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TRISTE E BRASILEIRA: SOS PANDEMIA

Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou oficialmente a existência da atual pandemia do novo coronavírus. Por conta do COVID-19, um mundo já de cabeça pra baixo ficou ainda mais entortado. Muitas são as inseguranças e mistérios envolvendo o vírus, que se alastra tão rápido quanto fogo em pólvora. Como funciona? Por que existe uma gama tão diferente de sintomas e reações? Quantas mortes ainda teremos? É preciso mesmo dar banho em saco de arroz? Quais as melhores máscaras a serem utilizadas?

Desde então, sentei inúmeras vezes em frente ao computador na tentativa de escrever algo pra postar aqui. Não rolou. Nunca sentia firmeza nos meus próprios pensamentos, todos tão embaralhados por esse delicado momento que praticamente o planeta inteiro está a enfrentar. Agora é que finalmente me surgem palavras e consigo organizar algumas ideias. Mas só algumas, pois a confusão segue grande. Essa pandemia tem escancarado muitas coisas: desigualdades, incertezas, medos. O egoísmo humano e a ganância política estão em evidência, piscando em neon. Contudo, existem também iniciativas que demonstram lados melhores das pessoas, como projetos sociais de emergência ou redes de apoio informais (não que isso signifique que o momento atual tenha algum lado bom, longe de mim alimentar esse pensamento cretino e falsamente good vibes de quem vive iludido em bolhas de privilégio e negação).

Negligência bionazista

É um horror observar como o (des)governo atual tem utilizado essa crise sanitária para justificar uma crise econômica que já estava no horizonte faz tempo (e que é um projeto, sempre válido relembrar). Uma espécie de bionazismo está em curso no país. Em prol de uma agenda genocida, figuras de poder criam obstáculos e evitam medidas que poderiam proteger a população em diversas esferas ao mesmo tempo em que veiculam uma falsa ideia de que tudo o que está acontecendo, incluindo as mortes, é inevitável, foi sem querer, é o destino. Não existe sequer uma campanha nacional, de grande alcance, que explique o que já se sabe até o momento e que ensine as pessoas a usarem máscaras ou higienizarem as mãos corretamente, entre outras medidas necessárias para tentar conter a disseminação do vírus. Temos que ler abobrinhas diárias que celebram, com escárnio, o alto número de recuperados e ignoram lutos e memórias (e, por conta das possíveis sequelas pós-COVID, será que os recuperados estão mesmo tão recuperados assim?) ou que pregam tratamentos e profilaxias sem embasamento científico. Vacina, testagem em massa, auxílios para pequenas empresas e pessoas em situação de vulnerabilidade… Cadê?

Raiva e sensação de impotência são sentimentos comuns a qualquer um que tenha senso.

Como disse a professora de direito e psicologia da Universidade de Pensilvânia Tess Wilkinson-Ryan em um artigo publicado em julho do ano passado no The Atlantic, a situação atual coloca na mão das pessoas o fardo de fazer algumas das análises de risco “mais frustrantes e confusas de suas vidas”. Certas perguntas como “ir ao shopping é seguro?” ou “será que posso encontrar meus amigos?” não deveriam ser respondidas apenas por indivíduos, mas por políticas delineadas por autoridades. E é isso aí, né? Estamos em um cenário de individualização de culpas enquanto líderes e instituições se isentam de responsabilidades, as informações necessárias para tomadas de decisão mudam a todo o tempo e o cidadão comum não tem necessariamente os conhecimentos para decodificá-las, pois muitas estão em âmbitos técnicos e requerem certos acúmulos de saberes. O que sobra, em plena “era da informação”, é chuva de fake news e muita confusão, pois até “figuras de autoridade”, que deveriam se embasar em evidências, embarcam em baboseiras. Triste, triste, triste.

(Meu primeiro estágio de jornalismo foi em um site de saúde na época da pandemia do H1N1 e, ainda que fosse uma pandemia com outras dimensões, que diferença. Políticas e dados mais claros, líderes que não estavam tentando deliberadamente matar a população, entre mil outras coisas).

Desigualdades escancaradas

O vírus pode atingir geral e causar mortes ou sequelas em categorias variadas de seres humanos, ainda que grupos específicos estejam mais vulneráveis – e eles são muito mais amplos e complexos do que o senso comum imagina. Quem, afinal, não tem pai, mãe, avô, tia mais velha? Quem não tem uma conhecida diabética e/ou gestante de alto risco, um amigo com asma ou um colega que mora em alguma região que falta água e o saneamento básico é precário? A desculpa de que quem morre tinha comorbidades, como uma espécie de justificativa, não é válida. Ninguém é “perfeito” e ninguém deveria ser descartável. Eugenia pra abafar negligência? Ridículo! E curioso notar que, no início disso tudo, os mais velhos eram sacaneados por não cumprirem o isolamento para, sei lá, irem ao mercado às seis da manhã, hoje temos muitas pessoas em festas, shows e outras enormes aglomerações esquecendo que, mesmo que fiquem assintomáticas, seguem sendo possivelmente transmissíveis. São muitas questões.

Pandemia e feminismo

Os debates feministas seguem importantes nesse momento, ainda que muita gente tente secundarizá-los. Ano passado, a escritora Thaís Campolina fez um importante apanhado que ressalta questões extremamente relevantes para as mulheres durante a pandemia: trabalho acadêmico, trabalho doméstico, violências dos mais diversos tipos, saúde sexual e reprodutiva, mercado profissional e geração de renda. Até mesmo a questão do negacionismo científico, como ela relembra, tem um componente de gênero e os homens acabam sendo a maioria entre os que não querem tomar as devidas precauções, pois pelo visto abala demais a masculinidade de alguns aceitar que um vírus pode derrubá-los e que cuidados coletivos são necessários. Leia: O que a pandemia tem a ver com feminismo?

