” porque, na vida adulta, ela escolheu adotar o sobrenome como primeiro nome. No título, usei o nome de registro, “Teena Brandon”. É uma outra verdade inconveniente que Brandon nunca tenha usado o nome “Brandon Teena”. Esse nome foi postumamente atribuído a ela, e então utilizado pela mídia. Era uma mentira conveniente, porque se tratava de uma inversão inteligente do nome de nascimento de Brandon, inverter o nome para corresponder com o gênero invertido. “Brandon Teena” é uma metáfora de experts em relações-públicas … e uma ficção.

O Incesto

Na biografia escrita por Aphrodite Jones, “All She Wanted” (“Tudo O Que Ela Queria”), o primeiro relato de abuso sexual aparece na entrevista com Sara Gapp, melhor amiga de Brandon quando Brandon tinha doze anos.”Ela [Brandon] me contou que um de seus parentes estava fazendo algo com ela que ela não gostava. Ela apenas meio que disse que, você sabe, ele colocava aquilo para fora e brincava um pouco com aquilo… e, ocasionalmente, ela disse, ele fazia ela tocar ele e brincava com ela e dizia ‘Você gosta disso. Você sabe que isso é bom… Você sabe que você não quer que eu pare.'” (Jones, 43) De acordo com Sara, “Naquele momento, ela não queria que ninguém soubesse o que aconteceu. Ela não queria o cara com raiva dela… Ela estava envergonhada. Não importava o que ele fez com ela, ela continuava gostando dele.” (Jones, 43)

O terapeuta de Brandon confirmou mais tarde a história de abuso, adicionando que, de acordo com ela, as sessões de abuso duravam horas e o molestamento aconteceu por muitos anos, entre a infância e a adolescência.  Em uma sessão de aconselhamento, Brandon falou sobre o assunto em um confronto com sua mãe JoAnn, mas pediu para que ela não confrontasse o agressor, que pode ter sido um dos parentes de JoAnn. A irmã de Brandon, Tammy, também uma vítima, confirmou a descrição de Brandon. É possível que esse abuso tenha sido um fator decisivo para Brandon deixar sua casa ao dezesseis anos, arrumar um trabalho e ir morar com sua então namorada, Traci Beels, uma colega de escola mais velha.

Respostas da Vítima ao Incesto

Em seu livro “Victimized Daughters: Incest and the Development of the Female Self” (“Filhas Vitimizadas: Incesto e o Desenvolvimento do Ser Feminino”), Janet Liebman Jacobs diz que o incesto representa “a mais extrema forma de objetificação sexual da criança fêmea na cultura patriarcal” (Jacobs, 11). Ela dá argumentos excelentes para demonstrar que o incesto tem um grande impacto no desenvolvimento da personalidade feminina, incluindo identidade de gênero.

O livro de Jacobs destaca importantes questões de desenvolvimento que influenciam a formação da personalidade de filhas abusadas sexualmente, e entre essas é a identificação com o autor. Anna Freud, filha de Sigmund Freud e fundadora da psicoanálise infantil, discorre sobre esse processo:

A criança introjeta alguma característica de um objeto de ansiedade e então assimila uma experiência de ansiedade pela qual ele [ela] acabou de passar… Ao personificar o agressor, assumindo seus atributos ou imitando sua agressão, a criança transforma a si mesmo [mesma] da pessoa ameaçada para a pessoa que faz a ameaça (Freud, 121). Afastando-se de sua mãe, quem ela entende como uma desonesta traidora-de-suas-iguais, a filha vitimizada se espelha no autor masculino, que, por ser seu abusador, é entendido como poderoso, e quem, por ser homem, ainda tem o potencial para idealização objetiva. “Feminino”, para a filha, se tornou o gênero de vítimas e traidoras. Segundo a pesquisadora de trauma Judith Herman, “em suas tentativas desesperadas de manter a fé em seus pais, a vítima desenvolve imagens altamente idealizadas de pelo menos um dos pais… Mais comumente, a criança idealiza o abusivo e desloca toda sua raiva sobre o inofensivo.” (Herman, 106). Descrevendo sua pesquisa com sobreviventes de incesto pai-filha, Herman nota que “com a exceção daquelas que se tornaram feministas conscientes, a maioria das vítimas de incesto pareciam considerar todas as mulheres, incluindo elas mesmas, desprezíveis” (Herman, “Father-Daughter Incest”  — “Incesto Pai-Filha” — 103).

Rejeitando a mãe e a própria identidade feminina, a filha vitimizada começa a imitar o agressor. E. Sue Blume, autora de “Secret Survivors” (“Sobreviventes Secretas”), descreve como a filha se reinventa através da identificação com o autor.

