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Beleza, feiúra, estigmas e xingamentos como ferramentas para silenciar mulheres

“Quando se atrai a atenção para as características físicas de líderes de mulheres, essas líderes podem ser repudiadas por serem bonitas demais ou feias demais. O resultado líquido é impedir que as mulheres se identifiquem com as questões. Se a mulher pública for estigmatizada como sendo ‘bonita’, ela será uma ameaça, uma rival, ou simplesmente uma pessoa não muito séria. Se for criticada por ser ‘feia’, qualquer mulher se arrisca a ser descrita com o mesmo adjetivo se se identificar com as ideias dela”

Naomi Wolf em O Mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres

Desde cedo, garotas são doutrinadas a acreditarem que são inferiores e incompletas. “Menina não pode fazer isso”, “se você falar assim, ninguém vai te querer”, “tira a mão” daí” ou “comporte-se como uma mocinha” são frases comumente utilizadas durante todo o processo de tentar transformar um ser humano do sexo feminino em uma mulher. É claro que o repertório varia de acordo com fatores como cor de pele, condição econômica, etnia, peso e afins, até mesmo porque existem hierarquias entre as próprias mulheres. Enquanto se exige força de umas ou delicadeza de outras, por exemplo, é possível detectar a existência de alguns pontos em comum. Um deles é a validação masculina como um mecanismo que, a partir de premissas irreais e excludentes, define o quanto uma mulher vale.

A partir da crença de que é incompleta, uma mulher começa a ser vista como menos despedaçada a partir da legitimação de um homem – ou de vários. Porque não basta um ficante, um namorado, um marido, é preciso também agradar aos passantes na rua, o vizinho, o chefe e o olhar masculino generalizado que embasa os padrões atuais de beleza e de comportamento. Em 1975, o conceito de male gaze (ou olhar masculino, em tradução livre) foi cunhado no artigo Visual Pleasure and Narrative Cinema, da feminista e crítica britânica Laura Mulvey. O texto basicamente argumenta que as mulheres são representadas nas telonas como objetos que devem agradar a ótica do homem “padrão” – ou seja, do cara que possui algum poder de consumo e respaldo no meio em que vive. A provocação ainda hoje gera debates e foi estendida por diversas teóricas feministas para a sociedade como um todo pois esse olhar vai além dos enquadramentos de câmera.

Pouco antes da Mulvey, o crítico cultural John Berger, também britânico, escreveu no livro Ways of seeing (que tem série televisiva de mesmo nome) sobre como homens olham para as mulheres enquanto as mulheres olham para si mesmas sendo observadas pelos homens. Ainda que o foco dele tenha sido nos cânones da arte ocidental, essa análise pode se enquadrar também para além das galerias e afins. Logo, considerando tudo isso e partindo desses pontos, as mulheres se pegam constantemente preocupadas com a própria aparência, com o próprio comportamento, com as próprias escolhas. Com tudo. Não é possível falar ou viver livremente pois a necessidade de aceitação é mais do que uma questão social: em muitos casos, significa também algum tipo de segurança, ainda que ilusória.

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Ilustração exclusiva pela artista Mariana Destro

Ilusória pois, na prática, as mulheres que agradam o olhar masculino também sofrem assédios e coisas do tipo, ainda que as que não agradem costumem sofrer mais violentamente e constantemente as consequências de serem quem são. Como já falei, a respeitabilidade da mulher é medida por quanto um homem – ou um conceito que parte do olhar masculino – define o valor dela. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie discute em Sejamos todos femininistas (famoso discurso que virou também um livro) sobre como perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocuparem com o que os meninos pensam delas.

É desde cedo que as mulheres aprendem a observar a si próprias a partir de fundamentos que partem do olhar do outro – e se constroem com base nessa visão. A autora fala também que os homens são pressionados a serem sempre durões e acabam com o ego muito frágil, afinal, quem consegue ser “machão” e indestrutível o tempo todo? Isso faz com que as mulheres acabem empurradas para estarem sempre cuidando do frágil ego masculino. Não basta terem que lidar com as expectativas que os homens possuem delas, é preciso também cuidar dos sentimentos deles em relação a eles mesmos. Esse trabalho emocional é extenuante e faz com que as mulheres se diminuam para que a grandeza masculina possa ser enaltecida.

Portanto, é possível perceber que o olhar masculino não é apenas um enquadramento reducionista, mas também utópico: deseja mulheres perfeitas e imóveis, como pinturas a óleo, ao mesmo tempo em que é desejável que elas sejam emocionalmente e/ou fisicamente fortes e façam tudo por eles. O objetivo é que elas continuem a servir como esposas-acessório ou mão-de-obra precarizada sem reclamar muito e, apesar de tudo, sonhando com um príncipe encantado que mostre para o mundo, a partir do reconhecimento dele, o quanto elas são valorosas e merecedoras de coisas boas. Dentro desse cenário, o discurso da mulher é fortemente atrelado à aparência dela e, como mostrado na frase da Wolf que foi colocada ali no início deste texto, não existe saída.

Uma mulher considerada bonita será tratada como uma ameaça ou terá o rótulo de burra atrelado à ela, para que suas palavras percam força. Uma mulher considerada feia será ridicularizada, e todos os seus questionamentos serão tidos como frustração, queixa, bobagem. Além disso tudo, existe uma força patriarcal que busca desunir as mulheres fazendo-as terem medo de ter uma opinião. “Nossa, mas você é tão inteligente, e concorda com essa daí, que é burra, e só conseguiu publicar um livro porque dormiu com alguém, porque é bonita?” ou “claro que você concorda com essa baranga, você é baranga também kkkkkkk” ou “quem pensa igual à Fulana é porque é feia que nem ela” ou “quem pensa igual à Cicrana é porque é fútil que nem ela” são algumas das muitas frases possíveis, e o intuito de todas elas é o mesmo: calar a voz de mulheres – e diminuir a força do discurso delas.

No período das últimas eleições isso foi exemplificado com clareza. Quem votasse em sei lá quem era mais bonita, quem fizesse isso ou aquilo era feia. Perceba que as que recebiam elogios eram sempre as que estavam de acordo com a vontade dos homens que proferiam as categorizações, óbvio. E isso acontece o tempo inteiro, em todos os espectros políticos, mas não dá para negar que mais em uns do que em outros.

Quanto mais medo uma mulher tem de expor as próprias opiniões ou de endossar a opinião de outras mulheres, mais difícil fica unir demandas em comum. Não é à toa que tantos homens gostam de rotular feministas como feias, peludas, mal comidas, lésbicas e etc, como se, oh, essas coisas todas fossem muito ofensivas. São justamente as feministas que estão tentando libertar as mulheres das amarras do patriarcado e, por isso, são consideradas perigos que devem ser combatidos. E não é à toa também que, infelizmente, mulheres em geral e até mesmo muitas que se consideram feministas tentam se vender como dóceis, tranquilas, depiladas e heterossexuais para não serem colocadas no mesmo pacote das que desagradam o olhar masculino.

É uma armadilha perfeita essa em que as mulheres foram colocadas: voz, aparência e, consequentemente, peculiaridades e necessidades acabam soterradas embaixo do constante medo de sofrer violência, rejeição e tudo mais. Consideradas e tratadas como incompletas, um rompimento brutal com um sistema machista que julga e oprime se torna difícil, afinal, é preciso sobreviver. Além disso, afeto, autoestima, segurança, emprego e afins são também coisas importantes que podem estar em jogo quando uma mulher se posiciona assertivamente, se veste e comporta como quer ou abala as estruturas de poder ao redor dela. A possibilidade da estigmatização está sempre por perto, como um sopro quente na nuca que causa medo e incômodo. Como uma eficaz tática de vigilância.

O que fazer, então? Também estou tentando descobrir. Penso em algumas saídas, como, por exemplo, seguir lutando cotidianamente contra os mil tentáculos do racismo, uma das maiores ferramentas utilizadas para manter padrões de beleza e, principalmente, desigualdade social e econômica. No Brasil, o fenótipo que mais sofre preconceito é também o que mais precisa garantir os próprios direitos, e isso não é coincidência. Não é coincidência perceber que quando uma mulher negra levanta as próprias questões logo tenha o próprio comportamento rotulado como “raivoso” ou escute alguma ofensa em relação à própria aparência, porque o intuito não é apenas silenciá-la naquele momento e sim fazer com que ela se desgoste tanto a ponto de silenciar-se nas próximas vezes por conta própria – e internalize o papel de subalternidade.

Outra coisa importante é que mulheres em geral rompam com o ciclo da vigilância e parem de julgar umas às outras por conta de roupa, peso, cabelo, relacionamento e afins. Isso é algo que só colabora com a criação de mais estigmas e com a desunião feminina. A vadia de amanhã sempre pode ser você. A feia de amanhã também. A isolada. A que não merece nada. E assim vai. Isso não significa que todas as mulheres devem ser melhores amigas ou que nunca possam ser criticadas, só significa que é importante ultrapassar as fronteiras da misoginia para que mulheres possam ser julgadas, para o bem ou para o mal, a partir de motivos concretos e relevantes.

Não acaba por aí. Seria interessante se as mulheres tivessem um olhar mais justo e amoroso não apenas com as companheiras ao redor, mas com elas próprias. É preciso tentar construir um novo universo em que a luz interior emane de dentro para fora, e não o contrário. É preciso aceitar a própria humanidade e imperfeição ao tentar edificar uma percepção nova sobre si mesma que não parta apenas do olhar do outro. Longe de mim tentar soar como uma espécie de autoajuda cretina. Só acho que, em um nível individual, pode ser importante tentar se conhecer melhor para, a partir daí, se definir a partir dos próprios gostos e desejos e não da mera vontade alheia. Isso ajuda mulheres a observarem melhor quem são, quem querem ser e quem podem ser para além das expectativas do desejo masculino. E ajuda também a bloquear julgamentos destrutivos.

A partir do ponto anterior, é possível ampliar o olhar em relação a mulheres admiráveis e buscar referências e informações que valorizem mais do que rostinhos considerados bonitos. Tenho uma amiga que é fã da Marilyn Monroe, por exemplo, e ela sabe várias coisas interessantes sobre a carreira dela que envolvem aulas de atuação e envolvimento com política. E existem mulheres de muitas outras áreas que merecem reconhecimento porque escrevem, cantam, ensinam, tocam um instrumento, pilotam aviões, rebocam paredes, pesquisam ou fazem milhões de outras coisas de uma maneira formidável.

Muitos são os homens reconhecidos pelos talentos e habilidades, inclusive homens considerados feios pelo padrão vigente. No entanto, essa sociedade faz com que as mulheres precisem sempre passar por avaliações estéticas e a partir do momento em que agradam ou não o olhar masculino é que o destino delas é traçado. E nesses tempos hiperimagéticos, principalmente, muitas pessoas são glorificadas simplesmente por se “manterem jovens”, possuírem dinheiro e estarem dentro de um padrão branco e heteronormativo de beleza. Ultrapassar esse ciclo é não apenas reconhecer o trabalho de outras mulheres, mas adquirir mais conhecimentos e trabalhar a própria inteligência – porque esse culto à aparência é também uma forma de estimular emburrecimento coletivo, controle social e gatilhos de consumo, né?

Dentro de uma sociedade que se organiza a partir de hierarquias diversas, as mulheres se tornam ainda mais vulneráveis (psicologicamente, economicamente e afins) dependendo do lugar em que se encontram dentro dessa escala – embora, de um certo modo, todas estejam correndo riscos. Sim, meu sonho é chegar em um patamar que ofensas ridículas não façam nem cócegas em mulher alguma e todas apenas sigam em frente, conquistando mais e mais vitórias. Mas sei que não é fácil e que cada uma tem sua realidade específica, com problemas e questões específicas.

De qualquer modo, conseguir construir essa noção de que uma atuação em rede fortalece grupos e de que o poder estabelecido realmente possui uma estratégia em curso que tem o intuito de silenciar mulheres e desmobilizar a luta feminina por direitos é fundamental. Dessa maneira, fica mais fácil erguer um escudo que auxilie nos momentos difíceis e blinde de ofensas gratuitas. Ah, um idiota te chamou de feia? Isso diz menos sobre sua aparência e mais sobre a capacidade argumentativa dele e sobre os medos de um frágil ego masculino que teme mulheres com poder, autoestima e espaço. A admiração condicional, passageira e nem sempre verdadeira do olhar masculino é infinitamente menos importante do que as reais vontades, necessidades e desejos de uma mulher. Que todas possam um dia falar e ser, sem medo.

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O problema não é o “gênero”

As pautas ditas “morais” são prioridade de quem quer acabar com ~tudo isso aí que tá errado~ e, enquanto todo mundo se preocupa com quem o outro dorme, nossos direitos vão escorrendo pelo ralo. Uma das grandes medidas aprovadas após a retirada de Dilma Rousseff do poder foi a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que congela o gasto com “despesas” do país por alguns anos. Isso significa que serviços públicos de saúde, educação e afins podem sofrer ainda mais baques nos próximos tempos. Contudo, pensando mais profundamente, essas coisas são realmente despesas ou, na verdade, são investimentos? Vários pontos de vista devem ser analisados.

Existem estudos que asseguram que o ideal é que países em crise, enfrentando momentos de austeridade, sigam com práticas de seguridade social para o bem da população e até da economia. Dessa maneira, suicídios podem ser evitados e doenças podem ser controladas. Além disso, levando em consideração um contexto capitalista, trabalhadores sem saúde produzem menos e geram mais demandas aos sistemas públicos. O dinheiro que deixa de ir para saúde ou educação não vai magicamente para o bolso de quem precisa, muito pelo contrário. Cortar política social ou restringir serviço público, por exemplo, não reduz corrupção, até porque favorece corruptos que estão no mercado querendo emplacar os próprios negócios.

Bom, mas o que esperar de uma bancada política altamente conservadora e comprometida com o dinheiro, e não com as pessoas, não é mesmo?

Outras medidas não tão benéficas para a população também estão em destaque, como a reforma da previdência, a flexibilização de leis trabalhistas e afins. A retirada de direitos é um projeto e, para que isso seja acobertado, foi criado um monstro feio e horripilante a ser combatido: a “ideologia de gênero”. Criou-se um mito de que existem professores-doutrinadores passando vídeos pornográficos nas escolas enquanto toca Pabllo Vittar (adoro) e merendas são distribuídas em mamadeiras de pinto. Isso é um desrespeito infinito com a classe educadora do Brasil, que não é reconhecida como merece e ainda precisa lidar com acusações absurdas.

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Gênero: mais polêmico que mamilos! Foto de Lailson Santos (reprodução).

Mas, afinal, o que é gênero?

A resposta para essa pergunta é longa e complexa. Muitas são as pessoas que estudam o tema (sou uma delas) e os conflitos, questionamentos e divergências são variados, mesmo entre quem aparentemente está do mesmo lado. Em um resumo bem rápido, gênero é um termo que floresceu a partir do objetivo de separar o lado biológico e o lado social do ser humano. Um corpo do sexo feminino pode, na maioria dos casos, gestar uma criança, por exemplo. O gênero é a construção social que dita que todo corpo capaz de gestar uma criança é uma mulher, e que toda mulher deve sonhar com ser mãe, ter filhos, agradar o marido e coisas do tipo.

O gênero, portanto, pode ser uma narrativa imposta aos corpos com o intuito de regulá-los de acordo com as expectativas de uma determinada sociedade. Ele não é “natural” e, por isso, é raramente acolhido de forma unânime (mulheres estudando quando era proibido já era um rompimento de barreira, entre vários outros exemplos). Supõe-se, inclusive, que as diferenciações sexuais hierarquizantes nascem como estratégia de controle social, reprodutivo, econômico e tudo mais. Logo, discutir gênero envolve debater um universo inquantificável de assuntos. E eles vão muito além da questão meramente moral (que tem sua importância) e abrangem gravidez, abuso sexual, divisão do trabalho e outros temas que atravessam a vida de todas as pessoas de modo bem concreto.