Também no ano passado, foi lançada a pesquisa Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. Acesse aqui. O estudo foi realizado pela iniciativa Gênero e Número e pela SOF Sempreviva Organização Feminista com o intuito de mostrar, em dados e relatos, impactos do contexto de isolamento social na crise da saúde para a vida das mulheres, considerando desigualdades de raça. Os dados mostram que metade das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia. E mostram, ainda, que a realidade não é a mesma para todas: ao olhar apenas mulheres que estão em ambientes rurais, nada menos que 62% das participantes da pesquisa afirmaram que passaram a ter esse tipo de responsabilidade. Já as mulheres negras possuem menos suporte nas tarefas de cuidado e engrossam fileiras de desemprego. Entre outras importantes questões que devem ser observadas com atenção.

mascara

Meu universo particular

Como em tudo na vida, cada pessoa está vivendo esse momento de forma única. Passei, e passo, por vários estágios mentais: já fiquei completamente desesperada, já fiquei paralisada, meio sem reação e emoções, já fiquei mais tranquila e resignada… No momento, a ansiedade bate forte, afinal, já estamos na mesma situação tem um ano. Na verdade, a situação está pior, ruim, péssima, terrível. Cada vez mais pessoas próximas estão contraindo o vírus, ficando sequeladas, perdendo parentes e amizades. Dói. Por isso, e muito mais, nunca, nunquinha mesmo, podemos esquecer que a gestão da atual pandemia no Brasil está sendo feita de modo completamente criminoso e não precisava ser assim. Lá na frente, muitos dos responsáveis vão culpar as pessoas, as festas, a falta de aderência ao fajuto “tratamento precoce” etc. E vão lavar as mãos, apenas no sentido figurado mesmo, infelizmente. Aliás, isso tudo já está acontecendo, não é mesmo?

A pandemia se anunciou, em 2020, quando eu estava em uma viagem no exterior. Ganhei uma bolsa para ir ao festival SXSW (que, claro, foi cancelado) e, olha, começar a viver essa experiência nos Estados Unidos daria um outro post inteirinho de reflexões… De lá pra cá, mudei de casa, de cidade, de casa de novo, lancei meu primeiro livro de contos, chamado Homens que Nunca Conheci (é desafiador demais gerenciar um lançamento apenas pela internet, então CLIQUEM AQUI E COMPREM MEU LIVRO rs) e fiz várias outras coisas. Sigo trabalhando como repórter de cultura, participei de cursos (e ofertei um), passei na qualificação do mestrado e agora estou, aos trancos e barrancos, tentando terminar minha dissertação (meu cérebro está derretido, admiro demais quem anda conseguindo estudar normalmente ao mesmo tempo em que me questiono se essas pessoas realmente existem), me envolvi em projetos que vão da cultura à saúde, mergulhei no mundo digital (e não aguento mais, sinceramente), cozinhei muito, vi muita série, deixei o cabelo crescer, vou ter um filho (yay!) etc.

Apesar de tanta mesmice e silêncio, que faz com que o desânimo muitas vezes fale mais alto, a vida continuou. Porém, em um ritmo muito mais lento e com muito cuidado. E com uma constante sensação de que tudo está suspenso e estou eternamente esperando a volta de algo que nem sei bem o quê é. Precisamos encontrar motivos para continuar, todos os dias, mas sem entrar em um estado de negação. Sou contra esse negócio de “evitar notícias ruins” e, pelo contrário, estou sempre buscando me informar em fontes confiáveis, até para me proteger (e proteger quem está ao meu redor) de acordo com evidências mais recentes, já que elas mudam o tempo todo (recentemente, começou a se falar bastante da importância de utilização de máscaras mais potentes, por exemplo).

E é importante lembrar que no meu universo existe também muita angústia, câncer na família, solidão, dias repetitivos e enlouquecedores, calor, medo, saudades enormes de várias pessoas que não estou vendo pois realmente me isolei o máximo que posso (tenho a sorte de trabalhar de casa, mas só me venham com papo de “privilégio” quando eu não for mais pejotizada, please) e, como já falei várias vezes, minha mente está pifada. Sério. Tem vezes que me pergunto se um dia vou conseguir escrever ou ler igual antes da pandemia, mas estou tentando não me cobrar tanto – e falhando miseravelmente. Meus prazos e compromissos seguem batendo na porta. Minhas ambições pessoais também.

Sinto falta de andar em ruas lotadas, de festas, de lanchar com minhas amigas no final de um longo dia, de entrevistar pessoas ao vivo, de almoçar com minha família nos fins de semana, de sair sem rumo com meu namorado, de frequentar museus ou ir ao cinema, de ir ao mercado com tranquilidade… A lista é infinita. Nesse último ano, abracei minha mãe no máximo duas vezes. Maneiras de demonstrar cuidado, apoio e afeto estão sendo reinventadas (fazer compras pra alguém, ligar, levar uma comidinha, sei lá), e não sei se vou saber socializar em grande escala de novo um dia (até me pergunto se um dia já soube). Na real, é estranho lembrar que as coisas já eram difíceis antes, a sociedade já era egoísta, apressada, negacionista, já triturava existências com desigualdades profundas e depressão, e que um pós-pandemia (no contexto brasileiro não consigo nem visualizar quando pode ser) envolve uma necessidade urgente de mudança de valores, sistemas e organizações.

Não podemos simplesmente almejar o mundo anterior, pois ele que nos trouxe até esse mundo aqui.

Se cuidem ❤

Espero que, na medida do possível, você aí, que me lê, esteja bem. Mas sei que com o alto número de mortes que o Brasil possui atualmente em decorrência de uma única doença (número subnotificado, diga-se de passagem) e com o cenário de incertezas que se desenha pra todo mundo, em diferentes níveis, muita gente não vai estar. Temos consequências físicas, psicológicas, sociais e econômicas da pandemia para lidar, temos muitos lutos para enfrentar, temos rituais desfeitos, temos celebrações interrompidas… Então, do alto da minha sensação de impotência, mando beijos e abraços virtuais e desejo força para quem precisar. Valorizem a arte, a cultura, a ciência, as produções locais (de alimentos, roupas, livros, que seja), a educação, as redes de apoio.