…vítimas crianças frequentemente se auto-recriam, desenvolvendo alter egos que oferecem uma alternativa positiva para elas próprias. Mais comumente, é uma persona masculina: as pacientes mulheres e sobreviventes podem forjar personalidades masculinas alternativas ou se unir a um companheiro que represente uma fantasia masculina. Isso é simples de entender: como uma vítima, e uma mulher, ela associa seu estado vulnerável com estar sem defesa; homens, no entanto, são vistos como fisicamente mais fortes e como um alvo difícil para a vitimização. (Blume, 85)

Expressão de Gênero de Brandon

Brandon não gostava de usar vestidos para ir para à escola. Quando a sua mãe perguntou a razão disso, Brandon disse que vestidos a deixava com frio (isso era em Nebraska) e que os meninos podiam olhar quando as meninas subiam as escadas. Por frequentar uma escola que exigia uniformes, ela usava calças e gravatas que eram o padrão para os meninos, mas que meninas também podiam usar. De acordo com a melhor amiga dela, Sara Gapp, “as pessoas insistiam em dizer que ela se vestia como um garoto. Ela não se vestia… Ela usava roupas que a deixava confortável. Ela não ia na seção de meninos pra comprar roupas. Eram roupas de mulheres que ela estava usando. Ela só gostava de roupas largas. Ela usava cabelos curtos. Isso faz dela um cara?” (Jones, 55)

A escolha de usar roupas largas é compatível com a escolha de muitas sobreviventes de abuso sexual. A “passabilidade” de Brandon como homem começou mais tarde, como uma brincadeira com uma adolescente que ligou para o número de Brandon por acidente e a confundiu com um menino no telefone. De acordo com Sara, “Até Liz Delano [a menina que ligou errado], se você a chamasse de menino, Teena ficava ofendida. Ela não queria ser reconhecida como um homem. Ela não se sentia como um homem.” (Jones, 54)

Brandon também foi descrita como se envolvendo na encenação do papel masculino. De acordo com sua irmã, Tammy:

A igreja era realmente importante pra ela. Nós estudamos em um colégio católico e eu acho que eles meio que fazem uma lavagem cerebral em você desde o jardim de infância para ser padre ou freira. Eles sempre trazem padres e freiras para falar que receberam o chamado e que você saberá quando o receber também… Teena nunca quis ser uma freira, ela sempre quis ser um padre, e eu achava engraçado porque eu tinha que participar de suas missas, eu ficava entediada a maior parte do tempo, pois ela lia a bíblia e nos fazia cantar. Eu acho que era um jogo que ela gostava, de vez em quando ela dizia ‘quero ser um padre algum dia’ (Jones, 34). Será que Brandon estava se identificando com o poder ou com um gênero? Considerando que a Igreja bania mulheres padres e negava que elas recebessem prestígio, cerimônias oficiais e a oportunidade de receber um cargo de liderança associado ao sacerdócio, seria irresponsável atribuir o desejo de Brandon de ser um padre a uma “disforia de gênero” – um termo que, quando aplicado a mulheres, pode também significar “resistência à casta sexual”. Identificação com papéis de gênero em uma cultura não podem ser separados de identificação com os privilégios que acompanham esses papéis. Como nota uma psicanalista pioneira, Karen Horney, “nós vivemos em uma cultura masculina, i.e estado, economia, arte e ciência são criações de homens e estão portanto preenchidas pelo seu espírito.” (Horney, 152).

O desconforto de Brandon com o desenvolvimento do seu corpo foi documentado. Em seu livro, Aphrodite Jones comenta que Brandon odiava a dor causada pelo crescimento dos seus seios e reclamava da dor de cólicas menstruais e da inconveniência de ter que lidar com uma grande quantidade de sangue mensalmente. Seriam essas as objeções de um “homem preso em corpo de mulher”, ou de uma garota particularmente agressiva e articulada, apavorada pela inconveniência, constrangimento e dor de um corpo adulto feminino?

O desconforto de Brandon é muito mais profundo do que apenas incômodo. Ela comentou que a “deixava enjoada” (Jones, 47) quando alguém encarava seu peito. Novamente, uma menina não precisa ser uma sobrevivente de incesto para demonstrar nojo quando alguém objetifica seu corpo em formação, mas uma sobrevivente de incesto que internalizou um ideal masculino tem de enfrentar um diferente conjunto de obstáculos:

Enquanto a puberdade representa uma época dolorida para muitas adolescentes, para filhas de famílias incestuosas essa transição à feminilidade adulta é especialmente difícil e confusa, pois seu corpo sinaliza não apenas a passagem para a maturidade feminina, mas o reconhecimento que o ideal de masculinidade internalizado é uma fantasia de outro e nunca poderá ser o seu verdadeiro eu. (Jacobs, 86) A rejeição ao seu eu feminino explica a frequência de desordens alimentares durante a puberdade de sobreviventes de incesto. Brandon, na época de sua tentativa de suicídio, foi registrada manifestando sérios transtornos alimentares.

Para a sobrevivente de incesto, o seu corpo se torna o símbolo de sua vitimização e, assim, o foco do seu desejo de controle. Além disso, a obsessão por um corpo magro, de “menino”, no lugar de uma expressão de feminilidade, talvez represente uma rejeição inconsciente do seu eu feminino, através do qual a filha tenta integrar o ego masculino internalizado com uma imagem externa de um corpo de criança masculinizado (Jacobs, 88).