Desmistificar que “homem que é homem resolve briga na porrada” ou que “mulher tem que aguentar tudo” também significa conversar sobre gênero. Bem como explicitar que uma pessoa com pênis pode ter cabelo grande e adotar um nome considerado feminino ou que uma pessoa com vagina pode jogar futebol e cortar o cabelo bem curto. Existem muitas angústias e violências a serem resolvidas. E as pessoas precisam ter a chance de se sentirem mais confortáveis na própria pele ou de abandonarem papeis que foram empurrados à força. Além disso, desmistificar papeis femininos e masculinos e aliar isso à educação sexual ajuda crianças, adolescentes e jovens a identificarem situações de abuso.

E tem mais: um homem que mata uma mulher porque “não aceitou o fim do relacionamento” é, na verdade, uma pessoa que assimilou a hierarquia de gênero de modo tão profundo e natural que chega se torna legítimo aniquilar a existência de quem não mais quer ser posse dele. E é também alguém que não aprendeu a lidar com frustrações e sentimentos de rejeição de uma forma emocionalmente equilibrada.

Porque “homem não chora”.

Por isso, o debate de gênero envolve, fundamentalmente, o respeito ao próximo, ao corpo do próximo, às vontades do próximo, às escolhas do próximo, à orientação sexual do próximo, à maneira de ser do próximo e assim vai. E falar sobre gênero é falar sobre liberdade de expressão e liberdade para expressar a si mesmo.

Os que falam em combater a tal da “ideologia de gênero” e fingem estar preocupados com a “defesa da família” querem, na verdade, a manutenção do poder patriarcal. E querem as pessoas presas nos papeis de sempre e vigiando umas às outras, porque assim é mais fácil controlá-las. E assim são criados bodes expiatórios e respostas simplistas que serão úteis caso a desigualdade social aumente ainda mais por conta das medidas tomadas pelos tais “defensores da família”. Porém, incitar desconfiança entre semelhantes (não somos todos iguais?) e dificultar a melhoria de vida da população é realmente uma maneira de defender alguém? Ou é uma cortina que busca distrair todo mundo de problemas reais enquanto direciona ódio para quem não tem culpa de nada?

O problema não é o “gênero”, pode acreditar.

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DEZ COISAS QUE NÃO CAUSAM ESTUPRO

O estupro é uma violência que possui dois lados. A sociedade trata a questão como um crime horrível, pelo menos na teoria e se a situação envolver uma “vítima perfeita”. No entanto, uma simples lida nos jornais diários mostra os inúmeros casos de crianças, adolescentes e mulheres sendo estupradas por familiares, amigos, desconhecidos, colegas de trabalho ou conhecidos da igreja, faculdade, balada, entre outros (pena que a abordagem no geral é tão sensacionalista e pouco profunda nas raízes da questão). Pessoas do sexo masculino são as que mais cometem esse tipo de agressão e pessoas do sexo feminino são as que mais sofrem – o que não impede que existam situações em que violências sexuais ocorram seguindo outro roteiro.

A discussão sobre o assunto acontece por vários meios, informalmente ou de modo organizado. Porém, muitos preconceitos e simplismos acabam sendo disseminados nesse debate, e questões importantes são deixadas de lado. Por isso, vou abordar aqui neste post as dez hipóteses mais estúpidas entre as que já li como as possíveis causas de estupro (mas existem muito mais), e propor uma conversa mais centrada na realidade: a culpa é sempre do estuprador. E ponto final.

1) Roupa curta não causa estupro

Isso é um consenso que feministas estão cansadas de repetir: a mulher tem o direito de usar a roupa que quiser. Pode ser um vestido rosa e curtinho, tipo o da Geisy Arruda, biquíni grande ou fio dental, burca, camiseta larga, shortinho, saia longa ou qualquer outro tipo de vestimenta. Achou o look feio, bonito, atraente, repulsivo, muito descolado ou super brega? Problema seu. Se você for homem, deixe esse espírito de predador sexual com pinceladas de crítico de moda no armário, porque roupa não justifica agressão. Se for mulher, não jogue pedras nas outras para provar o próprio valor ou achar que isso vai te proteger de alguma coisa (spoiler: não vai). E a tentativa de encontrar alguma desculpa que tire a culpa do estuprador e transfira para a roupa da vítima é uma forma de naturalizar não apenas o comportamento violento do homem, mas a ideia de que respeito é algo que a mulher deve “merecer” para ter. Sem contar que pessoas usando todos os tipos de roupa aqui citados já foram estupradas, o que mostra que o problema está muito além de qualquer vestimenta.

2) Bebidas ou drogas não causam estupro

Muita gente acha que uma mulher alcoolizada ou sob efeito de drogas “merece” ser estuprada. Aposto que, alguma vez na vida, você já ouviu alguém falar que “cu de bêbado não tem dono”, não é mesmo? Se as pessoas começassem a frequentar botecos e baladas com o intuito de buscar homens bêbados para serem empalados com cabos de vassoura, isso não seria uma violência terrível? No entanto, por que mulheres na mesma situação são estupradas com o aval da sociedade? Pessoas bebem ou consomem substâncias para se divertir, afogar as mágoas, por vício, depressão ou outros motivos, e você não precisa concordar com isso – dá para problematizar o uso de álcool e drogas por um ângulo de saúde pública ou do tráfico, por exemplo. Mas culpar uma vítima de estupro que estava entorpecida é, mais uma vez, defender o estuprador e a ideia de que homem é um animal descontrolado.

No mais, uma pessoa viciada precisa de ajuda, uma pessoa dormindo precisa de sono e uma pessoa com a consciência alterada não consegue responder por si mesma. De novo: desliga aí o suposto instinto predador, homem, porque sexo nessas condições não é ‘sexo fácil’, é estupro mesmo (caso sua empatia falhe ainda assim, aqui vai mais um incentivo: e é crime). E se você tem impulsos agressivos e violentos quando usa alguma coisa (ou não), procure ajuda (ou se tranque em casa, obrigada). Ah, vale lembrar que alguns caras colocam sedativos na bebida de mulheres ou as obrigam a inalar substâncias entorpecentes também – algo que, somado à violência sexual que sucede tais práticas, contabiliza uma dupla quebra de consentimento.

3) Ruas pouco movimentadas também não causam estupro

Vários fatores tornam a rua um ambiente inseguro para mulheres: homens, primeiramente, e coisas como iluminação ruim, falta de movimento e de segurança, demora no transporte público e outros itens que as colocam em situação de vulnerabilidade. Portanto, o ideal é que sejam elaboradas estratégias de educação e segurança pública que tornem a rua um espaço menos hostil para pessoas do sexo feminino. Tenho uma fantasia que envolve um toque de recolher para homens até que eles, enquanto categoria, se eduquem, rs. Mas tô brincando. Queria mesmo era um monte de poste, gente e ônibus pra todo lado e, principalmente, pessoas com a consciência humana aflorada.

E vale lembrar que a ideia do estupro como algo que só acontece em um local ermo, com um cara ameaçando a mulher com uma faca, não é necessariamente o retrato fiel da situação: muitos algozes estão dentro da casa da vítima ou nas redondezas, o que significa que ~tomar cuidado por onde se anda~ não é sempre o necessário para evitar uma agressão sexual (mas a gente toma mesmo assim).

4) A falta de uma ~bola de cristal~ não causa estupro

Algumas vítimas são cobradas por não terem se preparado para enfrentar a agressão sexual e escutam coisas como: “mas por que você não gritou?”, “devia ter saído correndo”, “não percebeu que ele ia chegar perto de você?”, “você não anda com spray de pimenta na bolsa?”, “por que ficou sozinha em casa com ele?”, “não sabia que isso podia acontecer?” e etc. Frases do tipo não fazem o tempo voltar, cada pessoa tem uma reação diferente quando está em perigo e existem casos em que não é muito seguro reagir a uma situação de violência (e não tem como saber, de antemão, quais). Não vamos cair, mais uma vez, na armadilha de culpar quem não tem culpa. No caso de estupros cometidos por amigos, parentes ou vizinhos, como a vítima iria descobrir as reais intenções de homens, teoricamente, “de confiança”? E se a violência for cometida por um estranho em um local inusitado ou em uma situação inesperada, como a vítima poderia adivinhar? E tem mais: nem sempre um estupro acontece de forma explícitamente agressiva. Cada caso é um caso – e o que todos possuem em comum é que a culpa não é da vítima. E não existe uma bola de cristal capaz de prever quando um estupro pode ocorrer.

5) Crise ou pobreza não causam estupro

Lembram quando o responsável pela Secretaria de Segurança de São Paulo, Mágino Alves Barbosa Filho, falou que a crise econômica tem a ver com estupro, porque o cara acaba ficando frustrado demais, sem emprego, bebendo e cometendo esse tipo de coisa?  Isso é uma estratégia que busca voltar o debate público para a criminalização de pessoas pobres, e não para a busca de soluções efetivas para os problemas que as mulheres enfrentam. Breaking news: filhinhos de papai que nunca precisaram sequer pensar em trabalho também estupram. Jovens universitários de classe média também estupram. Autoridades de governo também estupram. Cantores famosos também estupram. Filhos de donos de grupos de comunicação também estupram. Sabe o que não estupra? Ah, essa pergunta eu deixo no ar…

Essa relação entre pobreza e violência já foi desmistificada pelas ciências sociais há pelo menos três décadas. A socióloga feminista Helleieth Saffioti bem dizia que a violência contra a mulher é extremamente democrática porque ela atinge a todas as classes sociais.

Um homem que perde o emprego não é um estuprador em potencial. Homens numa sociedade patriarcal são estupradores em potencial porque têm uma certa legitimidade social (ainda que não legal) para violar os direitos de uma mulher, violar sua integridade e sua dignidade, seu corpo e sua vida. O que acontece em geral é que nas classes altas, a violência contra a mulher e o estupro são escondidos sob um manto de hipocrisia e dupla moral, onde não se registra, não se denuncia e não se expõe homens ricos, homens de altos cargos, frente a suas práticas violentas. Existe um silêncio e uma impunidade brutal com um professor universitário, um juiz, um político – o que não acontece com um pedreiro, um motorista de ônibus ou um trabalhador das classes populares, por exemplo.

Izabel Solyszko, feminista, assistente social, professora e doutora em Serviço Social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Leia mais opiniões de especialistas aqui. 

6) Funk não causa estupro

Esse é outro argumento que tenta colocar pessoas negras e pobres como as únicas culpadas por agressões sexuais. O objetivo, mais uma vez, não é o bem-estar de mulheres, mas calar a cultura que surge na periferia, encarcerar essas pessoas e criar uma diferenciação entre os “homens de bem e civilizados” e os estupradores. No entanto, a lista de astros do rock que cantam letras machistas de música – e/ou estupraram adolescentes e mulheres  – é grande, por exemplo. Não precisa nem ser um astro, o meio independente está cheio desses exemplares também. Música popular brasileira, música brega, sertanejo, música pop… Se a gente cavar, acha coisas problemáticas em todos os estilos. Não estou dizendo que não existam funks machistas e com letras horríveis, ou funkeiros com comportamentos questionáveis, só quero chamar atenção para o fato de que isso não é exclusividade do gênero – que, como todos os outros, tem partes ruins e boas.

Existe um machismo no funk que não é exclusivo no funk. É que sua linguagem é muito direta em relação a tudo. Não há floreio, a batida é reta, seja para falar de amor, sexo e violência. É sempre uma linguagem muito direta, o papo reto, como dizem. Com o machismo, não é diferente. E existe uma reação escancarada a ele. Com as mulheres falando de sua liberdade sexual, da escolha de parceiros, sobre o que fazer com o corpo e exercitar seu desejo. E elas abordam todos esses assuntos em um ambiente masculino, como é o da música popular — ressalta Adriana [Facina, antropóloga e professora da UFRJ], que destaca a ascensão das mulheres dentro do cenário funk nos últimos anos. Leia mais aqui.

7) Não é a falta de armamento que causa estupro

Mais uma vez, a pauta conservadora tenta cooptar os debates feministas. Alguém realmente acha que é assim que as coisas vão ser resolvidas? A jornalista Nana Queiroz pesquisou o assunto e constatou o que a gente já imaginava: essa não é a solução. Muitos estupradores são pessoas próximas, o fator “surpresa” dos ataques dificulta a ação, mulheres são socializadas para serem mais passivas e, quando em ambientes violentos, assimilam aquela situação como normal, entre vários outros fatores. Leia a matéria aqui.

Uma sociedade toda armada mas carregando os mesmos valores de sempre vai resultar em um constante tiroteio, gente. Só isso. Antes de qualquer coisa, temos que começar grandes campanhas nacionais para discutir sobre papeis de gênero e afins. E, de acordo com a jornalista, “a maioria dos casos de estupro à brasileira não é fruto de problemas de segurança pública, mas de uma cultura machista que prega um poder do homem sobre a mulher. O crime de estupro tem uma característica no Brasil: a cifra negra. A expressão ‘cifra negra’ significa que um número muito pequeno de ocorrências de um determinado crime chega ao conhecimento das autoridades. Deste já pequeno número, uma ínfima parcela chega ao conhecimento do judiciário, e uma menor ainda resulta em condenações”.

8) ~Excesso de libido~ masculina não causa estupro

Não é o ~excesso de desejo~ masculino que faz com que as mulheres sejam estupradas (aliás, engraçado como são as feministas as que mais batem na tecla de que os homens não são “animais irracionais” e as mais acusadas de vê-los como tais). A sexualidade do ser humano é um terreno complexo e envolve mais do que a mera vontade de transar. Existe toda uma construção de ideias anterior ao ato sexual – e à violência sexual também – que faz com que o sexo seja algo que vai muito além dos órgãos genitais. Portanto, propostas que envolvem a castração química, por exemplo, vindas de pessoas que querem impedir que a sociedade discuta e debata questões de gênero, ainda por cima, estão muito mais perto de algum tipo de fetiche com violência e tortura do que de empatia com vítimas de estupro.

Em uma reportagem do Uol, o psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC, afirma que o termo “castração química” é, inclusive, mentiroso. O que ocorre, na realidade, é uma diminuição de impulsos sexuais. Porém, o interesse continua. “Em casos de estupradores não é apenas uma questão orgânica que importa, o problema também é ‘intelectual’. É claro que a castração não cura, não transforma a ideologia. Mesmo se não tiver ereção, o agressor pode praticar violência sexual de outras maneiras”. Leia a matéria completa aqui 

9) Vida sexual ativa não causa (nem justifica) estupro

Vamos deixar uma coisa bem clara: sexo é o encontro de corpos que se desejam mutuamente. Se não existe consentimento de alguma parte, é estupro. Mesmo que esses corpos já tenham se desejado mutuamente em alguma ocasião anterior, é preciso que o acordo seja reafirmado a cada novo encontro. E se esses corpos já estiveram com outros corpos, não significa que vão querer estar com todo mundo que aparecer pela frente. Tem homem que acha que mulher é igual máquina de refrigerante: se ela já transou com ele ou com outras pessoas alguma vez na vida, ele tem direito a refil automático. Não é assim mesmo. Sexo não é uma obrigação, e sim uma escolha autônoma.

Tem gente que diz coisas tipo “ah, mas ela nem era virgem” e eu sempre fico meio chocada, me perguntando em que século pessoas assim vivem. Vasculhar o passado sexual de vítimas de estupro é reafirmar o corpo da mulher como público e violável. Essa imposição histórica não é natural e, por isso, a luta que busca construir a equidade de gênero e destruir a misoginia (que tem bases profundas na inferiorização do corpo do sexo feminino) é fundamental. E tem mais: mulheres não dizem não querendo dizer sim. Não é não, e não importa o que elas já fizeram antes na cama (ou no chão, no sofá, na barraca de camping ou na areia).