(Ai, ai. Estranho escrever, escrever, escrever e ainda sentir que falta tanta coisa. Sabe?)

(Confesso que ando cada vez mais cansada do blog e de atuar nas redes sociais dentro dos moldes atuais que cooptam saberes ao mesmo tempo que invisibilizam pessoas, algo que já mencionei antes até. Somando isso com a estafa mental, ploft, me pego refletindo sobre a relevância de manter certos projetos, como esse aqui. Papo pra depois.)

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CINCO ANOS DE VULVA REVOLUÇÃO

Amo fazer aniversário, como já falei aqui antes. Contudo, em outras áreas da vida, tenho uma enorme dificuldade em celebrar coisas relacionadas à mim, sejam elas pequenas ou grandes. Tem vezes que é porque não faz sentido. Não me atrai viver nesse modo contemporâneo de hiperexposição em que cada passo dado tem que ser noticiado como se a cura de um câncer estivesse sendo descoberta. Sei lá.

Outras vezes tenho medo de parecer metida ou muito autocentrada. Dia desses li uma escritora que curto muito, a Thaís Campolina (e que conheci ao vivo hoje, finalmente), falando sobre essas coisas também: que acaba falando menos do que gostaria sobre as próprias realizações. Acho (tenho quase certeza, kkkk) de que isso é mais um dos braços da socialização feminina tentando nos manter mansas, quietas, modestas e no nosso devido lugar (um lugar de produtividade silenciosa, com pouco brilho e muita sobrecarga).

De qualquer maneira, acho importante dizer que, em 2019, o projeto Vulva Revolução completou cinco anos (e só agora consegui sentar para escrever sobre, é a vida). Uau… Passa muito rápido! Hoje em dia chamo de projeto, e não apenas de blog, pois muitas coisas aconteceram a partir desta plataforma online aqui. E vou contar um pouco sobre isso tudo pra vocês. Considero importante que gente comum, como eu, perceba que pode realizar coisas ótimas sem precisar de patrocínio. Que nem tudo na vida é like, métrica, #publipost ou programa de televisão.

Existem muitas pessoas por aí que estão, de fato, buscando estabelecer redes de informação, conhecimento, diálogo e troca de experiências de uma forma mais ampla e horizontal. Ninguém merece simplesmente girar ao redor de uma imagem específica de alguém que abraça o mundo e fala de tudo sem realmente falar de nada só para impulsionar a própria fama. A coletividade é possível. Ou, ao menos, tentamos fazer ser (e nada é mais deprimente do que a cultura de celebridade que está cada vez mais ampliada e permeia tantas esferas sociais atuais).

Me interesso por feminismo tem muito tempo, mais de quinze anos. Ouvia falar do movimento aqui e ali e, de repente, estava escutando bandas punks feministas, indo a shows, colecionando zines. Fui crescendo e descobrindo que existia toda uma área de estudos voltada para o tema, parti para os livros e comecei a ler mais e mais. O blog nasceu em 2014, por conta da minha vontade de sistematizar ideias, compartilhar leituras, realizar traduções, organizar materiais e escoar, em algum lugar, angústias e pensamentos.

No primeiro ano da plataforma online, em 2015, fiz um evento de comemoração que deu muito trabalho, mas foi incrível: o VULVA LA REVOLUCIÓN. Contei com o apoio de muita gente, e aqui falo um pouco sobre todo o processo. Teve feira com artes e produtos feitos por mulheres, rodas de conversa, música, comidinhas, bebidinhas, essas coisas. Fiz também um evento para celebrar os três anos do blog, em 2017, em conjunto com um ateliê de arte chamado Gruta, que estava sendo inaugurado (infelizmente ele já fechou as portas, mas as integrantes seguem firmes & fortes no rolê). Foi nos mesmos moldes do primeiro e, mais uma vez, foi bem legal.

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Boloceta feito pela minha amiga Luiza Ramos para comemorar os três anos de Vulva Revolução ❤

Junto com algumas das mulheres da Gruta (mais especificamente: Tais Koshino, Livia Viganó, Camila Ligabue e Gabi Lovelove6), com a Bia Cardoso, das Blogueiras Feministas, e com as minhas amigas Ludmilla Brandão e Talita Ramos, fizemos o Gruta de Estudos Feministas. Nos encontrávamos mensalmente para discutir temas e textos previamente selecionados e, por um ano, fizemos encontros e debates com lanchinhos, poesia, conversa e troca de ideias. Em algumas ocasiões, alguns encontros eram abertos para o público e envolviam discussões que estavam acontecendo no momento, como na época em que a questão do aborto estava sendo discutida no Superior Tribunal Federal (STF).

Tudo isso rolou em Brasília (DF), minha cidade natal.

Um outro evento que nasceu a partir do blog foi o MULHERAJE, que idealizei & realizei em 2018 e 2019 com a minha querida amiga Amanda Dias, em São Paulo (SP), em um espaço chamado A LAJE. A nossa proposta era evidenciar mulheres-que-fazem por meio de uma feira com artesanato, livros, zines, pôsteres, cerâmica, quadrinhos e tudo mais. Sempre rolam shows, bebidinhas e afins também. Na primeira edição, por exemplo, conheci o ótimo trabalho da BEX, compositora, beatmaker e produtora musical que mescla jazz e ritmos eletrônicos, e colou no dia para uma apresentação.

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MULHERAJE 2018 (montagem feita pela Amanda)

A partir da Vulva Revolução, comecei também a fazer publicações impressas. Zines mesmo. Misturei paixões adolescentes com práticas da vida adulta e passei a sistematizar ideias e leituras também nesse tipo de material. Cheguei até a me arriscar artisticamente e criar zines costurados à mão, com textos mais literários, fiz colagens, aprendi um pouquinho de diagramação etc. O primeiro deles, o Vulva Revolução #1, surgiu a partir de um pequeno financiamento coletivo de sucesso apoiado por quem curte o blog e contou com várias colaborações de artistas do Brasil todo. Teve até festa em parceria com uma produtora de Brasília, a Moranga, para ajudar na divulgação e arrecadação de grana. Foi muito divertido. A galera da produção fez uma decoração especial e chamou só mina pra discotecar (e todas muito fodas), como a Carol Stérica, do Sapabonde, e a Mari Perrelli, que anda bombando Brasil afora.