A Lesbofobia de Brandon

Brandon relatou que, em outubro de 1990, foi estuprada. No mesmo outono, quando ela tinha quase dezoito anos, Brandon tentou alistar-se no exército. De acordo com seus amigos, ela estava determinada a fazer parte da Operação Trovão do Deserto. Infelizmente ela não passou no teste escrito. Isso parece ter causado uma reviravolta na vida dela. De acordo com sua mãe, “ela estava realmente chateada… Ela começou a mudar.” (Jones, 47)

Uma das maiores questões sobre as escolhas de Brandon era “por que ela não se reconhecia como lésbica?”. Ela talvez estivesse tentando fazer isso quando tentou se alistar. Por que um homem trans tentaria entrar em um ambiente totalmente feminino e estritamente segregado? O exército, apesar de suas políticas homofóbicas e persecutórias, sempre foi atraente para lésbicas por ter historicamente fornecido um ambiente de trabalho e vivência com pessoas do mesmo sexo por quatro anos.

Embora estupro e assédio sexual ocorram no exército, uma sobrevivente que associa sua violação com isolamento e exposição contínua ao ataque masculino pode sentir que existe segurança em um ambiente totalmente feminino, e especialmente se ela acabou de ser estuprada. Inclusive, as regras de uso de uniformes do exército fornecem cobertura protetora que retira a ênfase das características sexuais e desencoraja a objetificação sexual. Seria ingênuo assumir que Brandon, que na época do ensino médio identificou sua atração sexual por mulheres e até foi morar com uma namorada, não estava ciente da associação de lésbicas com o exército. Ela talvez estivesse procurando por lésbicas, o que talvez explique parte de sua reação extrema ao falhar no exame de admissão.

Se esse fosse o caso, por que então ela não procurou por comunidades lésbicas em sua cidade natal? Porque “não pergunte, não conte” (“don’t ask, don’t tell“) não era uma política que se aplicava a gays e lésbicas de classe baixa em Lincoln, Nebraska, em 1990. A homofobia por lá era evidente e potencialmente fatal. O assédio poderia acontecer por meio de ligações anônimas e obscenas, ameaças e insultos na rua e ataques físicos. Por estupro ser considerado como uma “cura” para o lesbianismo, o assédio muitas vezes poderia tomar forma como ameaça de estupro ou o ato em si.

Para uma jovem que tinha horror à sexualidade masculina e que havia dito aos amigos que estupro era um de seus maiores medos, e que tinha acabado de ser estuprada, a possibilidade desse tipo de assédio devia ser aterrorizante. O estupro de outubro deve, de fato, ter sido uma violência homofóbica dirigida contra ela, por ser uma mulher que não namorava homens e que tinha um histórico de morar junto com uma namorada.

Mas havia outro motivo para que Brandon não se identificasse como lésbica: lesbianismo havia se tornado uma questão de poder entre Brandon e sua mãe.

Em março de 1991, pouco tempo após Brandon ter sido rejeitada pelo exército, uma adolescente chamada Liz Delano ligou para um número errado e chegou até Brandon por engano. Liz achou que Brandon fosse um garoto adolescente, e Brandon entrou no jogo, chamando a si mesma de “Billy”. Como uma piada, ela colocou uma meia na sua roupa íntima e encontrou Liz num rinque de patinação. Liz continuou a ligar para a casa de Brandon e perguntar por “Billy” e JoAnn começou a entender que sua filha estava se passando por um garoto. Ela não estava feliz.

Algumas semanas depois, Brandon começou uma relação com Heather, uma garota de 14 anos e amiga de Liz. Ela foi morar com Heather, se passando por homem e chamando a si mesma de “Ten-a”. JoAnn Brandon entendeu que essa relação era sexual, e começou a telefonar para Heather e para a mãe de Heather, insistindo que o jovem rapaz que estava na casa delas era sua filha. Heather, assim como Brandon, era uma sobrevivente de incesto. De acordo com que conta a biografia de Jones, o foco da relação de Brandon era uma intensa interpretação romântica, sem sexo genital, e Heather respondeu imediatamente com gratidão pelo comportamento atencioso e ausência de pressão sexual. Brandon se ressentiu profundamente com a tentativa de JoAnn de sabotar a relação, e ressentiu especialmente a tentativa da mãe de colocá-la no papel de uma predadora sexual lésbica.

Para explicar as insistentes ligações de sua mãe, Brandon disse para Heather que ela nasceu hermafrodita, mas JoAnn tinha escolhido criá-la como uma mulher para “preservá-la.” (Jones, 89) De acordo com Heather, “ele [Brandon] tinha uma resposta legítima para tudo. Ele me diria que sua mãe não aceitava o fato de que ele era homem, que ela queria duas menininhas, que ela estava apenas pregando uma peça.” (Jones, 67) O conhecimento de hermafroditismo veio de um episódio do programa Phil Donahue.