10) Estupro não tem nenhuma justificativa aceitável, na verdade

Falamos em ~construção social~ com o intuito de não essencializar comportamentos ruins, porque acreditamos na possibilidade de humanidade em vocês, homens (algo que, infelizmente, não parece recíproco em muitos momentos). Logo, não acreditamos que um rapaz nasça automaticamente querendo fazer mal às mulheres e sim que ele cresce absorvendo mensagens diversas — da religião à pornografia, passando por esferas como arte, medicina, música, ambiente de trabalho e outros — onde uma hierarquia sexual existe e ele precisa reforçar a própria masculinidade, bem como estreitar laços com outros caras e demarcar seu papel de ‘poderoso’ (no âmbito do controle do espaço público e dos corpos femininos pelo menos) por meio de práticas que inferiorizem e subjuguem o sexo feminino. Por isso, nós, mulheres, precisamos urgentemente do reconhecimento de que somos humanas também.

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Crédito: Eduardo Valente

E se fosse haver algum apelo ou alguma questão nesse grito, seria essa: por que vocês são tão lentos? Por que vocês demoram tanto para entender as coisas mais simples – não as ideologias complicadas. Vocês entendem essas. Mas as coisas simples, os clichês. Que as mulheres são humanas precisamente no mesmo degrau e qualidade que vocês são.

(…) O poder exercido pelos homens no dia a dia é um poder institucionalizado. É protegido por lei. É protegido pela religião e pela prática religiosa. É protegido pelas universidades, que são fortalezas da supremacia masculina. É protegido pela polícia. É protegido por aqueles que Shelley chama de “os legisladores não reconhecidos do mundo”: os poetas, os artistas. E contra todo esse poder, nós temos silêncio.

É uma coisa extraordinária tentar entender e confrontar o motivo pelo qual os homens acreditam – e eles acreditam – que eles têm o direito de estuprar. Eles podem não acreditar quando perguntados diretamente. Quem aqui acha que tem o direito de estuprar, por favor levante a mão. Poucas mãos vão subir. Mas é na vida que os homens acreditam que têm o direito de forçar sexo – que eles não chamam de estupro. E é algo extraordinário tentar entender que homens realmente acreditam que têm o direito de bater e de machucar. E é igualmente extraordinário tentar entender que homens realmente acreditam que têm o direito de comprar o corpo de uma mulher para fazerem sexo – e que isso é o seu direito. E é também surpreendente tentar entender que os homens acreditam que essa indústria de 7 bilhões de dólares, que traz vaginas para as suas vidas, é algo a que eles têm direito.

(…) Eu acho que, se você quer olhar para o que o sistema faz com você, então é aqui que você deveria começar: as políticas sexuais da agressão, as políticas sexuais do militarismo. Os homens estão com medo dos outros homens. Isso é algo que muitas vezes vocês tentam discutir em grupos pequenos, como se, caso mudassem suas atitudes uns com os outros, deixariam de sentir medo.

Mas enquanto sua sexualidade tiver relação com agressão, enquanto seu senso de direito sobre a humanidade significar ser superior a outras pessoas – e tem tanto desprezo e hostilidade nas suas atitudes com mulheres e crianças – como vocês podem não ter medo? Eu acho que vocês percebem, corretamente, mesmo sem conseguir lidar com isso de forma política, que homens são perigosos: porque vocês são.

Andrea Dworkin. Trechos de discurso feito em 1983, intitulado “Eu quero 24 horas sem estupro”. Leia aqui.

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Nem santas, nem putas: apenas humanas com capacidade de sentir prazer

Quem nunca ouviu algo como “tira a mão daí, menina” ao simplesmente dar uma coçadinha na xoxota que atire a primeira pedra. A vagina, sempre tratada por eufemismos fofos e delicados ou por palavras grosseiras que remetem à esculhambação e mau cheiro, é historicamente demonizada. Por isso, quem nasceu com ela no meio das pernas consequentemente tem o desenvolvimento psicológico, emocional e, ás vezes, até físico afetado por esses conceitos deturpados, que ora infantilizam e romantizam a vagina, ora tratam ela como algo grosseiro e pecaminoso. A misoginia, inclusive, começa com o estereótipo de que vagina (e quem a possui) é inferior, suja e deve ser reprimida, o que contribui com um panorama de mulheres cerceadas não apenas sexualmente, mas em outras esferas da sociedade, como social e econômica. Afinal, se pensarmos bem, minar a autoestima de uma pessoa implantando na cabeça dela inseguranças sobre o próprio corpo – a expressão máxima da existência de alguém no mundo – é um mecanismo de controle bastante eficaz.

O Xotanás, uma parceria entre os blogs Deixa de Banca e Vulva Revolução (eu), surgiu com o objetivo de falar sobre siririca e sexualidade feminina. Mas por que? Bem, resumidamente, a Amanda teve a ideia inicial e me chamou para botar em prática com ela e, juntas, pensamos sobre o assunto. Percebemos que, embora o senso comum acredite na tal história da ~liberação sexual~ e ache que as mulheres já conquistaram tudo o que queriam (quem dera!!!), ainda vivemos dentro de um cenário em que a sexualidade da mulher é regida pelo patriarcado e pela heteronormatividade: ela precisa ser feminina (ou seja, depilada, maquiada, perfeita, sem estrias, usar roupas que realcem as formas do seu corpo – se ela for magra, claro – e inteligente, mas sem tanta opinião) e pensar no prazer do outro. Esse outro é geralmente um homem que irá mudar a vida dela ao penetrá-la com a piroca mágica dele. E a sexualidade da mulher é comumente representada dessa forma, como se o mais importante fosse ser desejada por um homem, fazer um homem gozar, estar cheirosa para um homem, homem, homem, homem…

AFF.

No entanto, recebemos mensagens tão divergentes entre si (acho que o intuito é deixar a gente doida mesmo), que ao mesmo tempo em que somos incentivadas a fazer de tudo porque, uau, liberdade é isso aí, fazer o que os caras querem na cama, ainda existe, no fundo de grande parte das relações heterossexuais, uma mitologia antiga, da mulher que é boa, casta, pura e “para casar”. E enquanto rola um bombardeio sobre as cabeças femininas com mil sugestões diferentes relacionadas a como elas deveriam se comportar, muito pouco é falado sobre a importância do autoconhecimento não apenas para a construção de uma vida sexual satisfatória, mas principalmente para o próprio bem-estar físico e psicológico da mulher, que raramente é aconselhada a pensar nela mesma, apenas nela, e a descobrir o que a faz sentir prazer. Por isso, dentro desse contexto, a gente aqui do Xotanás acredita que siririca tem tudo a ver com autonomia, amor próprio e desconstrução da misoginia internalizada.

Felizmente, essa era internética em que vivemos está colaborando com o nascimento e divulgação de cada vez mais projetos voltados para a sexualidade da mulher. Por meio de textos, desenhos, entrevistas, vídeos e músicas, são travadas diversas discussões que buscam o real empoderamento da sexualidade feminina, sem aquele morde e assopra de revistas que dizem, na primeira página, que toda mulher é linda e poderosa e, na página seguinte, ofertam trezentos produtos de beleza diferentes e ensinam a “segurar” parceiros. Ainda assim, são muitos os relatos que recebemos (estão sendo publicados aos poucos aqui, enviem o de vocês) e que lemos por aí que, ao falar de masturbação, envolvem culpa e repressão familiar.

pollynordevil“The Devil Wears Nada”, ilustração de Polly Nor

Qual será o porquê de todo esse peso jogado em cima do nosso prazer? O livro “Vagina – uma biografia”, lançado pela escritora norte-americana Naomi Wolf recentemente, revela que a concepção ocidental que temos atualmente do órgão sexual feminino, “cheia de vergonha, sexualizada de um modo restrito e funcional, dessacralizada e cientificamente escrutinada”, começou no século XIX. Teorias misóginas de todo o tipo foram disseminadas, como, por exemplo, que o clitóris era a causa da corrupção moral e “boas mulheres” não tinham apetite sexual.  Uma das teorias dizia, inclusive, que permitir que mulheres lessem romances poderia deixá-las com um desejo sexual enlouquecido e descontrolado (ou seja, controle sexual e da emancipação intelectual feminina em uma tacada só).

De acordo com a autora, o clitóris é estudado, esquecido e descoberto novamente desde 1559. No entanto, no período vitoriano a  vagina passou a ser profundamente patologizada e criou-se uma ideia de mulheres “boas” e “más” que vinha da conduta sexual delas: quem não se deixasse afogar pela própria libertinagem poderia ser considerada uma mulher de respeito. E essa libertinagem não estava relacionada apenas ao ato sexual, mas também à masturbação. “Em 1850, os formadores de opinião vitorianos na área médica e social estavam convictos de que a masturbação, para ambos os sexos, levava perigosamente a ‘um espectro de doenças psicológicas terríveis’, que acabariam por levar o masturbador a um estado de loucura”, escreve Wolf.

O livro “A assustadora história do sexo”, do médico e escritor britânico Richard Gordon, mostra retratos clínicos da época, que descreviam pessoas que se masturbavam praticamente como doentes. Ele acredita que isso parte de uma necessidade que a sociedade tem de criar “perigos” que façam as pessoas se sentirem culpadas, pois “um pecado espalhado universalmente tece uma camisa de silício macia” (camisa de silício era uma espécie de túnica incômoda, de tecido grosseiro, utilizada durante penitências). Gordon levanta, inclusive, uma questão interessante: essa culpa sexual (que permanece ainda hoje) tem muito a ver com a culpa “mastigatória” dos tempos atuais, em que médicos advertem contra diversos tipos de comida e o público começa a temer “perigos físicos, estéticos e morais de estarem levemente acima do peso” – o que gera muito lucro para a indústria mundial do emagrecimento.

Homens e mulheres foram torturados em prol da erradicação desse ~grande mal~ que era a masturbação. Porém, assim como as mulheres de hoje são os maiores alvos das “dicas de dietas” (a dieta é o sedativo político mais potente na história da mulher, uma população levemente louca é uma população dócil”, já disse Naomi Wolf em outro livro – “O Mito da Beleza”), a antiga obsessão em erradicar a masturbação era ainda maior se o assunto era siririca, e isso podia ser diretamente relacionado ao medo de educar e emancipar mulheres – o receio geral era de que a leitura pudesse levá-las ao ato de tocar o próprio corpo em busca de prazer. Segundo Wolf, no período pré-vitoriano, mesmo mulheres da elite não eram educadas e nem tinham direito a propriedades, logo, pouco importava se tocavam uma siririca ou não. Só que, no século XIX, as mulheres estavam conquistando mais direitos e a tentativa de frear a autonomia delas – tanto sexual, quando intelectual – talvez fosse uma reação contra isso. “Muitas mulheres, hoje, sentem que sua sexualidade é algo distinto do resto de seu caráter e acabam por privar-se dela em prol de outros papeis mais admiráveis, como o de mães, esposas ou profissionais (…). Esse conjunto de crenças não é uma constante humana – nem mesmo é antigo; isso foi essencialmente inventado quando os críticos culturais na Europa e Estados Unidos ficaram alarmados pela emancipação feminina, e a sexualidade da mulher foi entregue a um profissional masculino, o ginecologista”, conta a autora.

O século XIX criou o problema e a solução: ao mesmo tempo em que patologizava a sexualidade e o corpo feminino, inventava tratamentos e buscava soluções para os “problemas sexuais” das mulheres. A sexualidade feminina era considerada uma grande ameaça à ordem social. Logo, o período vitoriano se viu marcado por avanços científicos que se chocavam com conceitos rasos que buscavam manter a mulher “domada”: o útero era visto como fonte de mau humor feminino, a menstruação era tratada como incapacitante e educar mulheres poderia ser nocivo para elas, porque poderia fazer com que se tornassem masculinizadas e “solteironas”.  Sob o domínio masculino, a ginecologia se desenvolvia; e pelas mãos dos homens, mulheres tiveram seus corpos analisados, estudados e invadidos – o norte-americano J. Marion Sims, por exemplo, criou uma técnica para reparar fístulas vesicovaginais praticando, sem anestesia, em mulheres escravizadas.

“De 1860 a 1890, a brutalidade e a natureza punitiva das práticas ginecológicas masculinas atingiram seu ápice. Nesse período, o uso da clitorectomia se tornou, se não comum, pelo menos não mais inédito no ‘tratamento’ de garotas que insistiam naquele vício pavoroso, a masturbação feminina. O dr. Isaac Baker Brown introduziu a clitorectomia na Inglaterra em 1858, e ainda era muito praticada por ele dez anos depois. O dr. Brown se tornou famoso e muito procurado por sua ‘cura’, que aplicada em garotas fogosas, após a excisão de seu clitóris, fazia que voltassem para suas famílias em um estado de docilidade, mansidão e obediência – um resultado que podemos agora compreender como inquestionavelmente resultante do trauma e também da interrupção da ativação neural. E até mesmo para garotas que não eram ameaçadas com a excisão do clitóris como punição pelo ‘vício solitário’, havia manuais morais e até publicações populares repletas de advertências sobre como uma mulher masturbadora, incitada por ‘romances franceses’ ou ‘novelas sensacionalistas’, poderia ser facilmente identificada por sua lascívia, apatia, palidez, olhos febris e aspecto geral de dissimulação e insatisfação. Havia o entendimento de que a masturbação levava as garotas a uma trajetória cada vez mais descendente, com formas ainda piores de ‘vício’ e lascívia moral; os pais eram aconselhados a ser vigilantes e rígidos com as garotas que persistissem”, explica a escritora.

Para os homens, Gordon relata que a “política de mãos-ao-alto” envolvia ir para a cama com luvas de metal (tipo raladores de cozinha) ou camisa-de-força, uso de cinto que prendia o pênis em molde de metal ou corte de nervo do órgão sexual masculino, entre outras práticas. Embora os rapazes também possam guardar sua parcela de ~culpa masturbatória~ (bom, pelo menos foi o que alguns me disseram), a naturalização da prostituição e pornografia, bem como uma sociedade que atua sob o olhar masculino em grande parte dos seus recortes, são fatos que revelam que a sexualidade masculina é bem menos cerceada – muito pelo contrário, ela é incentivada e celebrada, ainda que de forma doentia, rasa, nociva e extremamente perigosa para mulheres, além física, intelectual e sensorialmente pobre para os homens.

É tudo sobre lucro e dominação.

Como já foi mostrado, resquícios do modelo vitoriano de pensar permanecem em nossa sociedade. Pior ainda: nem sempre são resquícios, muitas vezes são novas roupagens para teorias antigas que buscam demonizar a sexualidade e o corpo feminino e, consequentemente, destruir a autonomia e autoestima de mulheres, porque medo, insegurança, falta de autoconhecimento, vergonha, nojo e culpa são instrumentos que visam nos manter submissas, paralisadas, dóceis e manipuláveis.

Porém, a cada dia, novas pernas femininas ganham as ruas e conquistam espaços pelo mundo, enquanto dedos que na intimidade acariciam o clitóris, em um ritmo suave e gostoso, se levantam, em riste, para sinalizar um grande não a quem grita “tira a mão daí, menina”. Os nossos corpos são nossos, não são sujos e problemáticos e serão explorados por nós mesmas, em uma jornada que celebra o bem-estar feminino. Não somos putas nem santas que merecem mais ou menos respeito, mas apenas humanas com a capacidade de sentir prazer.

Post orginalmente publicado mês passado no Xotanás.