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Eu e as criadoras do Conspiração Libertina, uma marca de acessórios feministas (que teve sua estreia em um dos meus eventos), na Moranga Vulva Revolução, 2016

Depois, fiz também os zines Vulva Conexão, que discute tecnologia, internet e feminismo; Solidão Involuntária, que traz um texto melancólico repleto de crises existenciais; Lucrativa, com colagens que criticam a indústria da beleza e Feminismo Suave Não Liberta, Mas Gera Lucro, uma adaptação deste texto aqui. O Goji Berry, zine mais recente, lançado ano passado, aborda aspectos críticos diversos sobre algo que, usualmente, nos parece muito corriqueiro: alimentação. A publicação foi idealizada por mim e conta com valiosas colaborações de autoras como a já citada Thaís Campolina, além de Laura de Araújo, Amanda Valmori (parceira, amiga querida e que admiro demais como escritora, autora do extinto e maravilhoso blog Deixa de Banca) e Glênis Cardoso (que faz parte do incrível projeto Verberenas). O projeto gráfico, belíssimo, é do multitalentoso Estêvão Vieira, ou Stêvz, que é designer, compositor e cartunista, com fotos de Ana Cortez.

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Por conta dos zines, comecei a participar de feiras de publicação independente por todo o Brasil. Isso é um ótimo jeito de ter um contato mais próximo com outras pessoas que também estão no corre de fazer os próprios projetos acontecerem e é uma maneira muito legal de estar em contato com o público, trocar ideias, estreitar laços. Recebi convites variados e fui para escolas conversar com alunos e alunas sobre temas sensíveis, como gênero e violência contra a mulher; mediei rodas de conversa; participei de debates em cineclubes; realizei oficinas em universidades e fiz curadoria de eventos voltados para “empoderamento feminino” (ainda que eu tenha questionamentos sobre o uso indiscriminado dessa expressão, mas isso é papo pra depois e, de qualquer modo, mulheres reunidas em prol  de assuntos importantes é sempre válido).

Em 2016, conheci o Pará por meio do projeto Imaginárias, da minha grande amiga Gabriela Sobral, uma jornalista e poeta incrível e que, desde os tempos da faculdade, está ao meu lado e no meu coração. Foi uma experiência enriquecedora, tocante, um aprendizado forte. O projeto reuniu pessoas de áreas diversas para realizar oficinas com jovens de Soure, pequeno município da Ilha do Marajó. Teve fotografia, escrita, pintura, colagem, desenho e, no fim de tudo, ajudei a garotada a selecionar e editar o próprio material para consolidar uma publicação impressa. Tudo de modo bem horizontal, explorando a paisagem local e levando em consideração as vontades e os conhecimentos de quem estava participando dos encontros. Aproveitei ainda para visitar Belém (me apaixonei) e participar de eventos por lá.

Mantendo a sanidade 

No meio de todos esses acontecimentos,  trabalhei em muitos lugares, com muita coisa (pra quem não sabe, sou jornalista). A Vulva me manteve ativa em uma época em que eu estava em um emprego horrível, que defendia coisas que não acredito e me mantinha enfurnada em um porão em que ninguém me valorizava (mas, pelo menos, eu tinha a adorável companhia de uma colega de trabalho maravilhosa). Eu precisava do dinheiro e da experiência, não aguentava mais freelas precarizados, então foi muito importante estar lá. Paralelamente, estava sempre escrevendo e planejando atividades que me relembravam quem eu realmente era.

Com o tempo, consegui me inserir mais e mais dentro de áreas que têm mais a ver comigo: assessorei projetos, artistas, escrevi para veículos diversos, essas coisas. Hoje, colaboro com uma revista que gosto muito e escrevo sobre cultura. Me especializei em gênero, sexualidade e direitos humanos na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e, desde o ano passado, estou lá como mestranda da área de comunicação e saúde. Em breve lanço meu primeiro livro de contos (eita), que não possui relação direta com o blog, mas tem a ver com o meu processo de me autorizar a escrever, falar, ser. Queria estar mais feliz, mas confesso que meu estômago borbulha de medo e ansiedade o tempo inteiro.

O que aprendi com isso tudo?

Que precisamos tirar ideias da cabeça. Várias vão dar errado, mas muitas vão dar certo também. Falhe mais, falhe melhor, não tenha medo de falhar. Aprendi que articulações sem fama e sem grana exigem muita transparência e diálogo (deveria ser sempre assim, na verdade). É preciso apoiar quem te apoia e buscar meios de oferecer outras recompensas, como espaço em um evento, escambo de serviços. Sei lá. Mas, de verdade, transparência é muito importante mesmo. Tem que chegar na pessoa e falar: “Eu preciso disso e daquilo, você tem interesse em me ajudar? Posso fazer algo por você depois também”, sabe? E não ficar fingindo que a ajuda que você precisa é, na verdade, um favor pra outra pessoa (tipo: “Nossa, isso vai te trazer visibilidade!” – muitos risos). Já fui parar em uma entrevista de emprego que era, na verdade, um trabalho voluntário oferecido com ares de salvação mundial por alguém querendo abrir um site megalomaníaco sem ter um real pra isso. Isso não se faz.

O rolê #DIY exige uma ética que envolve respeito e comunicação. Mas nem sempre as coisas acontecem do jeito que a gente espera. Por isso que é muito importante também saber ouvir não, entender o tempo do outro e aceitar que afinidades temáticas e políticas não necessariamente vão resultar em amizades eternas ou personalidades compatíveis. E tudo bem. Coisas ótimas podem ser feitas mesmo assim.