JoAnn conta uma história diferente: “eu sabia que de repente haveriam festas regadas à cerveja e eu teria uma filha de dezoito anos por lá que não deveria estar bebendo ou fazendo coisa alguma.” (Jones, 67) Ela estava ciente de que qualquer atividade sexual entre Brandon e Heather, então com catorze anos de idade, constituiria em estupro presumido. JoAnn estava escandalizada pela alegação de hermafroditismo de Brandon. “Eu dei à luz ela; eu sei de que sexo ela é. Não tinha nenhum ‘anexo’ a ser removido.” (Jones, 68)

JoAnn começou sua campanha para tirar sua filha “do armário”. Ela mandou duas colegas de trabalho lésbicas para a casa da mãe de Heather. Elas tinham fotos de Brandon quando criança e uma cópia de sua certidão de nascimento. Como resposta, Brandon destruiu cada foto sua que encontrou pela frente. Percebendo que o lesbianismo era usado por sua mãe como tentativa de acabar seu relacionamento, Brandon começou a enfaixar os seios, falar mais baixo e usar o banheiro masculino em público.

Em junho de 1991, Brandon entrou com uma queixa contra sua mãe por assédio. Ela e Heather levaram a fita de sua secretária eletrônica para a polícia. Nela estava uma mensagem de JoAnn chamando-as de lésbicas e ameaçando expô-las. A insistência da mãe sobre o lesbianismo de Brandon tornou-se uma questão de poder tão crítica a ponto de envolver a polícia.

Lesbianismo era um problema familiar em outro sentido. No inverno seguinte à tentativa de Brandon alistar-se, sua irmã Tammy deu um bebê para a adoção — para um casal lésbico de San Francisco. Brandon insistiu para a irmã ficar com o bebê. Ela queria desperadamente ser tia. Mais tarde, um dos amigos gays de Brandon relataria como “ele [Brandon] odiava lésbicas; ele era completamente contra lésbicas” (Jones, 93) citando a adoção como razão para seu ódio.

Naquele mesmo verão, Brandon começou a soltar cheques sem fundo para comprar mantimentos e presentes para Heather. Ela conseguiu uma identidade falsa e estava conseguindo empregos como homem. Ela começou a falar para amigos que passou por uma operação de mudança de sexo em Omaha. Em outubro, ela foi citada em duas acusações de falsificação em segundo grau. As atividades ilegais de Brandon começaram a aumentar, e também seu consumo de álcool, comportamentos compulsivos e distúrbios alimentares. Finalmente, Sara, sua melhor amiga, decidiu ela mesma lidar com estes problemas. Ela encontrou com Heather e explicou a ela que Brandon era uma mulher. Heather acabou o relacionamento e Brandon tentou se matar tomando um vidro de antibióticos. Isto a levou a um centro de crise, e lá, finalmente, ela esteve apta a receber conselho profissional.

mugshot

Mugshot de Brandon

O Diagnóstico de Crise de Identidade de Gênero

Brandon ficou sete dias no centro de crise. O Dr. Laus Hartman escreveu o relatório inicial. O histórico de Brandon teria incluído doze acusações pendentes de falsificação de documentos, uma possível acusação de abuso sexual contra uma menor, um estupro não tratado em outubro de 1990, distúrbios alimentares, consumo excessivo de álcool e um relacionamento sexual em progresso com uma garota de catorze anos. O diagnóstico? Um caso leve de crise de identidade. Depois de apenas alguns dias de terapia, Brandon disse a sua mãe que uma operação de mudança de sexo havia sido sugerida por seu terapeuta.

O transexualismo foi ideia de Brandon ou dos terapeutas? Deb Brodtke, médica clinica em saúde mental, pegou o caso de Brandon no centro de crise e continuou a tratá-la por quase um ano como paciente externa. Há registros de Brandon dizendo a Brodtke que queria ser homem, “para não ter que lidar com as conotações negativas de ser lésbica e por sentir-se menos intimidada por homens quando se apresentava como um.” (Jones,83) Se isso for verdade, o que Brandon disse a ela não foi que se sentia como um homem preso a um corpo de mulher, mas uma mulher presa em um mundo em que é perigoso ser fêmea, e especialmente perigoso ser lésbica.

O livro de Jones não relata nenhuma tentativa da parte de Brodtke de desafiar a lesbofobia internalizada de Brandon. Não existe nenhum registro em sua narrativa de esforços para fornecer a Brandon informações acerca da cultura lésbica ou da história lésbica, informações sobre grupos de aceitação ou grupos para jovens lésbicas. Não existe nenhum registro de tentativas de criar contatos entre Brandon e lésbicas adultas que pudessem aconselhar ela. O diagnóstico de “crise de identidade de gênero” (GID, do inglês Gender Identity Disorder) reflete o histórico heterossexismo do campo da saúde mental, que tem tradicionalmente entendido o desejo gay e lésbico como um desejo de se tornar membra/o do outro sexo.