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Trolls odeiam mulheres, pelos e a insubmissão feminina

Nos últimos dias, a página da Vulva Revolução no Facebook recebeu ataques de trolls por conta de uma postagem antiga que, por algum motivo, voltou a circular. O post em questão é a imagem abaixo, onde escrevi a seguinte legenda: Até quando vamos chamar nossas características de “defeitos”?.

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Desenho por Fernanda Moreira

Como podemos ver, a ilustração traz o desenho de corpos brancos, negros, gordos, magros, com pelos, estrias e outras características. No entanto, o que era pra ser algo corriqueiro, é encarado como um absurdo. Essa simples postagem de caráter motivacional e empoderador recebeu comentários assim:

Captura de tela 2015-10-21 às 21.57.14

Sendo o espaço virtual uma continuação do que chamamos de “vida real” (ou um cruzamento, visto que não existem fronteiras muito bem delimitadas), essa invasão de trolls é um reflexo de como o ~mundo offline~ percebe (e recebe) as mulheres – principalmente as insubmissas e que querem se aceitar como são. Ainda que não seja fisicamente presencial, a internet é um espaço público. E a entrada de mulheres em espaços públicos é recente e, pelo visto, indesejável. Basta analisarmos o tanto de assédio que recebemos em todo lugar, o tempo todo, para perceber isso.

Todos esses tipos de corpos mostrados – e muitos outros – existem de verdade. Mas vivemos em uma sociedade que prefere ver a diferença como uma doença a ser tratada: laser para retirar estrias, massagem para acabar com a celulite, creme para clarear a pele, cirurgia plástica para diminuir o nariz, depilação em qualquer parte do corpo que tenha pelo, shampoo para controlar o volume do cabelo, escova para alisar os fios, pinça para pinicar a sobrancelha, cinta para afinar a cintura, short modelador para esconder o quadril, lipoaspiração para sugar a gordura localizada, dieta para emagrecer… Ufa! É tanta coisa, que eu poderia passar o dia escrevendo, e ainda assim não caberiam todos os procedimentos estéticos, cirúrgicos e afins que existem para ~consertar~ a mulher.

Porém, uma olhada mais atenta aos itens que acabei de listar nos mostra algo muito importante: o padrão estético atual não é apenas misógino, mas também muito racista. A “mulher ideal” é um mito que quase nenhuma de nós vai alcançar – e é justamente isso que torna o mercado da beleza tão lucrativo. Como ratinhas presas em uma gaiola, as mulheres gastam muito tempo e dinheiro rodando loucamente em busca da suposta “perfeição”. E não é necessariamente porque elas querem ou são fúteis, como muita gente gosta de dizer, reforçando estereótipos misóginos: para muitas, não existe emprego, vida afetiva e um pingo de respeito se não houver um mínimo de adequação ao padrão.

Só que quando a gente começa a perceber e questionar esse sistema publicamente, um movimento contrário começa a querer nos parar. Existem inúmeros relatos de mulheres hostilizadas na rua porque deixaram crescer os pelos do corpo, de patrões que mandaram funcionárias alisarem os cabelos crespos, de mulheres gordas que ousaram ir para a balada e foram maltratadas pela casa noturna, de outras feministas que são perseguidas na internet por trolls, etc. E, além dessas agressões diretas, discursos indiretos que chegam até nós por meio de propagandas, comentários de pessoas conhecidas, programas de televisão e milhares de outras formas reforçam que, eww, pelo é sujo, uma gordurinha de nada é doença e celulite é a pior coisa que uma mulher pode ter na vida.

Mas ninguém para pra pensar que, ué, por que uma perna peluda de homem é observada com tanta naturalidade, enquanto uma mulher que faz o mesmo é vista como A Coisa Mais Repulsiva Do Universo? Qual a diferença fundamental entre ambos? Hm. Acho que sei.

Poder.

Como assim? Vou dizer. Vivemos em desigualdade e uma das formas de controlar a mulher é fazer ela acreditar que a meta da vida dela é ser bonita e atraente – para homens, principalmente, claro. Isso a mantém em um papel de passividade e gera lucro. E os homens também acreditam que a função das mulheres é ter uma aparência que os agrade. Tanto que os trolls que invadiram minha página, por exemplo, e tantos outros que já vi por aí, dizem coisas como “mas eu não quero comer uma mulher peluda”, “eu não enfio meu pau em uma gorda”, “não encosto meu pinto em quem tem celulite”, “gosto de buceta assim e assado”, etc. Já ouvi até conhecidos meus dizendo coisas do tipo, putz.

Rapazes, assimilem uma coisa: a piroca de vocês não é parâmetro pra porcaria nenhuma. A gente não tá nem aí com o que vocês fariam ou deixariam de fazer com ela. É violenta essa mania dos caras de achar que só tem valor a mulher que eles “pegariam” – e que a mulher “ao natural” é nojenta. No fim das contas, ambas se fodem, a que eles pegariam ou não: a primeira por ser assediada por babacas desse tipo e a segunda por ser hostilizada por babacas desse tipo. É tudo agressão, em diferentes níveis.

Outros reclamam que estão sendo “obrigados” a achar qualquer mulher bonita, que beleza não é construção social, e falam de evolução dentro dos contextos mais esdrúxulos possíveis, tipo: “o nojo veio para proteger o homem de comer carne podre e por isso ter nojo de pelo de mulher é normal”. Oi??? Qual a relação? Eu JURO que tive que ler isso. E, mais uma vez: pouco importa o que vocês acham. A gente só quer respeito em qualquer situação, é simples. Se o respeito vem com fatores condicionantes (“ai, mas só respeito mulher que…”), não é respeito, é discriminação com as que não cumprem os requisitos surreais e fantásticos impostos.

E a depilação, por exemplo, faz mais mal do que bem: além do gasto que envolve, muitas mulheres têm alergias a cera ou ficam cheia de bolinhas na pele quando passam lâmina. Sem contar que os pelos na região pubiana barram a entrada de microorganismos e protegem contra o atrito causado no ato sexual. Outros procedimentos voltados para a “manutenção da beleza” são ainda mais perigosos para a nossa saúde e colocam a nossa vida em risco. Portanto, é importante sim que a gente desmistifique essa cultura de mulher-de-plástico, para evitar que a mídia & a indústria enfiem o que quiserem em nossas cabeças. Como eu já disse, a busca pela cura dos nossos “defeitos” movimenta um mercado enorme.

O engraçado é que a invasão de trolls começou após algum deles mostrar o post em um grupo chamado “Libertarianismo”. Essa galera adora fingir que respeita liberdade individual da mesma forma que certos “humoristas” defendem a ~liberdade de expressão~: eles falam o que quiser, mas se você falar também, aí sua boca tem que ser calada a força. Ou seja, liberdade individual que abale as estruturas do status quo não pode. É interessante perceber também como esse tipo sempre anda em bando, na internet ou fora dela, agindo de forma agressiva e intolerante. Chega a ser assustador esse senso de coletividade que surge no homem e tira todo o senso crítico dele: como formiguinhas, eles atacam em grupo e cometem barbaridades que vão desde xingamentos até espancamentos e estupros. Tudo faz parte de uma mesma lógica.

A masculinidade é realmente muito frágil e precisa o tempo todo ser reafirmada pela tentativa de subjugação daqueles considerados inferiores. Por mais bobo que seja, por mais que seja “só internet”, essas tretas são um exemplo de como o elo masculino é construído também pela tentativa de derrubar outras pessoas (as guerras que o digam!):

trolls

E eu até entendo. Esse negócio de repensar os padrões estéticos é perigoso mesmo. Daqui a pouco as mulheres não estarão mais se depilando, nem pintando o cabelo, nem passando fome com o intuito de emagrecer. E elas, que já andam se destacando em escolas, universidades, postos de trabalho e outras atividades, podem acabar percebendo que ser musa é o caramba, o negócio é fazer a arte. E que o valor delas está muito além de um casamento falido com caras que buscam, em um pacote só, empregada doméstica, cozinheira e psicóloga grátis. Elas vão perceber que não precisam ter um relacionamento a qualquer custo, muito menos com um homem, até porque estarão financeiramente e emocionalmente empoderadas. Elas irão viajar e tocar projetos pessoais, escrever, dançar e ocupar todos os espaços que desejarem.

E aí quem vai preparar o Toddy de vocês?

Bônus: 

Captura de tela 2015-10-21 às 17.18.46

Um pouco mais desses ~jênios~ da argumentação pra vocês

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DEZ COISAS QUE HOMENS FAZEM ERRADO DURANTE O SEXO

Esta postagem foi escrita pela autora do blog Deixa de Banca. 

Homens que se relacionam com mulheres: aprendam alguma coisa aí! Mulheres que se relacionam com homens: comecem a se posicionar cada vez mais! E é isso. Aproveitem a leitura. 

Tudo bem, vivemos numa época de liberação sexual. Embora isso signifique mais sexo, não é a mesma coisa que sexo bom. O discurso da liberdade sexual trouxe pouco para mulheres heterossexuais além de trepadas medíocres. Isso porque, com séculos de sexualidade construída apenas para satisfazer o desejo masculino, homens não sabem trepar com mulheres. Eles não sabem do que a gente gosta. Eles não sabem como o nosso corpo funciona. Por vergonha, por medo, por não entender se o problema é com nós mesmas, ficamos caladas. E aí se perpetua o ciclo do sexo seco, dolorido, sem graça, fingido. Minas, se o cara estiver mandando mal, não se calem! Nenhuma de nós é obrigada a lidar com os erros abaixo:

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Ilustração de Polly Nor

1) Achar que sexo é só penetração

Eu posso estar pelada com um cara na cama, chupar ele, ele me chupar, todo mundo gozar e dormir de conchinha, mas ele não vai considerar que a gente fez sexo. Isso porque o sagrado pau dele não abençoou minha buceta. Por que só é “sexo de verdade” quando rola penetração, sendo que nem é assim que mulheres gozam?

É isso aí. De acordo com diferentes pesquisas, o número de mulheres que gozam com penetração varia de 50% a até mesmo 7%! Quando gozamos com algo dentro da gente, ainda assim provavelmente foi porque nosso clitóris estava sendo estimulado. É nele que está toda a graça! Passei boa parte da minha vida sexual me perguntando se eu tinha algum problema por não sentir tanto prazer assim ao ser penetrada, mas a verdade é que está tudo ok comigo. Eu só estava transando com caras que não reconheciam o poder do clitóris.

2) Começar a te chupar antes de você estar pronta

Você provavelmente já conheceu um cara assim. Ele ama chupar buceta. Muito. Ele gosta de tudo: do cheiro, do gosto, da sensação das suas coxas contra a cabeça dele. Mas, principalmente, ele ama falar sobre o quanto ele adora chupar buceta. É como se, ao te chupar, ele estivesse te fazendo um favor. Um rapaz com quem costumava sair já cometeu o desplante de dizer que eu tinha “sorte de ele gostar de fazer oral”, já que era o único jeito que eu conseguia gozar.

Bom, aí vai um recado: chupar minha buceta não é um favor. Não te faz um cara melhor do que os outros. Não te torna especial. Com esse ego inflado e senso frágil de identidade, você conseguiu transformar até um momento que deveria ser focado no meu prazer em algo sobre você.

Dito isso, muitos homens ficam tão empolgados em conquistar o selo especial de Rei da Chupada que se esquecem do essencial: eu tenho que estar pronta. Se você começar a me chupar do nada, sem nenhuma ação antes, com a minha buceta seca, é bom preparar o fôlego. Porque eu vou demorar para gozar. Bastante. Vou demorar tanto que vou começar a me preocupar se você já não está cansado e fazendo só por obrigação. Será que tem algo errado comigo? E se eu me concentrar bastante?

A partir daí, das duas uma: vou fingir um orgasmo para não ferir seu ego, se eu estiver me sentindo particularmente bondosa. Ou então vou pedir para você parar, porque hoje não vai rolar, tudo bem? Para sua boca encostar na minha buceta, eu tenho que estar implorando por isso. Tem que ser a única coisa em que eu consigo pensar naquele momento. Para me fazer chegar a esse estado, recomendo esse texto aqui.

3) Achar que sexo é performance

“Um cara já me disse que achou broxante porque eu ri do barulho da bola dele mexendo. Sei lá, era engraçado, desculpa. Não tô ali para ser a mulher sensual, perfeita, que só geme e goza. Parece que tem que tudo ser um momento sexy, selvagem, santa por fora, devassa por dentro”, desabafou uma amiga minha.

Acho que boa parte das mulheres passa pela meta-experiência de se imaginar trepando… enquanto trepa. Minha aparência deveria ser a última coisa com a qual eu deveria me preocupar, mas cá estou eu de quatro na cama me perguntando se meus peitos dependurados são realmente tão estranhos assim. De alguma forma sinto que não correspondo aquele ideal de deusa do sexo que me foi incubido, mas percebi que isso não é um problema.

O problema é achar que trepar é igual nos filmes, no pornô, na televisão, nos livros. Não é limpinho e antisséptico. Às vezes acontecem barulhos engraçados. Às vezes eu vou estar com uma calcinha puída. Às vezes eu não vou saber direito fazer alguma coisa. E tudo bem.

4) Bancar o machão

Nós, mulheres, ganhamos a fama de frígidas, mas pouco se fala sobre o quanto homens são travados durante o sexo. Qualquer coisa que ameace a posição deles como cabra macho é considerada um perigo. Parece que curtir ter o mamilo chupado ou levar uma pegada na bunda é “coisa de viado” e, portanto, algo a ser evitado a todo custo. Se soltem. Se deixem gemer. Deixem a gente descobrir os corpos de vocês.

5) Não prestar atenção nas reações da parceira

Tá, a mina não precisa se comportar igual uma atriz pornô, mas se ela estiver estatelada na cama, parecendo mais morta do que viva, alguma coisa está muito errada. Quando a gente curte, a gente mexe o corpo, geme, faz caretas bizarras, olha nos olhos, as pernas tremem. Se nada disso estiver rolando, as chances de você estar mandando mal são de 99%.

Pare e converse com a mina, pergunte se está tudo bem, se ela quer continuar, se tem alguma coisa que você pode fazer. É muito comum que mulheres tenham medo de mandar a real e dizer que não estão curtindo, justamente por termos sido ensinadas a agradar o cara e nos submeter ao que ele quer na cama.

6) Não perguntar nada

Nas cenas de sexo que vemos na televisão e nos filmes, trepar parece tão fácil e natural quanto espirrar. Os corpos se encaixam confortavelmente um no outro, as mãos sempre sabem o que fazer, cada instante é fluido e perfeito. O sexo na vida real tem o ritmo mais parecido com o de um motor que demora para engatar. Vai demorar um tempinho até que você e o seu parceiro saquem o ritmo e as preferências do outro. Algo que pode agilizar esse processo é fazer perguntas. Isso não é broxante. Broxante é achar que está arrasando fazendo uma parada cuja única reação que desperta na mina é vontade de bocejar.

Outra coisa: talvez você tenha preferências mais específicas, como xingar, bater, gozar em determinadas partes do corpo. Nunca é tarde para pesquisar um pouco sobre Andrea Dworkin, mas pode ser que você ainda não se sinta emocionalmente preparado para desconstruir seu comportamento sexual. Então, pelo amor de tudo que é sagrado, pergunte ANTES para a mina se ela curte ser chamada de vadia ou ser amarrada no sofá e obrigada a assistir a uma maratona de Big Bang Theory dublado.

7) Ter nojo

Vamos pensar um pouquinho sobre o que sexo é: você lambendo a genitália de outra pessoa. Você enfiando a genitália de outra pessoa na sua genitália, ou vice-versa. Você passando e enfiando os dedos na genitália dela. Isso envolve saliva, gozo, suor, pêlos, às vezes sangue menstrual. São dois corpos fazendo coisas que corpo fazem, o que pode significar cheiros e barulhos estranhos. É normal. E, sim, mulher tem corrimento, então secreções parecidas com catarro podem sair da vagina dela ou estar na calcinha dela. Superem. E nenhuma mulher vai ter a pele imaculadamente lisa e livre de pelos, a não ser que ela tenha um caso muito grave de alopecia.