A Vulva é totalmente independente, não gera lucro. Tudo o que já ganhei até hoje com vendas de materiais como zines ou camisetas, por exemplo, foi usado no próprio projeto (para pagar a confecção de materiais, domínio de blog e afins, por exemplo). Emprestei meus conhecimentos e minha força de trabalho pra muita gente. E muita gente fez o mesmo por mim. Pode parecer clichê, mas é real: no que deu certo ou no que deu errado, ficou sempre um grande aprendizado – e para acertar ou para errar, tem que botar a mão na massa, né? Quem vê close, não vê corre.

CADA PESSOA É ÚNICA E TUDO É IMPORTANTE

Falo das minhas experiências sem esperar que elas sejam reproduzidas por alguém, pois o que passei tem a ver com a minha trajetória, com os meus interesses, com o que sei fazer. O que quero, na verdade, é inspirar as pessoas a encontrarem algo que as toca para que, a partir daí, coloquem esse algo em prática de um modo que crie articulações e laços. Tenho amigas que gostam de ir para o mato estudar plantas, e isso é importante. Tenho amigas que usam o conhecimento que possuem em exatas para dar aulas de matemática para meninas, e isso é importante. Tenho amigas que cortam cabelo, pintam, dançam, tocam instrumentos, trabalham em escritórios de advocacia, lojas de shopping e realizam feitos diversos do jeito que podem e conseguem. E tudo isso é importante. O que você sabe fazer? O que você gosta de fazer? O que você gostaria de aprender?

ESCREVERESCREVERESCREVER

Este ano, a Vulva vai ficar mais quieta. Entre mil coisas, tenho uma dissertação pra concluir. Ando, também, cansada das dinâmicas atuais das redes sociais como um todo. Já falei sobre aqui, brevemente, mas tenho muito mais a desenvolver sobre o assunto, na verdade. Dia desses rascunhei umas ideias sobre o tema e qualquer hora escrevo sobre com calma. Quem sabe.

Escrever com calma, aliás, sempre foi a proposta desse blog, que é tocado no meu tempo livre, sem nenhuma obrigação comercial ou algo do tipo. Gosto de ler bastante sobre um assunto, pesquisar, conversar com outras pessoas… Só que estudar um tema envolve mergulhar em livros, filmes, artigos, histórias de vida e muito mais. Por isso, me angustia bastante quem trata a escrita como mera “produção de conteúdo” e cospe um monte de porcaria com muita polêmica e pouca profundidade. De qualquer maneira, fico feliz por, ao longo desses anos, ter postado pouco, mas com intensidade. Muitos textos viajaram – e ainda viajam – bastante e minha meta de trocar ideias e estimular debates com certeza foi alcançada.

Já fui lida por pessoas de todo o país, já fui repostada por páginas da Índia, já vi texto meu sendo utilizado em evento de arte em Portugal, já fui citada em artigos acadêmicos, já soube de psicólogas e professoras que recomendaram algo que escrevi para pacientes ou alunos… A lista é imensa. Tudo isso me ajuda ver que alimentar um projeto pessoal não é tempo perdido. Foram muitas as pessoas que, ao longo desses anos, compartilharam coisas íntimas comigo, dúvidas, medos, vontades, inspirações, e considero um privilégio poder acessar um pouco do universo interior de tanta gente a partir da partilha de meus próprios pensamentos.

O que eu queria mesmo, no entanto, era um dia pegar parte do material que produzi durante esses cinco anos, juntar com umas coisas inéditas e lançar um livro, para que esse período fique registrado de um modo mais organizado – e para que as coisas não se percam se, um dia, eu desistir de manter esse espaço virtual (eventualmente pode acontecer, tanto pela falta de tempo, quanto pela minha vontade de me dedicar a outros interesses). ALÔ, EDITORAS! TENHO VÁRIOS LEITORES & LEITORAS! FALEM COMIGO EM VULVALAREVOLUCION@GMAIL.COM, OK? BEIJOS.

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Nem tudo são flores

Porém, ser “publicamente” feminista tem hora que é muito chato, pois tem gente que usa isso como desculpa pra praticar um vigilantismo controlador e competitivo bastante nocivo. Fora quando te cobram que você fale disso, faça aquilo… Me dá vontade de gritar “SOU SÓ UMA PESSOA QUE TOCA UM PROJETO INDEPENDENTE NAS HORAS LIVRES, NÃO SOU UMA ONG E MUITO MENOS UMA EMPRESA”, sério. As pessoas precisam parar de jogar a responsabilidade da ação para o outro ao invés de se tornarem indivíduos mais politicamente proativos. E reclamar de quem está tentando fazer algo é sempre cômodo pra quem quer fingir que faz algo também e, na verdade, não está fazendo nada (isso não significa que críticas não sejam válidas, mas tem gente que só quer miar o rolê alheio, e não construir junto).

Cinco anos não são cinco dias

De qualquer modo, não tem como não celebrar tudo o que aconteceu, todos os textos, leituras, encontros, eventos, parcerias, colaborações. Com certeza deixei um monte de coisa de fora, mas acho que consegui trazer um panorama geral dos principais acontecimentos relacionados à Vulva. Uma rede incrível foi mobilizada diversas vezes e ideais com propósitos feministas, buscando descentralização de poderes e novas formas de se observar a realidade, foram divulgados.

Uma vez, dentro da minha atuação como jornalista, entrevistei uma quadrinista feminista que gosto bastante, e ela falou da importância de contarmos as nossas próprias histórias, para que não sejam apagadas ou jogadas à margem – que é o que acontece muito com mulheres e minorias em geral. E é, de fato, um exercício um tanto quanto difícil esse de se enxergar com o devido respeito e seriedade. Estamos sempre acostumadas a nos diminuir ou a tratar os nossos feitos como irrelevantes.