O diagnóstico de Brandon parece não ter incluído alcoolismo. É interessante notar como prevalece o uso e abuso de álcool no documentário, na biografia e no filme ficcional – e ainda assim, como parece estar ausente do plano de tratamento. Se o abuso de álcool houvesse sido identificado como pelo menos um fator contribuinte para o caos e tormento na vida de Brandon, me parece lógico que deveria ter existido alguma tentativa de incorporar um programa de recuperação no plano de tratamento.

E, finalmente, o diagnóstico de GID dado a Brandon, tão repleto de homofobia e preconceito de gênero, também parece ter ignorado o “elefante no meio da sala” — o incesto. A avaliação do tratamento e diagnóstico de Brandon não parece incluir Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, síndrome comumente associada a sobreviventes de abuso na infância, e especialmente sobreviventes de incesto. Isso é notável, dado o fato de que Brandon chega na clínica com um histórico de anos de abuso sexual na infância não tratados, um caso de estupro recente, um aumento gradual de atividades criminosas, um histórico de múltiplas identidades, predação sexual a meninas menores de idade, comportamento de risco extremo, evasão de cuidados médicos por medo de exames de rotina, distúrbios alimentares, idealização de suicídio, terror por estar num corpo de mulher, medo de homens, preferência por roupas que protegessem, quantidade compulsiva de banhos — seis ou sete por dia com mudança de roupa. (A obsessão de Brandon com limpeza continuaria por toda sua vida, e, de acordo com amigas/os, mesmo nos seus últimos anos de vida ela ainda tomava três ou quatro banhos por dia.)

Ao invés de um diagnóstico relacionado a trauma, o terapeuta aparentemente mandou Brandon para casa com informações sobre cirurgias de “redesignação sexual”, que incluiriam procedimentos como suturação da vagina, remoção dos seios, ovários e útero, transplantar os mamilos, construção de um “apêndice” usando pele das coxas e administração de esteroides. Amigas/os de Brandon reportaram que ela expressou acentuada ambivalência em relação a essas recomendações.

Sua irmã, Tammy, lembra da reação da família:

Basicamente, nós estávamos ficando preocupados com Teena. E nós não conseguíamos nenhuma ajuda para ela… você sabe, não para ajudá-la a lidar com o fato de ser gay ou qualquer coisa assim, mas para ajudá-la a encontrar quem ela era. Talvez ela precisasse de aconselhamento. E ela havia mencionado para nós o fato de ter tentado cometer suicídio, então nós meio que usamos isso como forma de colocá-la lá [no Hospital Geral Lincoln], e o psicólogo de lá disse que Teena precisava de ajuda a longo prazo… o que eu não sei se era realmente o caso, mas eles mandaram ela para o centro de crise, e… Eu gostaria de ter realmente sabido o que Teena disse a eles ou o que esses médicos disseram a Teena mas, resumindo, ela saiu de lá dizendo ‘Eu quero mudar de sexo’, e… ‘Eles me disseram que eu preciso fazer isso e aquilo.’ E eles podem ter dito isso a ela, mas eu não sei se era o que ela realmente queria fazer.” (Muska) Ao defender a cirurgia que facilitaria a transição de Brandon, o terapeuta a orientou acerca do estabelecido ano de probação, no qual a paciente seria requerida a viver como homem. Teria Brandon descrito suas estratégias correntes para ser vista como homem nas relações – estratégias que envolviam manipulação e estupro de menores inexperientes e ingênuas, que provavelmente não tinham como ser assertivas ou suficientemente educadas para confrontar os subterfúgios sexuais de Brandon? Se o terapeuta chegou a nomear os problemas éticos, legais e de segurança de tais estratégias, Brandon nunca viu nenhuma razão para questioná-las. De fato, armada com o diagnóstico oficial de “Axis 1: transexualismo,” Brandon aumentou suas manipulações e seduções.

Depois do aconselhamento, seu repertório de mentiras se expandiu e passou a incluir histórias sobre sua avó ter planos de enviá-la para a Europa para fazer a cirurgia, e de datas marcadas para mastectomia bilateral em junho de 1993. Ela disse a suas várias namoradas em diversos momentos que sua vagina havia sido costurada, que “algo” havia sido implantado e eventualmente cresceria como um pênis e que ela havia começado terapia hormonal. Assim como as histórias de hermafroditismo que precederam o diagnóstico de transexualismo, todas eram mentira.

Misoginia, dissociação e GID

De acordo com os estudos de Jacobs e Herman, o repúdio da filha vitimizada pela identidade feminina e sua internalização de um homem idealizado representam respostas para o abuso sexual na infância.

Se gênero é considerado um agregado de marcadores de casta sexual em um sistema de dominação baseado no sexo biológico, então é simplista e enganador caracterizá-lo como “performativo”. Visto no contexto da cultura patriarcal, gênero é um emblemático sistema de dominação no qual mulheres são universalmente oprimidas como uma casta.