Por outro lado, é sempre importante lembrar que uma lavada no pinto nunca é demais.

8) Acelerar o ritmo na hora que percebe que você vai gozar

Parece que o truque de mágica favorito de alguns homens é fazer seu orgasmo desaparecer. Naquela hora em que ele finalmente acerta no ritmo na hora de chupar ou te masturbar, você está quase chegando lá, começa a gemer, as pernas tremem e… o cara acelera feito uma britadeira. Mais uma vez enganado pelo pornô, ele acha que, indo mais rápido, vai fazer você gozar logo. Se você fez alguma coisa que me deixou próxima de gozar, a coisa mais lógica seria continuar, em vez de mudar completamente o que você estava fazendo, certo? A não ser que você seja adepto de tortura sexual.

9) Não usar camisinha

Essa dica é tão óbvia que não deveria estar aqui, mas muitos caras acham que têm um pinto de ouro imune a DSTs. Insistir para que a garota não use camisinha é desrespeitar a saúde dela. Isso sem falar nos Demônios Sexualmente Transmissíveis, também conhecidos como bebês. Portanto: encape o pinto.

10) Exigir boquete a base de empurrões

Vamos supor que você está dando umas beijocas em um rapaz dentro de um carro. Ele começa a fazer um carinho no seu rosto que romântico!, você pensa , até que a mão dele desliza para sua nuca e começa a forçar sua cabeça pra baixo. Esse é um jeito nada sutil que alguns homens encontraram para dizer que querem ser chupados. O ataque pode acontecer do nada, numa situação em que sexo nem havia entrado em pauta. “Mulheres não são acometidas por uma vontade súbita e instantânea de chupar seu pinto do nada”, esclarece uma amiga. Querido, espere a menina tomar a iniciativa ou então peça, com palavras, educação e em contextos adequados. Você consegue.

Leia também (esses foram escritos por mim):

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Estupro é invenção de maluca

Claro que não, né?

Mas é o que muita gente acha.

Uma amiga postou um texto no Facebook sobre consentimento (que era uma transcrição desse vídeo aqui). E desabafou sobre a vontade de enviá-lo para “uma longa lista de machos estupradores” que ela conhece. Um rapaz – que até então era nosso amigo, mas deletou a gente, rs – não se solidarizou com o fato de ela saber de tantos casos. Nem buscou entender melhor a questão ou debater de forma adulta. Muito pelo contrário. Ele chegou cheio de ironia questionando se existiam tantos estupradores assim, porque ele não conhecia. Deixou no ar que a minha amiga estava mentindo, exagerando. Mulher. E feminista. Só pode ser uma louca exagerada, não é mesmo?

Ela falou que ele provavelmente não sabia de nada ou não sabe de muitos casos porque nenhuma mulher iria contar pra alguém que já chega duvidando assim. Eu pensei o mesmo, me meti na conversa e especulei uma vista grossa da parte dele. Porque vista grossa é o que todo mundo acaba fazendo, na maioria das vezes. Até mesmo feministas fazem, gente. Homens, então, nem se fala.

Vejam bem, não estou dizendo que a minha amiga é inquestionável, ou eu ou qualquer outra pessoa. Mas esse é um comportamento comum de muitos homens. Eles automaticamente invalidam o que uma mulher diz, de forma arrogante, ~gaslaiteadora~  e infantilizada. “Será?”, “isso aconteceu mesmo?”, “você tem certeza?”, “você não está exagerando?”, “você não está confundindo as coisas?”, “você não entendeu errado?”, “não sei do que você está falando” ou “tá bravinha?” são coisas comuns ditas às mulheres, com o intuito de impedir que elas perturbem, com verdades dolorosas, a ordem estabelecida. Porque é muito mais fácil calar a mulher do que ter que cortar laços com amigos da balada ou acreditar que um determinado cara super profissional no que faz seja um agressor, por exemplo. Mulher sempre foi abusada mesmo… O que é só mais um sexozinho? E qual o problema da falta de consentimento uma vezinha só? Ou duas?

E assim tudo continua como está…

Olha, vou contar uma coisa pra vocês, que era pra ser óbvia, mas não parece ser: ninguém sai gritando por aí algo tipo “olá, que lindo dia, estuprei alguém hoje!”. Como eu já disse uma vez, nesse texto aqui, tem homem que sequer sabe que NÃO EXISTE DIFERENÇA entre sexo sem consentimento e estupro.

*facepalm*

Então aqui vai outra informação óbvia: um cara que tenta ou consegue fazer sexo com uma pessoa sem o consentimento dela, bem… Está tentando estuprar ou está efetivamente estuprando essa pessoa. No texto que acabei de indicar no parágrafo anterior, falo sobre isso. Que consentimento envolve uma pessoa ADULTA, ACORDADA, SEM ESTAR BEBAÇA, DROGADA, SOB EFEITO DE REMÉDIOS, HESITANTE OU DIZENDO NÃO. É bem simples. E, infelizmente, estupro é algo bem democrático: homens de todas as cores, tamanhos ou condições financeiras cometem esse crime, de várias maneiras. Existem caras que se sentem sem poder e se afirmam por meio da violação do corpo alheio. Existem caras que se sentem poderosos demais e acham que podem fazer o que querem por aí. Etc. Poderíamos passar o dia teorizando sobre poder & estupro, coisas extremamente conectadas.

Um outro ponto também, que é importante: o homem acaba se beneficiando do regime machista em que vivemos, que automaticamente coloca tudo que uma mulher diz em dúvida. Se alguém fala algo sobre ele, basta falar que a mina é vadia, que ela se insinuou, foi atrás, provocou, que ela deu em cima, mandou mensagem, que ela é maluca, barraqueira. Sei lá. Qualquer coisa assim. E a vida continua. Ele pode ter o desconforto de ter que lidar com alguns olhares tortos por aí, mas nada demais. Ninguém nem vai se preocupar em confirmar se ele fez algo de errado ou não. Mesmo se for confirmado, não faz diferença. Quem nunca teve que lidar com um agressor no círculo social que atire a primeira pedra. Já a garota ás vezes é extremamente exposta, julgada, isolada socialmente e, como consequência disso tudo, fica traumatizada e se sentindo culpada.

Aliás, hoje em dia eu duvido muito do caráter de caras que precisam ficar xingando mulheres que já estiveram com eles (ou qualquer mulher, na real), seja em namoro, sexo casual, tanto faz. Uma coisa é falar de forma objetiva que uma pessoa fez algo que você não gostou e te chateou, tipo, sei lá, roubou um gibi seu ou nunca mais atendeu suas ligações. Outra coisa é ficar xingando de “vadia”, “piranha” ou justificando (sem ninguém perguntar, muitas vezes) que a garota que ficou atrás ou é do tipo que “pega” todo mundo. Esses comentários sempre me parecem coisa de quem já está preparando terreno para se safar de alguma acusação mais séria, bem naquela lógica do “mas ela estava de vestido curto, mereceu!”.

Eu conheço, inclusive, diversos caras que agem de forma totalmente inaceitável. Que perseguem mulheres, inventam mentiras, adjetivam garotas de forma machista, são homofóbicos, violentos, forçam a barra pra ficar com alguém, levam a falta de comprometimento com parceiras como modus operandi, entre outras coisas. No entanto, eles são tratados como “irreverentes”, “doidinhos”, “excêntricos”. É muito difícil mesmo combater o que se chama de “cultura do estupro”, porque ela não é relacionada apenas ao estupro em si, mas a todos os comportamentos que citei nesse texto que colocam o homem em vantagem e a mulher em desvantagem e, consequentemente, colaboram com esse cenário em que a falta de respeito em relação ao corpo & subjetivo da mulher se torna um tabu, um elefante no meio da sala.

O que as pessoas querem é uma vítima perfeita. Uma que seja virgem, nunca tenha tirado foto pelada, beijado na boca, bebido, mandado mensagem ou falado palavrão. Que não seja lésbica ou nunca tenha viajado. Que não cante, dance em festas ou estude, que nunca tenha trocado de namorado. O que as pessoas querem é uma mulher que não existe, porque as que existem sempre vão dar algum motivo pra merecer algo de ruim – mesmo que o crime delas tenha sido apenas existir perto de um homem.

Tem outra coisa que eu quero contar, mas essa não é tão óbvia. Quando uma mulher é abertamente feminista ou envolvida em grupos e movimentos sociais, ela tem cada vez mais acesso à relatos de violência. Não só por conta de leitura de textos ou relatórios ou pesquisas. Mas porque as mulheres ao redor começam a se sentir confortáveis, percebem que pode rolar mais empatia e um entendimento mais profundo da questão. É um novo mundo que se abre, de compartilhamento de ideias e informações que muitos de vocês, que são homens, nunca vão entender. Mas independente disso, é real. E dói. Porque os números deixam de ser números e viram rostos de pessoas ao seu redor que você nunca imaginaria que tinham sofrido alguma violência.

E um monte de cara legal deixa de ser legal.

E dá raiva. Dá raiva do grupinho de amigos que faz merda com uma mina pra rir dela depois – male bonding por meio da violência, nenhuma novidade. Dá raiva dos urubus de porta de escola que ficam caçando novinhas, dá raiva do fótografo de mulher pelada que só quer tirar uma casquinha (aliás, a cada pedido que leio por aí de ~modelos pra fotos belas artísticas nu feminino~ meus olhos rolam tão fundo que quase afundam). Dá raiva das passadas de mão, dos beijos à força, do cara que trancou a mulher no quarto, que abriu a calça da menina dormindo, que forçou sexo sem camisinha e tirou onda, do stalker se fazendo de coitado apaixonado, dá raiva, dá raiva, dá raiva… Dá raiva e as linhas borram tanto que eu nem sei mais distinguir quem é quem. A conivência também é parte da violência.

E tem outra questão. Sendo o estupro também uma pauta política do feminismo, é preciso discutir estratégias, leis, comportamentos e tudo mais. Porém, o assunto é bem espinhoso, complicado e passa por questões muito subjetivas e por questões de vivência que, ás vezes, teorias e dados não alcançam.

E ainda existe o mito de que estuprador é somente aquele cara que sai do mato com uma faca. Ou é um homem com algum distúrbio psicológico. Essas ideias blindam o “homem comum” de culpa e transformam o estupro em um acontecimento excepcional, sendo que ele é comum e acontece dentro de famílias, entre “amigos” e assim vai. Isso emperra ainda mais a discussão e, ao mesmo tempo, naturaliza a violência que a mulher sofre por parte de conhecidos.

E enquanto debatemos se as mulheres estão mentindo ou não, muita gente corre impune por aí.

E as intolerantes são as que não querem mais ser estupradas e não os estupradores.

Mundo estranho esse.

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“A verdade inconveniente sobre Teena Brandon”

O texto a seguir é uma tradução enorme, feita com muito suor, sobre Teena Brandon  – ou Brandon Teena. Desde que assisti “Meninos não choram”, fiquei intrigada e passei a pesquisar mais sobre a história. Brandon queria realmente “ser homem”? Ou apenas não correspondia ao que se espera de uma pessoa que nasce com o sexo feminino? O que é “ser homem” afinal? E “ser mulher”? Ah, vamos lembrar que Brandon vivia no interior dos Estados Unidos, com diversas pessoas preconceituosas ao redor, não tinha condições econômicas favoráveis, sofreu abuso e estupro sem nunca ter tido seus traumas devidamente cuidados, internalizou diversos sentimentos ruins sobre si e era muito jovem.  Além disso tudo, os médicos pareciam querer se aproveitar da fragilidade e inadequação de Brandon para realizar experimentos em seu corpo.

Este artigo, de Carolyn Gage, escritora lésbica e feminista, traz análises sólidas, que ajudam a pensar em aspectos da história de Brandon que não são discutidos normalmente. Sempre me identifiquei bastante com a narrativa de diversos homens trans porque, como muita gente que nasce com o corpo do sexo feminino, eu sofri com disforia em diversos momentos da vida. E é realmente enojante o ~tratamento especial~ (pra não dizer abusivo e constrangedor) que se dá a corpos que possuem seios e vagina. Descobri que diversas amigas e colegas compartilham o sentimento, o que mostra que estamos em situações parecidas, mas lidando de formas diferentes. Mas isso é assunto pra depois.

O que Brandon realmente sentia ou queria nunca saberemos. No entanto, é válido pensar como a “casta sexual mulher” é aprisionante, aterrorizante e torna legítimo o acesso não autorizado aos corpos de sexo feminino. Leiam e digam o que acham. Os comentários estão abertos para críticas, opiniões e tudo mais.  Ah, como eu já disse antes, não sou nenhuma expert em tradução, então algumas partes podem estar confusas. Obrigada a todo mundo que ajudou, vocês foram fundamentais.

Segue o texto:

A verdade inconveniente sobre Teena Brandon

Carolyn Gage

Teena Brandon é lembrada nos dias de hoje como o transexual feminino-para-o-masculino vítima de um assassinato brutal motivado por transfobia. Quando ela tinha dezoito anos de idade, três anos antes de sua morte, foi aceita em um centro de crise como consequência de uma overdose, que pode ter sido intencional. No período, ela estava muito abaixo do peso por conta de um transtorno alimentar e tomava sete banhos por dia, com sete trocas completas de roupa. Bebia muito, enfrentou doze acusações pendentes de falsificação de documentos e uma possível acusação de agressão sexual contra uma menor de idade, estava sofrendo por conta de um estupro recente, não declarado e não tratado, e estava envolvida em um relacionamento sexual com uma menina de catorze anos de idade, no qual se passava por homem. Ela alegou aos terapeutas que, quando criança, foi vítima de abuso sexual durante anos, cometido por um membro da família do sexo masculino. De acordo com a pessoa responsável pela sua biografia, ela foi diagnosticada com “leve disforia de identidade de gênero”, e relatou aos amigos e amigas que uma cirurgia de mudança de sexo havia sido sugerida. Eu quero falar sobre uma verdade inconveniente. Eu quero falar sobre o fato da pessoa chamada Teena Brandon ter sido uma sobrevivente de incesto. Você não vai ouvir isso ser mencionado em “Boys Don’t Cry” (“Meninos Não Choram”), e não vai ouvir isso ser mencionado no documentário “The Brandon Teena Story” (“A História de Teena Brandon”). Você não vai ler sobre isso na edição atual da Wikipédia. É, como eu disse, inconveniente.

brandonchoram

Cena do filme “Meninos não choram”

“Inconveniente” significa “causando problemas ou dificuldades”. A verdade inconveniente sobre a história de incesto de Brandon causa problemas porque incorporar informação sobre abuso sexual infantil na narrativa de vida de Brandon patologiza a identidade transgênera que ela adotou e a fez se tornar um ícone. Isso é percebido como desrespeitoso e transfóbico — como um ataque à identidade de Brandon e uma tentativa póstuma de se apropriar da identidade da vítima.

Mas omitir a história de incesto de Brandon é desrespeitoso e fóbico para sobreviventes de abuso sexual infantil. Isso, inclusive, constitui uma tentativa póstuma de apropriação da identidade da vítima. Como uma sobrevivente, eu me sinto perturbada pelas histórias revisionistas de Brandon que omitem o status dela como uma vítima de abuso sexual infantil — e todas as verdades inconvenientes que, consequentemente, acompanham esse status.