No grande carrossel da existência, o que acaba sendo visto como importante nos dias de hoje envolve títulos, sobrenomes, verbas altíssimas, celebrização de indivíduos e uma constante recriação do mito do self-made man em uma versão customizada para todos os gostos, inclusive progressistas. E, na verdade, por trás de toda “grande pessoa” existem sempre várias pessoas do mesmo tamanho. Ninguém faz nada sozinho, mas todo mundo pode fazer alguma coisa. E essa alguma coisa é essencial para que nós, pessoas comuns, possamos nos sentir mais vivas e menos impotentes. Que a gente siga em frente, juntos e juntas, tateando o desconhecido em busca de laços mais firmes e propostas de um mundo melhor.

[E APROVEITEM PARA FAZER PARTE DA MINHA CAMPANHA “DÊ UNFOLLOW EM INFLUENCERS & GRANDES EMPRESAS E APOIE PROJETOS INDEPENDENTES“]

Obrigada a cada pessoa que fez parte disso tudo, de alguma maneira.

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Ruga na testa

Quando acordo de manhã, sempre tomo banho e depois me olho no espelho. Minha ruga na testa grita, todas as vezes, como quem diz “estou aqui, querida” e grito de volta, por dentro, impactada com o fato de que a passagem do tempo realmente se instala em nossa carne de maneiras definitivas. Minha mãe tem uma ruga como a minha, que veio da minha avó, e provavelmente minha bisavó e tataravó e tatatatatataravó tinham também esse selo ancestral que nos une por meio de uma inscrição na pele. A do meu pai é severa, profunda, parece uma facada, e espero, sinceramente, que a minha “ruga da raiva”, como gosto de chamar, nunca evolua para esse nível.

Ela apareceu sem que eu nem percebesse, vinda de lugares que não faço ideia. Será que foram as noites em claro em festas, as tardes estudando, as lágrimas, a tensão constante, os passeios alegres sob o sol que me forçaram a franzir a região dos olhos ou é simplesmente uma questão genética? Não sei. O que sei é que ela me incomoda, faz com que eu me sinta ainda mais imperfeita do que já sou, ainda que eu tenha plena noção de que esse sentimento é uma construção social que se moldou por meio de diferentes frentes. O antropólogo francês David Le Breton fala sobre como tratamos o corpo como um objeto imperfeito, “um rascunho a ser corrigido” e tido, vez ou outra, como um mero “acessório da presença”.

Entendo isso tudo, conceitualmente, mas a racionalização de certas coisas, ainda assim, não impede que elas deixem de ser sentidas. A filósofa francesa Simone de Beauvoir evidenciava, já na década de 40, que não existe um destino biológico, psíquico, econômico que “define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”; a cena social é que qualifica o ser mulher — que é algo que ninguém nasce, de fato, mas torna-se. Coço o queixo com uma mão e, com a outra, passo os dedos bem forte sobre a ruga, na esperança de que desapareça, enquanto reflito sobre o quanto do meu tornar-se mulher não envolveu também vigiar a mim mesma de forma pouco carinhosa, tratando características físicas e psicológicas perfeitamente humanas como imperfeições, defeitos.

Lembro de quando eu nem tinha ruga ainda, mas alisava o cabelo. Ou de quando não alisava o cabelo, mas tentava perder peso. Ou de quando não tentava perder peso, mas ficava quietinha, no canto da sala, com medo de expressar alguma dúvida ou consideração e acabar falando besteira. Tornei-me mulher sempre buscando corrigir esse corpo-rascunho em busca de uma rigidez que sequer gosto quando vejo em outras pessoas, espelhando o comportamento de mulheres ao redor, com queixas e mais queixas sobre si mesmas, como se o autoamor fosse inalcançável e até mesmo ofensivo. Tornei-me mulher aprendendo o autossilenciamento para evitar o constrangimento de ser, de fato, silenciada pelo outro. Mesmo atualmente, consciente de tudo isso, eu, justo eu, que agora estudo medicalização do envelhecimento feminino, esfrego minha ruga na testa esperando que ela suma e dou minha opinião em voz alta muito menos do que gostaria — e deveria.

Percebo, então, que minha ruga na testa não é necessariamente a questão, notar a existência dela é que é a denúncia de um sintoma que, observado mais de perto, aponta para causas muito mais profundas, imbricadas e historicamente produzidas do que a minha mera insatisfação pessoal. Sempre tem um problema e a vida vai passando e um outro problema vai surgindo e a vida vai passando e problemas, problemas e mais problemas acabam sendo sempre o foco. De fato, o gostar de si é um trabalho difícil, principalmente em uma sociedade com constantes bombardeios midiáticos, publicitários, religiosos, familiares e afins em cima do corpo e mente de todas as pessoas.

Talvez seja a busca por desfazer esses nós e religar os fios em novas conexões, mais amplas e mais humanizadas, que faz com que eu pesquise o que pesquiso. Para mim mesma, para o outro, para indivíduos e para a coletividade, porque o ser humano só existe em comunidade — mas existem diferentes maneiras de estar junto e de estar consigo mesmo. Priorizar o bem-estar de pessoas ao invés de colaborar com uma teia de manutenção de inseguranças que é antiquíssima e que gera bastante lucro: é possível?

Como diria a escritora feminista Naomi Wolf, talvez buscar o prazer, esquecer a necessidade de levar estranhos a nos admirarem e finalmente aguardar o envelhecimento do rosto com expectativa positiva sejam boas maneiras de considerar o nosso corpo como mais do que um monte de imperfeições, “já que não há nada em nós que não nos seja precioso”. O envelhecer é intrínseco ao nascer e nossas marcas são as memórias de nossas experiências.

Cecile

Ilustração da artista francesa Cécile Dormeau. Os potinhos de creme dizem “você é nojenta”, “você é velha” e “ohmeudeus, você tem mais de 18”. Pode a mulher envelhecer em paz?