A filha vitimizada que adota uma persona masculina não está “fodendo com o gênero”. O gênero é que tem fodido com ela e, em uma tentativa de identificar o poder que tem machucado ela, ela passa a adotar a estratégia de uma criança desesperada cuja única opção é alterar a percepção dela sobre si mesma.

O que o movimento transgênero chama de “foder com o gênero” (“gender-fucking”) é simplesmente um exercício de mover marcadores em vez de realizar qualquer mudança fundamental no gênero. O gênero ainda existe. Ainda é uma estrutura de organização para a sociedade. O que muda é que você apenas “representa” ele de forma diferente: passa a ser permitido anexar o gênero em diferentes corpos. O objetivo das políticas transgêneras é permitir que você “seja” o gênero que você “é”. No entanto, ser o seu gênero ainda significa o que você veste, o que você faz, como você se expressa e ainda é algo ligado à noções fundamentais do que é ser homem e mulher… E não é surpresa alguma que o que é ser homem e o que é ser mulher dentro dessa visão segue exatamente o rastro do que já é definido como mulher e homem. (Corson, 3) As políticas transgêneras não destroem as posições de homens e mulheres na hierarquia de gênero e sim “fazem com que a escolha das mulheres de se opor a essa hierarquia (sendo mulheres e em prol das mulheres) se torne incompreensível.” (Corson, 3)

Além da sua participação no amplo sistema político de dominação masculina, o diagnóstico GID atua também em uma frente mais pessoal, para proteger os autores. Se a “disforia de gênero” da filha vitimizada é uma resposta pós-traumática à violência sexual, ela reflete uma tentativa de dissociar, de arrancar o trauma.

Um trauma que não pode ser adequadamente representado ou narrado permanece escondido. É um pedaço alienado de experiência que resiste a qualquer assimilação da pessoalidade do hospedeiro do qual se alimenta. A dissociação também pode ser entendida como um ato narrativo. Narra a fragmentação, fratura, ruptura, disjunção, e incomensurabilidade. (Epstein e Lefkovitz, 193) A dissociação é uma estratégia de sobrevivência.

Ela fornece uma maneira de sair de uma situação intolerável e psicologicamente incongruente (duplo-cego), ergue barreiras na memória (amnésia) para manter acontecimentos e memórias dolorosos esquecidos, funciona como um analgésico para prevenir que se sinta dor, permite que se escape viver o acontecimento e se escape de responsabilidade/culpa, e pode servir como uma negação hipnótica do sentido do eu. A criança pode começar a usar o mecanismo dissociativo espontaneamente e de forma esporádica. A vitimização repetida e a injunção do duplo-cego, ela se torna crônica.  Talvez futuramente se torne um processo autônomo conforme o indivíduo cresce (Courtois, 155). Dissociação é uma maneira de alterar a consciência. Como milhões de sobreviventes podem atestar, essas memórias dissociadas não foram embora realmente. Se elas jamais vão emergir à mente consciente ou não, elas continuam a exercer sua influência por meio de transtornos somáticos, flashbacks, distúrbios do sono, sonhos inoportunos e transtornos dissociativos. Memórias reprimidas não vão embora só porque alguém deseja que elas desapareçam. A sobrevivente assume o controle de sua vida entendendo e assimilando o trauma reprimido, não reforçando a divisão. E esse é justamente o porquê de o diagnóstico GID ser tão potencialmente pernicioso quando aplicado à filha vitimizada.

Quando o diagnóstico GID substitui identificação e tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, isso reforça a divisão que foi um resultado do trauma infantil. Por mais “queer” que seja o diagnóstico, não se desvia de um modelo de normatividade baseado em papéis de sexo-casta tradicionais. O diagnóstico GID que recomenda transexualismo como uma “cura” compromete seriamente o potencial de recuperação da filha vitimizada dos efeitos de seu trauma. Ao invés de oferecer técnicas para ajudar a reobtenção de sua memória e reintegração do material dissociado, o diagnóstico GID possibilita e encoraja investimentos ainda mais profundos no transtorno, ao oferecer uma promessa falsa de legitimar essa identidade dissociativa “ahistórica” (sem perspectiva histórica ou contexto) por meio de “redesignação” de gênero. Ao invés de desconstruir, isso explora a síndrome.

Revitimização

Finalmente, quando a identidade transgênera é uma extensão e amplificação da identificação da filha vitimizada com o agressor, uma consciência dividida continua caracterizando a psique de sobrevivência, que coloca-se em cenários de revitimazação.

