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Dworkin x Ginsberg: uma história que se repete

Ouço falar/leio sobre a Andrea Dworkin já faz alguns anos. Pessoas contra o feminismo adoram usá-la como “mau exemplo”, afinal, ela é a personificação do estereótipo da mulher feminista. Como ousou ser gorda, não pintar ou alisar o cabelo e usar macacões jeans confortáveis durante grande parte da vida? Que crime! Como ousou também nomear homens como agentes das opressões contra as mulheres? E mais: como ousou problematizar a sagrada tríade do P – pedofilia, pornografia e prostituição – em seus trabalhos?

Ao ler a autobiografia dela, intitulada Heartbreak: The Political Memoir of a Feminist Militant (caso leia em inglês, você pode baixar a obra completa de Dworkin neste link), um episódio específico foi bastante simbólico pra mim no que diz respeito à perseguição que ela sofreu e que muitas outras feministas sofrem. E mostra também como homens, independente do que façam, são endeusados, enquanto mulheres estão sempre sendo atacadas.

É o seguinte: a Dworkin era grande amante de música e literatura. Apreciava principalmente blues e jazz. E vários escritores homens. Entre eles, estava Allen Ginsberg, notório poeta da geração beat. Quando adolescente, Dworkin enviava poemas pra ele avaliar e participava de leituras em que o escritor estivesse presente. Certa vez, após uma dessas leituras, ela decidiu se apresentar – Dworkin afirmava ser realmente muitomuito fã de Ginsberg. Trocaram telefones (ele disse “me liga, mas não vá para Nova York apenas para me ligar ou você vai me deixar louco”) e, meses depois, se encontraram e conversaram bastante. Em outro momento, Dworkin ligou mais uma vez. Embora pudesse encontrá-lo de novo, não o encontrou. “Eu não sabia que isso era um movimento perspicaz da minha parte para me tornar a escritora que eu queria ser. Ser escravizada por um ícone te impede de se tornar você mesma”, escreveu.

Em 1974, Dworkin foi fotografada por Elsa Dorfman ao lançar o livro Woman Hating. A fotógrafa se tornou sua amiga e era amiga próxima de Ginsberg também. Dworkin o reencontrou, então, no bar mitzvah do filho de Dorfman, cuja madrinha e padrinho eram respectivamente ela e… Ginsberg (todos eram de família judia). Na época da celebração, Dworkin já havia lançado outros livros. Já era adulta e escritora, logo, sua relação com o poeta não seria mais a de jovem fã deslumbrada.

Andrea Dworkin por Elsa Dorfman, 1974.

Andrea Dworkin por Elsa Dorfman, 1974

No dia do bar mitzvah, os jornais estampavam que a Suprema Corte norte-americana havia proibido pornografia infantil (o que me espantou bastante. Isso foi em algum período dos anos 80 – ou seja, praticamente ontem). Dworkin sabia que Ginsgberg estaria boladão: ele era membro da North American Man/Boy Love Association (NAMBLA), associação que defende que a pedofilia não seja socialmente condenável e que noções sobre consentimento sejam revistas (a partir dos anos 50, aliás, houve uma certa movimentação a favor dessas questões. Felizmente, não é mais uma bandeira política vista com bons olhos. Infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade que naturaliza sim a pedofilia. Assunto pra depois). Em site próprio, a organização diz acreditar que existam relações CONSENSUAIS entre homens e garotos. Enfim. Voltando à comemoração, Dworkin não queria desviar o foco de seu afilhado para um debate político. No entanto, Ginsberg a seguia pra todo lado. E ela relata que ele fez comentários desagradáveis durante o evento, tipo perguntar detalhes de abuso sexual sofrido por ela ou apontar pra garotos de 12/13 anos dizendo que eles estavam prontos pra “foder”, entre outras coisas. Ao tocar no assunto do banimento da pornografia infantil, ele disse que a direita queria colocar ele na cadeia e Dworkin respondeu: “sim, eles são muito sentimentais. Eu te mataria”.

Amigas & rivais

Amigas & rivais

As ideias de Dworkin eram incômodas pra todos os homens: de esquerda, direita, apolíticos, heterossexuais, gays, etc. Os mais alinhados com a direita a acusavam de fanática e clamavam por liberdade de expressão (que estava mais pra liberdade de opressão, afinal, a luta dela não era contra discursos apenas, mas contra práticas que confirmadamente estragavam – e ainda estragam – milhares de vidas). E quem era mais de esquerda a aproximava dos direitistas, alegando moralismo caso o debate girasse ao redor de problematizações de práticas sexuais.

Dworkin foi perseguida e rechaçada por várias pessoas, sem nunca ter cometido um ato negativo contra a vida de alguém. Zombaram de violências cometidas contra ela, como acontece com grande parte das mulheres. Seu talento como escritora era e ainda é desacreditado por pessoas que nunca abriram um livro dela por conta de falas deturpadas e estereótipos sobre sua aparência. E Ginsberg? Bom, ele era sim um grande escritor e, antes de qualquer coisa, ele é lembrado por isso. Suas ideias eram tratadas como progressistas e a favor da liberdade de expressão. Sua aparência, também fora do “padrão de beleza”, era pouco questionada. E ele queria transar com garotinhos. Mas Dworkin que era considerada louca, por se opor a esse “direito” sagrado de um homem enfiar o seu pinto onde bem entender. Se observarmos o nosso contexto atual, essa é uma história que se repete o tempo inteiro: feministas que elaboram críticas que acabem com a diversão cruel de homens sempre são tachadas de perigosas e exageradas, porque o isolamento é a melhor forma de silenciamento.  E por isso achei essa história tão simbólica. Por deixar explícito o lugar de cada pessoa de forma bem clara, ainda que o senso comum tente inverter a situação.

Nós estamos de olho.