Verdades inconvenientes tendem a permanecer desarticuladas, porque elas existem fora do quadro de referência em que foram estabelecidas. A primeira dificuldade que uma pessoa encontra ao falar sobre essa inconveniente verdade de Teena Brandon é a questão dos pronomes. Brandon foi sexualmente abusada como uma menina, nascida biologicamente fêmea, por um agressor adulto do sexo masculino que era um membro da família. O gênero da vítima e do agressor são detalhes clínicos importantes e fundamentais para o entendimento da agressão e do impacto dela em Brandon. Por isso, vou usar pronomes femininos para me referir a Brandon quando criança, ainda que, na vida adulta, Brandon se identificasse como homem. Isso coloca minha narrativa fora do protocolo aceitável para um diálogo respeitoso quando se fala sobre identidade trans.

Neste artigo, vou me referir a ela como “Brandon” porque, na vida adulta, ela escolheu adotar o sobrenome como primeiro nome. No título, usei o nome de registro, “Teena Brandon”. É uma outra verdade inconveniente que Brandon nunca tenha usado o nome “Brandon Teena”. Esse nome foi postumamente atribuído a ela, e então utilizado pela mídia. Era uma mentira conveniente, porque se tratava de uma inversão inteligente do nome de nascimento de Brandon, inverter o nome para corresponder com o gênero invertido. “Brandon Teena” é uma metáfora de experts em relações-públicas … e uma ficção.

O Incesto

Na biografia escrita por Aphrodite Jones, “All She Wanted” (“Tudo O Que Ela Queria”), o primeiro relato de abuso sexual aparece na entrevista com Sara Gapp, melhor amiga de Brandon quando Brandon tinha doze anos.”Ela [Brandon] me contou que um de seus parentes estava fazendo algo com ela que ela não gostava. Ela apenas meio que disse que, você sabe, ele colocava aquilo para fora e brincava um pouco com aquilo… e, ocasionalmente, ela disse, ele fazia ela tocar ele e brincava com ela e dizia ‘Você gosta disso. Você sabe que isso é bom… Você sabe que você não quer que eu pare.'” (Jones, 43) De acordo com Sara, “Naquele momento, ela não queria que ninguém soubesse o que aconteceu. Ela não queria o cara com raiva dela… Ela estava envergonhada. Não importava o que ele fez com ela, ela continuava gostando dele.” (Jones, 43)

O terapeuta de Brandon confirmou mais tarde a história de abuso, adicionando que, de acordo com ela, as sessões de abuso duravam horas e o molestamento aconteceu por muitos anos, entre a infância e a adolescência.  Em uma sessão de aconselhamento, Brandon falou sobre o assunto em um confronto com sua mãe JoAnn, mas pediu para que ela não confrontasse o agressor, que pode ter sido um dos parentes de JoAnn. A irmã de Brandon, Tammy, também uma vítima, confirmou a descrição de Brandon. É possível que esse abuso tenha sido um fator decisivo para Brandon deixar sua casa ao dezesseis anos, arrumar um trabalho e ir morar com sua então namorada, Traci Beels, uma colega de escola mais velha.

Respostas da Vítima ao Incesto

Em seu livro “Victimized Daughters: Incest and the Development of the Female Self” (“Filhas Vitimizadas: Incesto e o Desenvolvimento do Ser Feminino”), Janet Liebman Jacobs diz que o incesto representa “a mais extrema forma de objetificação sexual da criança fêmea na cultura patriarcal” (Jacobs, 11). Ela dá argumentos excelentes para demonstrar que o incesto tem um grande impacto no desenvolvimento da personalidade feminina, incluindo identidade de gênero.

O livro de Jacobs destaca importantes questões de desenvolvimento que influenciam a formação da personalidade de filhas abusadas sexualmente, e entre essas é a identificação com o autor. Anna Freud, filha de Sigmund Freud e fundadora da psicoanálise infantil, discorre sobre esse processo:

A criança introjeta alguma característica de um objeto de ansiedade e então assimila uma experiência de ansiedade pela qual ele [ela] acabou de passar… Ao personificar o agressor, assumindo seus atributos ou imitando sua agressão, a criança transforma a si mesmo [mesma] da pessoa ameaçada para a pessoa que faz a ameaça (Freud, 121). Afastando-se de sua mãe, quem ela entende como uma desonesta traidora-de-suas-iguais, a filha vitimizada se espelha no autor masculino, que, por ser seu abusador, é entendido como poderoso, e quem, por ser homem, ainda tem o potencial para idealização objetiva. “Feminino”, para a filha, se tornou o gênero de vítimas e traidoras. Segundo a pesquisadora de trauma Judith Herman, “em suas tentativas desesperadas de manter a fé em seus pais, a vítima desenvolve imagens altamente idealizadas de pelo menos um dos pais… Mais comumente, a criança idealiza o abusivo e desloca toda sua raiva sobre o inofensivo.” (Herman, 106). Descrevendo sua pesquisa com sobreviventes de incesto pai-filha, Herman nota que “com a exceção daquelas que se tornaram feministas conscientes, a maioria das vítimas de incesto pareciam considerar todas as mulheres, incluindo elas mesmas, desprezíveis” (Herman, “Father-Daughter Incest”  — “Incesto Pai-Filha” — 103).

Rejeitando a mãe e a própria identidade feminina, a filha vitimizada começa a imitar o agressor. E. Sue Blume, autora de “Secret Survivors” (“Sobreviventes Secretas”), descreve como a filha se reinventa através da identificação com o autor.

…vítimas crianças frequentemente se auto-recriam, desenvolvendo alter egos que oferecem uma alternativa positiva para elas próprias. Mais comumente, é uma persona masculina: as pacientes mulheres e sobreviventes podem forjar personalidades masculinas alternativas ou se unir a um companheiro que represente uma fantasia masculina. Isso é simples de entender: como uma vítima, e uma mulher, ela associa seu estado vulnerável com estar sem defesa; homens, no entanto, são vistos como fisicamente mais fortes e como um alvo difícil para a vitimização. (Blume, 85)

Expressão de Gênero de Brandon

Brandon não gostava de usar vestidos para ir para à escola. Quando a sua mãe perguntou a razão disso, Brandon disse que vestidos a deixava com frio (isso era em Nebraska) e que os meninos podiam olhar quando as meninas subiam as escadas. Por frequentar uma escola que exigia uniformes, ela usava calças e gravatas que eram o padrão para os meninos, mas que meninas também podiam usar. De acordo com a melhor amiga dela, Sara Gapp, “as pessoas insistiam em dizer que ela se vestia como um garoto. Ela não se vestia… Ela usava roupas que a deixava confortável. Ela não ia na seção de meninos pra comprar roupas. Eram roupas de mulheres que ela estava usando. Ela só gostava de roupas largas. Ela usava cabelos curtos. Isso faz dela um cara?” (Jones, 55)

A escolha de usar roupas largas é compatível com a escolha de muitas sobreviventes de abuso sexual. A “passabilidade” de Brandon como homem começou mais tarde, como uma brincadeira com uma adolescente que ligou para o número de Brandon por acidente e a confundiu com um menino no telefone. De acordo com Sara, “Até Liz Delano [a menina que ligou errado], se você a chamasse de menino, Teena ficava ofendida. Ela não queria ser reconhecida como um homem. Ela não se sentia como um homem.” (Jones, 54)

Brandon também foi descrita como se envolvendo na encenação do papel masculino. De acordo com sua irmã, Tammy:

A igreja era realmente importante pra ela. Nós estudamos em um colégio católico e eu acho que eles meio que fazem uma lavagem cerebral em você desde o jardim de infância para ser padre ou freira. Eles sempre trazem padres e freiras para falar que receberam o chamado e que você saberá quando o receber também… Teena nunca quis ser uma freira, ela sempre quis ser um padre, e eu achava engraçado porque eu tinha que participar de suas missas, eu ficava entediada a maior parte do tempo, pois ela lia a bíblia e nos fazia cantar. Eu acho que era um jogo que ela gostava, de vez em quando ela dizia ‘quero ser um padre algum dia’ (Jones, 34). Será que Brandon estava se identificando com o poder ou com um gênero? Considerando que a Igreja bania mulheres padres e negava que elas recebessem prestígio, cerimônias oficiais e a oportunidade de receber um cargo de liderança associado ao sacerdócio, seria irresponsável atribuir o desejo de Brandon de ser um padre a uma “disforia de gênero” – um termo que, quando aplicado a mulheres, pode também significar “resistência à casta sexual”. Identificação com papéis de gênero em uma cultura não podem ser separados de identificação com os privilégios que acompanham esses papéis. Como nota uma psicanalista pioneira, Karen Horney, “nós vivemos em uma cultura masculina, i.e estado, economia, arte e ciência são criações de homens e estão portanto preenchidas pelo seu espírito.” (Horney, 152).

O desconforto de Brandon com o desenvolvimento do seu corpo foi documentado. Em seu livro, Aphrodite Jones comenta que Brandon odiava a dor causada pelo crescimento dos seus seios e reclamava da dor de cólicas menstruais e da inconveniência de ter que lidar com uma grande quantidade de sangue mensalmente. Seriam essas as objeções de um “homem preso em corpo de mulher”, ou de uma garota particularmente agressiva e articulada, apavorada pela inconveniência, constrangimento e dor de um corpo adulto feminino?

O desconforto de Brandon é muito mais profundo do que apenas incômodo. Ela comentou que a “deixava enjoada” (Jones, 47) quando alguém encarava seu peito. Novamente, uma menina não precisa ser uma sobrevivente de incesto para demonstrar nojo quando alguém objetifica seu corpo em formação, mas uma sobrevivente de incesto que internalizou um ideal masculino tem de enfrentar um diferente conjunto de obstáculos:

Enquanto a puberdade representa uma época dolorida para muitas adolescentes, para filhas de famílias incestuosas essa transição à feminilidade adulta é especialmente difícil e confusa, pois seu corpo sinaliza não apenas a passagem para a maturidade feminina, mas o reconhecimento que o ideal de masculinidade internalizado é uma fantasia de outro e nunca poderá ser o seu verdadeiro eu. (Jacobs, 86) A rejeição ao seu eu feminino explica a frequência de desordens alimentares durante a puberdade de sobreviventes de incesto. Brandon, na época de sua tentativa de suicídio, foi registrada manifestando sérios transtornos alimentares.

Para a sobrevivente de incesto, o seu corpo se torna o símbolo de sua vitimização e, assim, o foco do seu desejo de controle. Além disso, a obsessão por um corpo magro, de “menino”, no lugar de uma expressão de feminilidade, talvez represente uma rejeição inconsciente do seu eu feminino, através do qual a filha tenta integrar o ego masculino internalizado com uma imagem externa de um corpo de criança masculinizado (Jacobs, 88).

A Lesbofobia de Brandon

Brandon relatou que, em outubro de 1990, foi estuprada. No mesmo outono, quando ela tinha quase dezoito anos, Brandon tentou alistar-se no exército. De acordo com seus amigos, ela estava determinada a fazer parte da Operação Trovão do Deserto. Infelizmente ela não passou no teste escrito. Isso parece ter causado uma reviravolta na vida dela. De acordo com sua mãe, “ela estava realmente chateada… Ela começou a mudar.” (Jones, 47)

Uma das maiores questões sobre as escolhas de Brandon era “por que ela não se reconhecia como lésbica?”. Ela talvez estivesse tentando fazer isso quando tentou se alistar. Por que um homem trans tentaria entrar em um ambiente totalmente feminino e estritamente segregado? O exército, apesar de suas políticas homofóbicas e persecutórias, sempre foi atraente para lésbicas por ter historicamente fornecido um ambiente de trabalho e vivência com pessoas do mesmo sexo por quatro anos.

Embora estupro e assédio sexual ocorram no exército, uma sobrevivente que associa sua violação com isolamento e exposição contínua ao ataque masculino pode sentir que existe segurança em um ambiente totalmente feminino, e especialmente se ela acabou de ser estuprada. Inclusive, as regras de uso de uniformes do exército fornecem cobertura protetora que retira a ênfase das características sexuais e desencoraja a objetificação sexual. Seria ingênuo assumir que Brandon, que na época do ensino médio identificou sua atração sexual por mulheres e até foi morar com uma namorada, não estava ciente da associação de lésbicas com o exército. Ela talvez estivesse procurando por lésbicas, o que talvez explique parte de sua reação extrema ao falhar no exame de admissão.

Se esse fosse o caso, por que então ela não procurou por comunidades lésbicas em sua cidade natal? Porque “não pergunte, não conte” (“don’t ask, don’t tell“) não era uma política que se aplicava a gays e lésbicas de classe baixa em Lincoln, Nebraska, em 1990. A homofobia por lá era evidente e potencialmente fatal. O assédio poderia acontecer por meio de ligações anônimas e obscenas, ameaças e insultos na rua e ataques físicos. Por estupro ser considerado como uma “cura” para o lesbianismo, o assédio muitas vezes poderia tomar forma como ameaça de estupro ou o ato em si.

Para uma jovem que tinha horror à sexualidade masculina e que havia dito aos amigos que estupro era um de seus maiores medos, e que tinha acabado de ser estuprada, a possibilidade desse tipo de assédio devia ser aterrorizante. O estupro de outubro deve, de fato, ter sido uma violência homofóbica dirigida contra ela, por ser uma mulher que não namorava homens e que tinha um histórico de morar junto com uma namorada.

Mas havia outro motivo para que Brandon não se identificasse como lésbica: lesbianismo havia se tornado uma questão de poder entre Brandon e sua mãe.

Em março de 1991, pouco tempo após Brandon ter sido rejeitada pelo exército, uma adolescente chamada Liz Delano ligou para um número errado e chegou até Brandon por engano. Liz achou que Brandon fosse um garoto adolescente, e Brandon entrou no jogo, chamando a si mesma de “Billy”. Como uma piada, ela colocou uma meia na sua roupa íntima e encontrou Liz num rinque de patinação. Liz continuou a ligar para a casa de Brandon e perguntar por “Billy” e JoAnn começou a entender que sua filha estava se passando por um garoto. Ela não estava feliz.

Algumas semanas depois, Brandon começou uma relação com Heather, uma garota de 14 anos e amiga de Liz. Ela foi morar com Heather, se passando por homem e chamando a si mesma de “Ten-a”. JoAnn Brandon entendeu que essa relação era sexual, e começou a telefonar para Heather e para a mãe de Heather, insistindo que o jovem rapaz que estava na casa delas era sua filha. Heather, assim como Brandon, era uma sobrevivente de incesto. De acordo com que conta a biografia de Jones, o foco da relação de Brandon era uma intensa interpretação romântica, sem sexo genital, e Heather respondeu imediatamente com gratidão pelo comportamento atencioso e ausência de pressão sexual. Brandon se ressentiu profundamente com a tentativa de JoAnn de sabotar a relação, e ressentiu especialmente a tentativa da mãe de colocá-la no papel de uma predadora sexual lésbica.

Para explicar as insistentes ligações de sua mãe, Brandon disse para Heather que ela nasceu hermafrodita, mas JoAnn tinha escolhido criá-la como uma mulher para “preservá-la.” (Jones, 89) De acordo com Heather, “ele [Brandon] tinha uma resposta legítima para tudo. Ele me diria que sua mãe não aceitava o fato de que ele era homem, que ela queria duas menininhas, que ela estava apenas pregando uma peça.” (Jones, 67) O conhecimento de hermafroditismo veio de um episódio do programa Phil Donahue.