Tanto na ação quanto na imaginação dos sobreviventes, existe uma relação tênue entre o agressor masculino internalizado e a criança feminina violada. Enquanto a introjeção do agressor pode, por vezes, mascarar a identidade da filha como vítima e, assim, contribuir para a construção de uma personalidade falsa, padrões de revitimização revelam a dimensão em que o eu da fêmea desprotegida e violada também caracterizam a personalidade da filha vitimizada. (Jacobs, 99) Revitimização foi a história da curta vida adulta de Brandon, enquanto ela usava várias identidades fraudulentas que resultaram em detenção e encarceramento, seduzia garotas menores de idade que a rejeitavam quando descobriam o segredo dela, e fazia crescentes e perigosas alianças com homens violentos e homofóbicos. Os fingimentos sexuais de Brandon, fingimentos que se intensificaram após seu diagnóstico oficial como transexual, colocaram suas namoradas em risco de formas bem reais. Suas namoradas em Lincoln foram provocadas e assediadas por seus amigos, mas quando Brandon se mudou para a mais provincial Richardson County, os riscos tornaram-se ainda maiores. Ambas as amigas de Brandon de Humboldt, Lisa Lambert e Lana Tisdel, estavam sendo assediadas em seus locais de trabalho e em eventos sociais. Umas das amigas de Lisa descreveu o dilema de Lisa: “Todo mundo em Humboldt sabia sobre Brandon. Lisa não tentou esconder. Lisa não conseguia acreditar que algo assim tinha acontecido a ela. Ela deixou claro que ela estava muito preocupada para impedir a entrada de Brandon. Ela estava brava e magoada em relação a isso, mas ela não queria machucá-lo [Brandon], não queria colocá-lo nas ruas.” (Jones, 205) Sua compaixão custaria sua vida.

A situação de Lana era complicada por sua amizade com os ex-condenados Tom Nissen e John Lotter. Quando Brandon foi presa por falsificação de cheques em 15 de dezembro de 1993, ela telefonou para Lana para socorrê-la, mas Lana estava horrorizada por descobrir que seu “namorado” estava sendo colocado na ala feminina da cadeia. Ao invés de ir ela mesma, Lana mandou Tom, seu ex-namorado, para socorrer Brandon. A prisão foi anunciada naquela semana pelo Jornal de Falls City, tornando pública a identidade biológica de Brandon como mulher, e, consequentemente, a participação de Lana no que seria percebido como um relacionamento lésbico. Amigos de Brandon acreditam que o socorro foi o início do que acabou em um subsequente estupro. Nissen e Lotter parecem ter se sentido enganados e humilhados pela representação de gênero de Brandon. Nas palavras de um amigo, “Ele [Brandon] representou um jogador e [o jogador] foi vingado por isso.” (email privado, 20 de dezembro de 2004)

lana

Brandon & Lana

No entanto, de acordo com Jones, Lana tentara proteger Brandon, mesmo depois de descobrir ter sido enganada. Ela disse a sua família, a Tom Nissen e a John Lotter que tinha visto o pênis de Brandon. Mas Tom e John não se convenceram, e eles realizaram sua própria investigação — despindo e revistando o corpo dela. Ambos eram homens com histórico de violência, e eles decidiram resolver a questão com as próprias mãos. Pode ser que a segurança de Lana estivesse seriamente comprometida uma vez que havia sido descoberto por esses homens que ela tinha estado em um relacionamento sexual com uma mulher biológica e mentiu para proteger o fato.

Três dias depois, Brandon, por insistência de Lana, foi à polícia denunciar o estupro. A polícia questionou John e Tom, mas não os prendeu. John negou o estupro, mas disse que Lana tinha pedido a ele para encontrar um jeito de definir o sexo de Brandon. Em 30 de dezembro, os dois homens foram à casa de Lana procurando Brandon, mas Brandon, que já não era mais bem-vindo por lá, estava abrigado na chácara de Lisa. Lana relatou que John afirmou que “estava se sentindo afim de matar alguém” e disse que ela, Lana, era a próxima. Isso pode ter sido o porquê da mãe de Lana ter dito a eles onde Brandon estava escondido. Depois que eles foram embora, nenhuma ligação foi feita para alertar Brandon ou Lisa que os homens estavam a caminho. Testemunhos conflituosos sugerem que Lana pode na verdade ter estado no carro, ou até mesmo na casa, na noite dos assassinatos.

Considerações sobre o tratamento

Muitos aspectos da vida de Brandon teriam sido mais fáceis numa cultura que não fosse transfóbica, mas a recuperação do trauma do incesto não seria um desses aspectos.

Recuperação de sexualização traumática… começa com o processo de reintegração pelo qual o trauma original é trazido à consciência. Só então a idealização do autor pode dar lugar à realidade de sua violência sexual. Com a desconstrução de um pai idealizado, a filha pode começar a recuperar e redefinir o eu feminino, diminuindo o impacto do agressor internalizado (Jacobs, 165). Quando a internalização desse ideal se torna incorporada à identidade de gênero da filha vitimizada, especificamente como uma resposta ao trauma, esse tipo de desconstrução é impedida. Essas talvez tenham sido tão machucadas pelo incesto que pode parecer mais oportuno e terapêutico adotar uma identidade de gênero diferente que não seja tão aparentemente carregada com associações traumáticas. Essa identidade, no entanto, não pode – por definição – oferecer a integração que caracteriza recuperação.