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Esse meu texto foi publicado originalmente na coluna “Pós-Tudo” da Radis de novembro passado, a revista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), tanto no papel quanto no site da publicação. Conheça (e assine, é de graça e vale muito a pena): radis.ensp.fiocruz.br. Estou no primeiro ano do mestrado em Informação e Comunicação em Saúde da instituição e, uau, que experiência boa! Um dia, com mais tempo, falo mais sobre, quem sabe (na verdade, até hoje não falei por aqui nem da especialização que fiz lá, e que foi ótima também). Muita coisa acontecendo ao mesmo tempo (que bom, de certo modo, né). 

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Cartas de amor de três mulheres notáveis da história

No livro Cartas de Amor de Mulheres Notáveis, a inglesa Ursula Doyle reuniu mensagens românticas enviadas por importantes figuras femininas da história mundial. A publicação, que busca mostrar o que sentiam e pensavam algumas mulheres de séculos atrás, é uma resposta ao best seller lançado anteriormente pela mesma organizadora, o Cartas de Amor de Homens Notáveis. Nos dias de hoje tal forma de comunicação perdeu um pouco o espaço para a interação instantânea promovida pelas tecnologias atuais. Mas a ideia de enviar ou receber uma carta de amor não deixa de ser algo que ainda guarda muito charme e beleza, não é mesmo?

Na obra mais recente, Ursula encontrou algumas curiosidades. Enquanto as cartas masculinas variavam de estilo, sentimento e até mesmo sinceridade, visto que alguns homens escreviam de olho na posteridade ou usavam a prática como um exercício para demonstrar o próprio gênio criativo, as mulheres tinham mais prudência nas próprias palavras. Isso não significa que elas fossem necessariamente mais francas, embora aparentassem, sim, mais profundidade. Além disso, é inquestionável que o destino de muitas era definido pelo casamento e isso gerava angústias e reflexões fortes tanto nas que seguiam o curso natural do que era esperado por uma mulher quanto nas que avidamente desafiavam as convenções sociais.

Os homens notáveis enxergavam o “objeto de amor” como mais um aspecto da vida, entre tantos outros. A paixão nem sempre era o centro. Eles possuíam espaço e incentivo para obter realizações em outras esferas, como ciência, política, arte e afins. A notabilidade de muitas mulheres da coletânea, no entanto, está relacionada com os homens que elas se envolveram. Muitas cartas só foram preservadas, nas palavras da organizadora, “graças à ligação das autoras com seus ilustres cônjuges ou descendentes.”

De qualquer modo, o legado de muitas significativas figuras do sexo feminino se perpetuou, mesmo com todas as adversidades que foram encontradas pelo caminho. Vamos espiar um pouco os profundos sentimentos que invadiram o coração dessas mulheres. O amor é algo intenso, mas diverso — e, como afirma Ursula, pode assumir formatos variados: indulgente, equivocado, ambíguo, ambicioso, erótico, casto, alucinado e muitos outros. Confiram:

Mary Wollstonecraft (1759–1797)

A escritora inglesa Mary Wollstonecraft é conhecida como uma das “fundadoras” do movimento feminista como se conhece atualmente. Percursora em perceber e falar sobre as diferenças de gênero, ela escreveu a Reivindicação dos Direitos das Mulheres, por exemplo, como uma resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão dos revolucionários franceses. Paralelamente à uma prolífica carreira literária, caminhou uma conturbada vida amorosa, que envolveu uma tentativa frustrada de ménage à trois com um pintor bissexual e a esposa dele e uma paixão por Gilbert Imlay, um capitão e empresário norte-americano notório por ser um conquistador infiel e que machucava corações.

Em 1797, a escritora se casou com o filósofo político e novelista William Godwin e o que se sabe é que era um amor mútuo, profundo e mais tranquilo que o anterior. Em agosto do mesmo ano, nasceu Mary Wollstonecraft Godwin, que futuramente tornou-se Mary Shelley (ela mesma, a criadora do clássico Frankenstein) e a mãe infelizmente acabou falecendo pouco após o nascimento por conta de uma febre puerperal.

Mary Wollstonecraft

Foi escolhido um trecho de uma carta para Imlay com o intuito de mostrar que a angústia de amar um homem ausente passa, ah, se passa — e abre espaço para novas paixões:

Para Gibert Imlay

Paris, sexta-feira pela manhã, 1793

(…) Agora a recordação prende meu coração a ti; mas não à tua personalidade ambiciosa, embora não possa ficar seriamente insatisfeita com um esforço que faz crescer minha admiração, ou isso seria o que eu deveria esperar do teu caráter. Não, tenho diante de mim tua expressão honesta — relaxada pela ternura, um pouco ferida por meus caprichos, e teus olhos brilhando de aprovação. Então, teus lábios são mais macios do que a própria maciez, e eu apoio o meu rosto contra o teu, esquecendo o mundo inteiro. Não deixei fora da imagem as cores do amor — o brilho rosado; e creio que a fantasia cobriu dessa tonalidade minha própria face, pois sinto que ela queima, enquanto oscila em meus olhos uma lágrima deliciosa que seria toda tua se uma emoção agradecida dirigida ao Pai da natureza, que assim me despertou para a felicidade, não tivesse dado mais calor ao sentimento compartilhado. Preciso fazer uma pausa por um momento.

Preciso dizer-te que estou tranquila após escrever-te essas palavras? Não sei porque, tenho mais confiança em tua afeição quando estás ausente do que na tua presença; não, penso que deves me amar, pois, com a sinceridade do meu coração, deixa que eu diga, acredito merecer tua ternura porque sou fiel e tenho um grau de sensibilidade que podes ver e saborear.

Sinceramente, Mary.

Emily Dickinson (1830–1886)

Emily Dickinson (IanDagnall Computing/Alamy Stock Photo)

Considerada uma das maiores poetas do século XIX, Emily Dickinson foi uma figura misteriosa que, ao longo da vida, passou a se isolar gradualmente da sociedade — menos da família. A vida de reclusão gerou uma produção intensa, que envolve mais de 1800 poemas. Contudo, uma amizade profunda foi alimentada desde a infância com Susan Gilbert, que Emily conheceu ainda no período escolar.