JoAnn conta uma história diferente: “eu sabia que de repente haveriam festas regadas à cerveja e eu teria uma filha de dezoito anos por lá que não deveria estar bebendo ou fazendo coisa alguma.” (Jones, 67) Ela estava ciente de que qualquer atividade sexual entre Brandon e Heather, então com catorze anos de idade, constituiria em estupro presumido. JoAnn estava escandalizada pela alegação de hermafroditismo de Brandon. “Eu dei à luz ela; eu sei de que sexo ela é. Não tinha nenhum ‘anexo’ a ser removido.” (Jones, 68)

JoAnn começou sua campanha para tirar sua filha “do armário”. Ela mandou duas colegas de trabalho lésbicas para a casa da mãe de Heather. Elas tinham fotos de Brandon quando criança e uma cópia de sua certidão de nascimento. Como resposta, Brandon destruiu cada foto sua que encontrou pela frente. Percebendo que o lesbianismo era usado por sua mãe como tentativa de acabar seu relacionamento, Brandon começou a enfaixar os seios, falar mais baixo e usar o banheiro masculino em público.

Em junho de 1991, Brandon entrou com uma queixa contra sua mãe por assédio. Ela e Heather levaram a fita de sua secretária eletrônica para a polícia. Nela estava uma mensagem de JoAnn chamando-as de lésbicas e ameaçando expô-las. A insistência da mãe sobre o lesbianismo de Brandon tornou-se uma questão de poder tão crítica a ponto de envolver a polícia.

Lesbianismo era um problema familiar em outro sentido. No inverno seguinte à tentativa de Brandon alistar-se, sua irmã Tammy deu um bebê para a adoção — para um casal lésbico de San Francisco. Brandon insistiu para a irmã ficar com o bebê. Ela queria desperadamente ser tia. Mais tarde, um dos amigos gays de Brandon relataria como “ele [Brandon] odiava lésbicas; ele era completamente contra lésbicas” (Jones, 93) citando a adoção como razão para seu ódio.

Naquele mesmo verão, Brandon começou a soltar cheques sem fundo para comprar mantimentos e presentes para Heather. Ela conseguiu uma identidade falsa e estava conseguindo empregos como homem. Ela começou a falar para amigos que passou por uma operação de mudança de sexo em Omaha. Em outubro, ela foi citada em duas acusações de falsificação em segundo grau. As atividades ilegais de Brandon começaram a aumentar, e também seu consumo de álcool, comportamentos compulsivos e distúrbios alimentares. Finalmente, Sara, sua melhor amiga, decidiu ela mesma lidar com estes problemas. Ela encontrou com Heather e explicou a ela que Brandon era uma mulher. Heather acabou o relacionamento e Brandon tentou se matar tomando um vidro de antibióticos. Isto a levou a um centro de crise, e lá, finalmente, ela esteve apta a receber conselho profissional.

mugshot

Mugshot de Brandon

O Diagnóstico de Crise de Identidade de Gênero

Brandon ficou sete dias no centro de crise. O Dr. Laus Hartman escreveu o relatório inicial. O histórico de Brandon teria incluído doze acusações pendentes de falsificação de documentos, uma possível acusação de abuso sexual contra uma menor, um estupro não tratado em outubro de 1990, distúrbios alimentares, consumo excessivo de álcool e um relacionamento sexual em progresso com uma garota de catorze anos. O diagnóstico? Um caso leve de crise de identidade. Depois de apenas alguns dias de terapia, Brandon disse a sua mãe que uma operação de mudança de sexo havia sido sugerida por seu terapeuta.

O transexualismo foi ideia de Brandon ou dos terapeutas? Deb Brodtke, médica clinica em saúde mental, pegou o caso de Brandon no centro de crise e continuou a tratá-la por quase um ano como paciente externa. Há registros de Brandon dizendo a Brodtke que queria ser homem, “para não ter que lidar com as conotações negativas de ser lésbica e por sentir-se menos intimidada por homens quando se apresentava como um.” (Jones,83) Se isso for verdade, o que Brandon disse a ela não foi que se sentia como um homem preso a um corpo de mulher, mas uma mulher presa em um mundo em que é perigoso ser fêmea, e especialmente perigoso ser lésbica.

O livro de Jones não relata nenhuma tentativa da parte de Brodtke de desafiar a lesbofobia internalizada de Brandon. Não existe nenhum registro em sua narrativa de esforços para fornecer a Brandon informações acerca da cultura lésbica ou da história lésbica, informações sobre grupos de aceitação ou grupos para jovens lésbicas. Não existe nenhum registro de tentativas de criar contatos entre Brandon e lésbicas adultas que pudessem aconselhar ela. O diagnóstico de “crise de identidade de gênero” (GID, do inglês Gender Identity Disorder) reflete o histórico heterossexismo do campo da saúde mental, que tem tradicionalmente entendido o desejo gay e lésbico como um desejo de se tornar membra/o do outro sexo.

O diagnóstico de Brandon parece não ter incluído alcoolismo. É interessante notar como prevalece o uso e abuso de álcool no documentário, na biografia e no filme ficcional – e ainda assim, como parece estar ausente do plano de tratamento. Se o abuso de álcool houvesse sido identificado como pelo menos um fator contribuinte para o caos e tormento na vida de Brandon, me parece lógico que deveria ter existido alguma tentativa de incorporar um programa de recuperação no plano de tratamento.

E, finalmente, o diagnóstico de GID dado a Brandon, tão repleto de homofobia e preconceito de gênero, também parece ter ignorado o “elefante no meio da sala” — o incesto. A avaliação do tratamento e diagnóstico de Brandon não parece incluir Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, síndrome comumente associada a sobreviventes de abuso na infância, e especialmente sobreviventes de incesto. Isso é notável, dado o fato de que Brandon chega na clínica com um histórico de anos de abuso sexual na infância não tratados, um caso de estupro recente, um aumento gradual de atividades criminosas, um histórico de múltiplas identidades, predação sexual a meninas menores de idade, comportamento de risco extremo, evasão de cuidados médicos por medo de exames de rotina, distúrbios alimentares, idealização de suicídio, terror por estar num corpo de mulher, medo de homens, preferência por roupas que protegessem, quantidade compulsiva de banhos — seis ou sete por dia com mudança de roupa. (A obsessão de Brandon com limpeza continuaria por toda sua vida, e, de acordo com amigas/os, mesmo nos seus últimos anos de vida ela ainda tomava três ou quatro banhos por dia.)

Ao invés de um diagnóstico relacionado a trauma, o terapeuta aparentemente mandou Brandon para casa com informações sobre cirurgias de “redesignação sexual”, que incluiriam procedimentos como suturação da vagina, remoção dos seios, ovários e útero, transplantar os mamilos, construção de um “apêndice” usando pele das coxas e administração de esteroides. Amigas/os de Brandon reportaram que ela expressou acentuada ambivalência em relação a essas recomendações.

Sua irmã, Tammy, lembra da reação da família:

Basicamente, nós estávamos ficando preocupados com Teena. E nós não conseguíamos nenhuma ajuda para ela… você sabe, não para ajudá-la a lidar com o fato de ser gay ou qualquer coisa assim, mas para ajudá-la a encontrar quem ela era. Talvez ela precisasse de aconselhamento. E ela havia mencionado para nós o fato de ter tentado cometer suicídio, então nós meio que usamos isso como forma de colocá-la lá [no Hospital Geral Lincoln], e o psicólogo de lá disse que Teena precisava de ajuda a longo prazo… o que eu não sei se era realmente o caso, mas eles mandaram ela para o centro de crise, e… Eu gostaria de ter realmente sabido o que Teena disse a eles ou o que esses médicos disseram a Teena mas, resumindo, ela saiu de lá dizendo ‘Eu quero mudar de sexo’, e… ‘Eles me disseram que eu preciso fazer isso e aquilo.’ E eles podem ter dito isso a ela, mas eu não sei se era o que ela realmente queria fazer.” (Muska) Ao defender a cirurgia que facilitaria a transição de Brandon, o terapeuta a orientou acerca do estabelecido ano de probação, no qual a paciente seria requerida a viver como homem. Teria Brandon descrito suas estratégias correntes para ser vista como homem nas relações – estratégias que envolviam manipulação e estupro de menores inexperientes e ingênuas, que provavelmente não tinham como ser assertivas ou suficientemente educadas para confrontar os subterfúgios sexuais de Brandon? Se o terapeuta chegou a nomear os problemas éticos, legais e de segurança de tais estratégias, Brandon nunca viu nenhuma razão para questioná-las. De fato, armada com o diagnóstico oficial de “Axis 1: transexualismo,” Brandon aumentou suas manipulações e seduções.

Depois do aconselhamento, seu repertório de mentiras se expandiu e passou a incluir histórias sobre sua avó ter planos de enviá-la para a Europa para fazer a cirurgia, e de datas marcadas para mastectomia bilateral em junho de 1993. Ela disse a suas várias namoradas em diversos momentos que sua vagina havia sido costurada, que “algo” havia sido implantado e eventualmente cresceria como um pênis e que ela havia começado terapia hormonal. Assim como as histórias de hermafroditismo que precederam o diagnóstico de transexualismo, todas eram mentira.

Misoginia, dissociação e GID

De acordo com os estudos de Jacobs e Herman, o repúdio da filha vitimizada pela identidade feminina e sua internalização de um homem idealizado representam respostas para o abuso sexual na infância.

Se gênero é considerado um agregado de marcadores de casta sexual em um sistema de dominação baseado no sexo biológico, então é simplista e enganador caracterizá-lo como “performativo”. Visto no contexto da cultura patriarcal, gênero é um emblemático sistema de dominação no qual mulheres são universalmente oprimidas como uma casta.

A filha vitimizada que adota uma persona masculina não está “fodendo com o gênero”. O gênero é que tem fodido com ela e, em uma tentativa de identificar o poder que tem machucado ela, ela passa a adotar a estratégia de uma criança desesperada cuja única opção é alterar a percepção dela sobre si mesma.

O que o movimento transgênero chama de “foder com o gênero” (“gender-fucking”) é simplesmente um exercício de mover marcadores em vez de realizar qualquer mudança fundamental no gênero. O gênero ainda existe. Ainda é uma estrutura de organização para a sociedade. O que muda é que você apenas “representa” ele de forma diferente: passa a ser permitido anexar o gênero em diferentes corpos. O objetivo das políticas transgêneras é permitir que você “seja” o gênero que você “é”. No entanto, ser o seu gênero ainda significa o que você veste, o que você faz, como você se expressa e ainda é algo ligado à noções fundamentais do que é ser homem e mulher… E não é surpresa alguma que o que é ser homem e o que é ser mulher dentro dessa visão segue exatamente o rastro do que já é definido como mulher e homem. (Corson, 3) As políticas transgêneras não destroem as posições de homens e mulheres na hierarquia de gênero e sim “fazem com que a escolha das mulheres de se opor a essa hierarquia (sendo mulheres e em prol das mulheres) se torne incompreensível.” (Corson, 3)

Além da sua participação no amplo sistema político de dominação masculina, o diagnóstico GID atua também em uma frente mais pessoal, para proteger os autores. Se a “disforia de gênero” da filha vitimizada é uma resposta pós-traumática à violência sexual, ela reflete uma tentativa de dissociar, de arrancar o trauma.

Um trauma que não pode ser adequadamente representado ou narrado permanece escondido. É um pedaço alienado de experiência que resiste a qualquer assimilação da pessoalidade do hospedeiro do qual se alimenta. A dissociação também pode ser entendida como um ato narrativo. Narra a fragmentação, fratura, ruptura, disjunção, e incomensurabilidade. (Epstein e Lefkovitz, 193) A dissociação é uma estratégia de sobrevivência.

Ela fornece uma maneira de sair de uma situação intolerável e psicologicamente incongruente (duplo-cego), ergue barreiras na memória (amnésia) para manter acontecimentos e memórias dolorosos esquecidos, funciona como um analgésico para prevenir que se sinta dor, permite que se escape viver o acontecimento e se escape de responsabilidade/culpa, e pode servir como uma negação hipnótica do sentido do eu. A criança pode começar a usar o mecanismo dissociativo espontaneamente e de forma esporádica. A vitimização repetida e a injunção do duplo-cego, ela se torna crônica.  Talvez futuramente se torne um processo autônomo conforme o indivíduo cresce (Courtois, 155). Dissociação é uma maneira de alterar a consciência. Como milhões de sobreviventes podem atestar, essas memórias dissociadas não foram embora realmente. Se elas jamais vão emergir à mente consciente ou não, elas continuam a exercer sua influência por meio de transtornos somáticos, flashbacks, distúrbios do sono, sonhos inoportunos e transtornos dissociativos. Memórias reprimidas não vão embora só porque alguém deseja que elas desapareçam. A sobrevivente assume o controle de sua vida entendendo e assimilando o trauma reprimido, não reforçando a divisão. E esse é justamente o porquê de o diagnóstico GID ser tão potencialmente pernicioso quando aplicado à filha vitimizada.

Quando o diagnóstico GID substitui identificação e tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, isso reforça a divisão que foi um resultado do trauma infantil. Por mais “queer” que seja o diagnóstico, não se desvia de um modelo de normatividade baseado em papéis de sexo-casta tradicionais. O diagnóstico GID que recomenda transexualismo como uma “cura” compromete seriamente o potencial de recuperação da filha vitimizada dos efeitos de seu trauma. Ao invés de oferecer técnicas para ajudar a reobtenção de sua memória e reintegração do material dissociado, o diagnóstico GID possibilita e encoraja investimentos ainda mais profundos no transtorno, ao oferecer uma promessa falsa de legitimar essa identidade dissociativa “ahistórica” (sem perspectiva histórica ou contexto) por meio de “redesignação” de gênero. Ao invés de desconstruir, isso explora a síndrome.

Revitimização

Finalmente, quando a identidade transgênera é uma extensão e amplificação da identificação da filha vitimizada com o agressor, uma consciência dividida continua caracterizando a psique de sobrevivência, que coloca-se em cenários de revitimazação.

Tanto na ação quanto na imaginação dos sobreviventes, existe uma relação tênue entre o agressor masculino internalizado e a criança feminina violada. Enquanto a introjeção do agressor pode, por vezes, mascarar a identidade da filha como vítima e, assim, contribuir para a construção de uma personalidade falsa, padrões de revitimização revelam a dimensão em que o eu da fêmea desprotegida e violada também caracterizam a personalidade da filha vitimizada. (Jacobs, 99) Revitimização foi a história da curta vida adulta de Brandon, enquanto ela usava várias identidades fraudulentas que resultaram em detenção e encarceramento, seduzia garotas menores de idade que a rejeitavam quando descobriam o segredo dela, e fazia crescentes e perigosas alianças com homens violentos e homofóbicos. Os fingimentos sexuais de Brandon, fingimentos que se intensificaram após seu diagnóstico oficial como transexual, colocaram suas namoradas em risco de formas bem reais. Suas namoradas em Lincoln foram provocadas e assediadas por seus amigos, mas quando Brandon se mudou para a mais provincial Richardson County, os riscos tornaram-se ainda maiores. Ambas as amigas de Brandon de Humboldt, Lisa Lambert e Lana Tisdel, estavam sendo assediadas em seus locais de trabalho e em eventos sociais. Umas das amigas de Lisa descreveu o dilema de Lisa: “Todo mundo em Humboldt sabia sobre Brandon. Lisa não tentou esconder. Lisa não conseguia acreditar que algo assim tinha acontecido a ela. Ela deixou claro que ela estava muito preocupada para impedir a entrada de Brandon. Ela estava brava e magoada em relação a isso, mas ela não queria machucá-lo [Brandon], não queria colocá-lo nas ruas.” (Jones, 205) Sua compaixão custaria sua vida.