Então, como a filha vitimizada se cura? Em “Victimized Daughters” (“Filhas vitimizadas”), Janet Liebman Jacobs apresenta alguns estágios associados à recuperação, notando que nem toda sobrevivente vivenciará essas mudanças (Jacobs, 136):

  • Desconstrução do pai idealizado.
  • Reconhecimento do senso de eu construído ao redor do ideal de masculinidade encarnada no autor.
  • Se distanciar do agressor.
  • Identificação de si mesma como vítima (o que pode incluir identificação com outros membros sem poder da sociedade, o que permite a ela desconstruir o “eu ruim” do cerne de seu desenvolvimento).
  • Reconhecimento da vitimização passada integrada no contexto do trauma sexual original (o que pode resultar em estabelecer e manter melhores limites em relações potencialmente vitimizadoras).
  • Recuperação do eu sexual (como um resultado da desconstrução do autor idealizado e desenvolvimento de um senso de eu separado, o que pode envolver respostas dissociativas controladoras e flashbacks inoportunos, e a reestruturação ou eliminação das fantasias sexuais que mostram a vítima se libertando do agressor).
  • Auto-validação e reconexão com a persona feminina (através de transferência terapêutica que modela cuidados respeitosos, reconexão ou empatia com a mãe, ou identificação com o poder espiritual feminino).
  • Reintegração por meio de imaginação criativa.

Conclusões

Durante a vida adulta, Brandon exibiu comportamentos coerentes com o diagnótico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, uma síndrome associada a sobreviventes de incesto. Disforia de gênero foi identificada clinicamente como uma resposta ao abuso sexual infantil e incesto, e é lógico que se questione se foi terapêutico, no caso de Teena Brandon, ou não o diagnóstico de transexualismo e recomendação de cirurgia de redesignação sexual em vez de focar no diagnóstico e no tratamento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo. Se a cura de abuso sexual infantil e incesto requerem reobtenção e assimilação de material dissociado, é um forte argumento afirmar que o diagnóstico do transexualismo de Brandon serviu para aumentar sua dissociação, impedindo a recuperação do incesto e permitindo um agravamento de comportamentos de alto risco baseados numa identidade dissociada.

Como uma nota de rodapé final, um conhecido de Brandon dividiu essa história ocorrida aproximadamente na semana entre o estupro e o assassinato:

No dia de natal de 1993, quando Lisa trouxe Brandon de volta… de Falls City, [um amigo] encontrou com ele [Brandon] na porta e disse “oi Brandon”. Em resposta [o amigo] ouviu de Brandon que não existia nenhum Brandon, Brandon se foi. Seu nome é Teena. Aquilo não mudou em nenhum ponto na última semana. (email pessoal, 20 de dezembro de 2004).

Notas de Trabalho

“A verdade inconveniente sobre Teena Brandon” é um artigo inconveniente. Ele tem um histórico de publicações rejeitadas. Ele foi entendido como transfóbico, e tem sido intimidado por romper com princípios da Teoria Queer. Isso já era esperado, porque ele é sobre trauma, e trauma é um trauma especificamente porque resiste ser aceito ou assimilado. Se esse paper se encaixasse perfeitamente nas categorias existentes de identidade, não teria necessidade alguma de escrevê-lo e Teena Brandon talvez ainda estivesse com vida hoje em dia.

Esse artigo pertenceria a uma edição de periódico intitulada “As lésbicas serão exterminadas?”. A resposta é “não”, se isso significa que deveria se insistir no fato de que Teena Brandon era realmente uma lésbica com um caso de identidade mal incompreendida. Esse paper não faz essa reivindicação. O que ele reivindica é o status dela como uma sobrevivente de incesto não recuperada e com Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, que parecia estar em síndrome ativa até o momento de sua morte.

Eu acredito que esse paper pertence sim a essa edição de Trivia, e por isso o submeti. Muitas lésbicas são sobreviventes de abuso sexual infantil. Na última década, pode-se observar que está aumentando o número de mulheres biológicas que anteriormente se identificavam como lésbicas (como Brandon) transicionando com o objetivo de reivindicar identidades masculinas. Posições nas comunidades lésbicas e trans se tornaram polarizadas, abrindo profundas divisões entre nós. Acusações de “essencialismo”, “patologização”, “misoginia” e “privilégio patriarcal” são gritados pra lá e pra cá nas linhas de batalha.

Pela minha experiência, conflitos prolongados podem ser um indicativo de contextos condebidos de modos inadequados e pouco precisos. A pesquisa de trauma oferece perspectivas identitárias radicais, tanto para lésbicas quanto trans, e abre um novo espaço para diálogo, espaço com possibilidade de pontos em comum. Instruir sobre trauma pode informar o feminismo radical, e eu escrevi esse paper com essa intenção.

Este é um paper lésbico que pertence a um espaço lésbico? Essa questão pode ser debatida de forma acalorada, e o que melhor qualifica a inclusão?

 

Sobre a autora

Carolyn Gage é uma dramaturga lésbica e feminista, performer, autora e ativista. Autora de nove livros e mais de 25 peças, ela é a vencedora de 2009 do Lambda Literary Award, na categoria drama. Seu site é: www.carolyngage.com.

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