A situação de Lana era complicada por sua amizade com os ex-condenados Tom Nissen e John Lotter. Quando Brandon foi presa por falsificação de cheques em 15 de dezembro de 1993, ela telefonou para Lana para socorrê-la, mas Lana estava horrorizada por descobrir que seu “namorado” estava sendo colocado na ala feminina da cadeia. Ao invés de ir ela mesma, Lana mandou Tom, seu ex-namorado, para socorrer Brandon. A prisão foi anunciada naquela semana pelo Jornal de Falls City, tornando pública a identidade biológica de Brandon como mulher, e, consequentemente, a participação de Lana no que seria percebido como um relacionamento lésbico. Amigos de Brandon acreditam que o socorro foi o início do que acabou em um subsequente estupro. Nissen e Lotter parecem ter se sentido enganados e humilhados pela representação de gênero de Brandon. Nas palavras de um amigo, “Ele [Brandon] representou um jogador e [o jogador] foi vingado por isso.” (email privado, 20 de dezembro de 2004)

lana

Brandon & Lana

No entanto, de acordo com Jones, Lana tentara proteger Brandon, mesmo depois de descobrir ter sido enganada. Ela disse a sua família, a Tom Nissen e a John Lotter que tinha visto o pênis de Brandon. Mas Tom e John não se convenceram, e eles realizaram sua própria investigação — despindo e revistando o corpo dela. Ambos eram homens com histórico de violência, e eles decidiram resolver a questão com as próprias mãos. Pode ser que a segurança de Lana estivesse seriamente comprometida uma vez que havia sido descoberto por esses homens que ela tinha estado em um relacionamento sexual com uma mulher biológica e mentiu para proteger o fato.

Três dias depois, Brandon, por insistência de Lana, foi à polícia denunciar o estupro. A polícia questionou John e Tom, mas não os prendeu. John negou o estupro, mas disse que Lana tinha pedido a ele para encontrar um jeito de definir o sexo de Brandon. Em 30 de dezembro, os dois homens foram à casa de Lana procurando Brandon, mas Brandon, que já não era mais bem-vindo por lá, estava abrigado na chácara de Lisa. Lana relatou que John afirmou que “estava se sentindo afim de matar alguém” e disse que ela, Lana, era a próxima. Isso pode ter sido o porquê da mãe de Lana ter dito a eles onde Brandon estava escondido. Depois que eles foram embora, nenhuma ligação foi feita para alertar Brandon ou Lisa que os homens estavam a caminho. Testemunhos conflituosos sugerem que Lana pode na verdade ter estado no carro, ou até mesmo na casa, na noite dos assassinatos.

Considerações sobre o tratamento

Muitos aspectos da vida de Brandon teriam sido mais fáceis numa cultura que não fosse transfóbica, mas a recuperação do trauma do incesto não seria um desses aspectos.

Recuperação de sexualização traumática… começa com o processo de reintegração pelo qual o trauma original é trazido à consciência. Só então a idealização do autor pode dar lugar à realidade de sua violência sexual. Com a desconstrução de um pai idealizado, a filha pode começar a recuperar e redefinir o eu feminino, diminuindo o impacto do agressor internalizado (Jacobs, 165). Quando a internalização desse ideal se torna incorporada à identidade de gênero da filha vitimizada, especificamente como uma resposta ao trauma, esse tipo de desconstrução é impedida. Essas talvez tenham sido tão machucadas pelo incesto que pode parecer mais oportuno e terapêutico adotar uma identidade de gênero diferente que não seja tão aparentemente carregada com associações traumáticas. Essa identidade, no entanto, não pode – por definição – oferecer a integração que caracteriza recuperação.

Então, como a filha vitimizada se cura? Em “Victimized Daughters” (“Filhas vitimizadas”), Janet Liebman Jacobs apresenta alguns estágios associados à recuperação, notando que nem toda sobrevivente vivenciará essas mudanças (Jacobs, 136):

  • Desconstrução do pai idealizado.
  • Reconhecimento do senso de eu construído ao redor do ideal de masculinidade encarnada no autor.
  • Se distanciar do agressor.
  • Identificação de si mesma como vítima (o que pode incluir identificação com outros membros sem poder da sociedade, o que permite a ela desconstruir o “eu ruim” do cerne de seu desenvolvimento).
  • Reconhecimento da vitimização passada integrada no contexto do trauma sexual original (o que pode resultar em estabelecer e manter melhores limites em relações potencialmente vitimizadoras).
  • Recuperação do eu sexual (como um resultado da desconstrução do autor idealizado e desenvolvimento de um senso de eu separado, o que pode envolver respostas dissociativas controladoras e flashbacks inoportunos, e a reestruturação ou eliminação das fantasias sexuais que mostram a vítima se libertando do agressor).
  • Auto-validação e reconexão com a persona feminina (através de transferência terapêutica que modela cuidados respeitosos, reconexão ou empatia com a mãe, ou identificação com o poder espiritual feminino).
  • Reintegração por meio de imaginação criativa.

Conclusões

Durante a vida adulta, Brandon exibiu comportamentos coerentes com o diagnótico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, uma síndrome associada a sobreviventes de incesto. Disforia de gênero foi identificada clinicamente como uma resposta ao abuso sexual infantil e incesto, e é lógico que se questione se foi terapêutico, no caso de Teena Brandon, ou não o diagnóstico de transexualismo e recomendação de cirurgia de redesignação sexual em vez de focar no diagnóstico e no tratamento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo. Se a cura de abuso sexual infantil e incesto requerem reobtenção e assimilação de material dissociado, é um forte argumento afirmar que o diagnóstico do transexualismo de Brandon serviu para aumentar sua dissociação, impedindo a recuperação do incesto e permitindo um agravamento de comportamentos de alto risco baseados numa identidade dissociada.

Como uma nota de rodapé final, um conhecido de Brandon dividiu essa história ocorrida aproximadamente na semana entre o estupro e o assassinato:

No dia de natal de 1993, quando Lisa trouxe Brandon de volta… de Falls City, [um amigo] encontrou com ele [Brandon] na porta e disse “oi Brandon”. Em resposta [o amigo] ouviu de Brandon que não existia nenhum Brandon, Brandon se foi. Seu nome é Teena. Aquilo não mudou em nenhum ponto na última semana. (email pessoal, 20 de dezembro de 2004).

Notas de Trabalho

“A verdade inconveniente sobre Teena Brandon” é um artigo inconveniente. Ele tem um histórico de publicações rejeitadas. Ele foi entendido como transfóbico, e tem sido intimidado por romper com princípios da Teoria Queer. Isso já era esperado, porque ele é sobre trauma, e trauma é um trauma especificamente porque resiste ser aceito ou assimilado. Se esse paper se encaixasse perfeitamente nas categorias existentes de identidade, não teria necessidade alguma de escrevê-lo e Teena Brandon talvez ainda estivesse com vida hoje em dia.

Esse artigo pertenceria a uma edição de periódico intitulada “As lésbicas serão exterminadas?”. A resposta é “não”, se isso significa que deveria se insistir no fato de que Teena Brandon era realmente uma lésbica com um caso de identidade mal incompreendida. Esse paper não faz essa reivindicação. O que ele reivindica é o status dela como uma sobrevivente de incesto não recuperada e com Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, que parecia estar em síndrome ativa até o momento de sua morte.

Eu acredito que esse paper pertence sim a essa edição de Trivia, e por isso o submeti. Muitas lésbicas são sobreviventes de abuso sexual infantil. Na última década, pode-se observar que está aumentando o número de mulheres biológicas que anteriormente se identificavam como lésbicas (como Brandon) transicionando com o objetivo de reivindicar identidades masculinas. Posições nas comunidades lésbicas e trans se tornaram polarizadas, abrindo profundas divisões entre nós. Acusações de “essencialismo”, “patologização”, “misoginia” e “privilégio patriarcal” são gritados pra lá e pra cá nas linhas de batalha.

Pela minha experiência, conflitos prolongados podem ser um indicativo de contextos condebidos de modos inadequados e pouco precisos. A pesquisa de trauma oferece perspectivas identitárias radicais, tanto para lésbicas quanto trans, e abre um novo espaço para diálogo, espaço com possibilidade de pontos em comum. Instruir sobre trauma pode informar o feminismo radical, e eu escrevi esse paper com essa intenção.

Este é um paper lésbico que pertence a um espaço lésbico? Essa questão pode ser debatida de forma acalorada, e o que melhor qualifica a inclusão?

 

Sobre a autora

Carolyn Gage é uma dramaturga lésbica e feminista, performer, autora e ativista. Autora de nove livros e mais de 25 peças, ela é a vencedora de 2009 do Lambda Literary Award, na categoria drama. Seu site é: www.carolyngage.com.

Clique aqui para ler o texto original.

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Você está pronta para o verão?

Ah, o verão… Estação do ano que é sinônimo de férias ou recesso para algumas pessoas. Cerca de três meses de calor e sol queimando a pele. Água, praia, banho de mangueira, passeios ao ar livre. Sorvete, picolé, chapéu, boné. Roupas leves e chinelo no pé. No entanto, basta o tempo começar a esquentar para que a encheção de saco comece a aumentar. No lugar de dicas de roupas frescas, receitas gostosas pra trocar, lugares legais pra ir ou gente maneira pra paquerar, a pauta geral passa a ser ~se cuidar~ ou ~se preparar~ para o verão.

E o foco do que é chamado de ~se cuidar~ ou ~se preparar~ geralmente consiste mais em perder peso do que beber bastante água, por exemplo. A mídia e a sociedade como um todo pressionam os indivíduos com o intuito de fazê-los acreditar que só podem aparecer em público de roupa de banho se estiverem magros e sarados. Essa pressão é principalmente direcionada às mulheres, mas nem os homens andam escapando. Dentro de uma lógica capitalista, tudo o que puder ser explorado para ser revertido em controle e consumo será aproveitado. Por isso, o chamado “mito da beleza” anda abrangendo cada vez mais grupos de pessoas. Tanto que existe SPA para crianças, adolescentes são induzidas a passarem por cirurgias estéticas cada vez mais cedo e é celebrado o fato de tratamentos estéticos para homens estarem em crescente ascensão – sendo que o ideal era que essas porcarias parassem de ser empurradas para pessoas de qualquer sexo.

De qualquer maneira, no final das contas são as mulheres as maiores prejudicadas pelos padrões, claro. O cabelo tem que ser sempre impecável. Se você for ficar uma semana na praia, é preciso de um monte de produtos para passar na cabeça antes e depois de entrar no mar. Não pode ter celulite, estria ou qualquer outra coisa completamente normal em um corpo do sexo feminino. Barriga, então? É quase um crime. Pelos são considerados sujos. Mas as bolinhas vermelhas ocasionadas pela depilação e contato com areia também não agradam. As unhas precisam estar feitas. O biquíni precisa estar de acordo com o tipo de corpo: se o peito é pequeno, use um sutiã com bojo, se o quadril é largo, vista algo que disfarce. Esse suposto equilíbrio é uma farsa que tem o intuito de nos enlouquecer.

  “I am not as pretty as those girls in magazines”

Somos induzidas a acreditar que o nosso valor vem principalmente da aceitação da nossa aparência, dos elogios que nos qualificam como belas. Porém, os padrões são inalcançáveis justamente para ficarmos nessa corrida eterna, feito as armadilhas com cenouras e coelhos correndo atrás delas que vemos em desenhos animados. Quase nunca alcançaremos as cenouras, porque os padrões vigentes são excludentes, gordofóbicos, racistas, elitistas, etc. A maior parte das mulheres vai ficar de fora por algum motivo – ou por vários: é gorda, o cabelo é crespo, a bunda tem celulite, o dente é amarelo, as roupas não são de marca, as unhas são roídas, o nariz é grande, o peito tem estria, os dedos dos pés são peludos, os cílios são claros, os olhos são pequenos. Nossas características são categorizadas como defeitos. E uma onda geral de baixa autoestima, competição e rivalidade feminina é disseminada, impedindo que as mulheres fiquem em paz com elas mesmas e com as outras. Sem contar a naturalização de transtornos alimentares em prol do “corpo perfeito”. Não pulem refeições, por favor. Comida é amor.

"Como ter um corpo de praia:  1 - Tenha um corpo  2 - Vá à praia"

“Como ter um corpo de praia:
1 – Tenha um corpo
2 – Vá à praia”

Eu queria dizer uma coisa. Você existe para você mesma e não para agradar o olhar de quem está ao redor. Sei que é óbvio, mas é preciso que a gente leia e releia isso várias vezes até assimilar. O seu corpo é muito mais do que um objeto de desejo: é o que te transporta pra lá e pra cá e te permite passar por essa nave louca chamada vida. Não é fácil se desprender da necessidade de aceitação pela aparência – até porque a não aceitação se mostra, muitas vezes, de forma hostil e violenta. Mas podemos tentar olhar para nós mesmas e para as outras com mais amor, celebrando a pluralidade e acabando com a ideia de que características são defeitos. Somos muitas e não existe a possibilidade de nos encaixarmos no mesmo molde. Nossas histórias e características são diversas. Estética não é sinônimo de saúde. E a saúde alheia não é da nossa conta. E já que toquei no assunto ali em cima, posto abaixo um trecho super inspirador do livro “O mito da beleza – Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres”, da Naomi Wolf (livro completo aqui):

Como as mulheres poderiam agir para além dos limites do mito da beleza? Quem saberia dizer? Talvez nós deixássemos nossos corpos engordar e emagrecer, apreciando as variações sobre o tema, e evitaríamos a dor porque, quando alguma coisa dói, ela começa a nos parecer feia. Quem sabe não passemos a nos enfeitar com verdadeiro prazer, com a impressão de estarmos adornando o que já é lindo. Talvez, quanto menor for a dor a que submetamos o nosso corpo, tanto mais bonito ele nos pareça. Talvez esqueçamos de levar estranhos a nos admirarem, e descubramos que isso não nos faz nenhuma falta. Talvez aguardemos o envelhecimento do nosso rosto com expectativa positiva e nos tornemos incapazes de considerar o nosso corpo um monte de imperfeições, já que não há nada em nós que não nos seja precioso. Pode ser que não queiramos mais ser a mulher do “depois”.

Por onde começar? Vamos perder a vergonha. Ser vorazes. Procurar o prazer. Evitar a dor. Vestir, tocar, beber e comer o que tivermos vontade. Ser tolerantes com as escolhas das outras mulheres. Perseguir o sexo que quisermos e lutar ferozmente contra o que não quisermos. Escolher as nossas próprias causas. E, depois de superarmos e transformarmos as regras de tal forma que o nosso sentido da beleza não possa ser abalado, vamos cantar essa beleza, embelezá-la, exibi-la e nos deleitar com ela. Numa política sensual, ser mulher é bonito.

Uma definição da beleza que tenha amor pelas mulheres supera o desespero com a brincadeira, o narcisismo com o amor a si mesmo, o despedaçamento com a inteireza, a ausência com a presença, a inércia com a animação. Ela admite que as pessoas sejam radiantes: que essa luz seja emitida pelo rosto e pelo corpo, em vez de ser uma luz dirigida para o corpo, ocultando o eu. Essa luz é sexy, variada e surpreendente. Seremos capazes de vê-la em outras mulheres sem medo e afinal poderemos vê-la em nós mesmas.

Dica: O documentário a seguir, com 14 minutos, de duração, mostra brevemente como o monopólio de mídia – que precisa de retorno imediato – usa a idealização da mulher por meio de padrões de beleza e comportamento para gerar audiência e vender produtos. Grande parte das mulheres retratadas em revistas, jornais, programas de televisão, entre outros veículos, são loiras, altas, magras, heterossexuais e hipersexualizadas. O olhar masculino é o molde e a real diversidade que forma a população de mulheres brasileiras é apagada (vale notar, inclusive, que praticamente todas as entrevistadas que apontam essa falta de diversidade são brancas também, o que nos mostra que precisamos discutir sobre representatividade em todos os espaços, não apenas na mídia “tradicional”). Algumas saídas são apontadas, como um debate honesto em relação à democratização da mídia, que sempre é uma ação vista como “censura” e não como uma forma de tornar os produtos midiáticos um espelho que represente minimamente sua audiência.

Leia também: “O envelhecimento da mulher como um fato incomum”

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