Mais de trezentas cartas foram escritas para Susan! Embora algumas pessoas enxerguem a prosa florida e intensa trocada entre ambas como algo comum da época, muitos especialistas acreditam que Emily foi apaixonada por Susan — que acabou se tornando cunhada da autora ao casar com o irmão dela e entrar em um matrimônio tido como bem infeliz. De qualquer modo, Emily fez juras de amor verdadeiro à “amiga” diversas vezes. Isso não se faz a qualquer pessoa, não acham? Logo, apreciem um trecho de uma das correspondências trocadas entre elas e tirem suas próprias conclusões:

Para Susan Gilbert (Dickinson), 6 de fevereiro de 1852

Deixarás que eu venha, querida Susie — assim como estou, com o vestido sujo e gasto, meu grande e velho avental e meu cabelo — oh, Susie, o tempo é curto para uma descrição detalhada da minha aparência, porém eu te amo tanto quanto se estivesse bem-cuidada, portanto não te importarás, não é mesmo? Estou tão feliz, querida Susie — que nossos corações estejam sempre limpos, sempre bem cuidados e adoráveis, de modo a não causar vergonha. Esta manhã estive mergulhada no trabalho e deveria estar trabalhando agora, mas não posso negar a mim mesma o prazer de ter um minuto ou dois contigo.

(…) Oh, minha querida, há quanto tempo estás longe de mim, como estou cansada de esperar e procurar e chamar por ti; ás vezes, fecho os olhos e fecho meu coração para ti e me esforço muito por esquecer-te, porque me causas tanta dor, mas nunca irás embora, oh, nunca irás — diz-me, Susie, promete mais uma vez, e eu irei sorrir de leve — e tomar novamente a minha pequena cruz de triste — triste separação. Como parece inútil escrever quando se sabe como sentir — como é muito melhor estar sentada a teu lado, falar contigo, ouvir as inflexões da tua voz; é tão difícil “negar a si mesmo, pegar a cruz e seguir” — dá-me forças, Susie, escreve-me palavras de esperança e amor e de corações que resistiram e grande foi para eles a recompensa do “nosso Pai que está nos Céus”.

(…) Amor sempre, e para sempre, e verdadeiro! Emily.

George Sand (1804–1876)

George Sand

Amandine Aurore Lucile Dupin nasceu em uma rica família da França. Casou-se aos 19 anos. Aos 27, insatisfeita com a relação, deixou o marido e os dois filhos no interior em que moravam e foi para Paris. Na cidade luz, passou a conviver com um grupo de escritores. Em 1832, publicou Indiana, seu primeiro romance, sob o pseudônimo George Sand. O livro criticava desigualdades da lei francesa que regulavam o casamento e clamava por igualdade e educação para mulheres — ousada para a época, hein?

A autora, inclusive, possuía hábitos escandalosos para o período em que esteve ativa: usava roupas masculinas, fumava e tinha muitos amantes, por exemplo. Romances, peças e ensaios foram produzidos aos montes, criando uma aura atraente ao redor de George, que ao mesmo tempo era rechaçada pelas crenças e estilo de vida que possuía. Entre os famosos casos de amor que experimentou, estão um envolvimento com o poeta Alfred de Musset e uma poderosa paixão pelo médico veneziano Pietro Pagello — mas o relacionamento com ele durou bem pouquinho. A carta a seguir, no entanto, mostra uma reflexão profunda e válida até mesmo nos dias atuais:

Para Pietro Pagello

Veneza, 10 de julho de 1834

Nascemos sob céus diferentes e não temos os mesmos pensamentos ou o mesmo idioma — será que teremos corações semelhantes?

O clima suave e enevoado de onde venho dotou-me de sentimentos brandos e melancólicos; com que paixões terás sido agraciado pelo sol generoso que bronzeia tua face? Sei como amar e como sofrer; e tu, o que sabes do amor?

O ardor de teus olhares, o violento amplexo dos teus braços, o fervor do teu desejo são para mim tentações e motivos de temor. Não sei se devo combater tua paixão ou compartilhá-la. Não se ama dessa forma em meu país; a teu lado sou apenas uma estátua pálida que te olha com desejo, com perturbação, com espanto. Não sei e nunca saberei se de fato me amas. Mal conheces algumas palavras de meu idioma, e eu não conheço palavras suficientes do teu para tratar dessas questões sutis.

(…) Talvez tenhas sido criado com a ideia de que as mulheres não têm alma. Acha que elas a têm? Não és cristão ou muçulmano? Civilizado ou bárbaro — és um homem? O que existe nesse peito masculino, por trás dessa fronte soberba, desses olhos leoninos? Alguma vez tens um pensamento mais nobre, mais refinado, um sentimento fraternal? Quando dormes, sonhas que estás voando em direção ao céu? Quando os homens te prejudicam, ainda confias em Deus? Serei tua companheira ou tua escrava? Tu me desejas ou me amas? Quando tua paixão for satisfeita, tu me agradecerás? Quando eu te fizer feliz, saberás como dizer isso?

(…) Quando me olhares com ternura, acreditarei que tua alma olha a minha; quando olhares para o céu, acreditarei que tua mente se volta para a eternidade onde foi gerada. Vamos permanecer assim, não aprendas meu idioma e eu não procurarei encontrar no teu as palavras que expressem minhas dúvidas e meus medos. Quero ignorar o que fazes da tua vida e que papel desempenhas entre teus companheiros. Não quero nem mesmo saber teu nome. Oculta de mim tua alma, para que eu sempre possa acreditá-la bela.

Ouch.

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Texto escrito originalmente para um extinto projeto literário que fiz parte em 2017, e que republico aqui por trazer reflexões que considero pertinentes às questões abarcadas pelo blog. Nos tempos atuais, o amor é um assunto sempre em debate em nossas mentes e corações, não importa o período político que esteja em voga e, portanto, é sempre bom refletir criticamente sobre o tema. É válido ressaltar que, embora o post cite mulheres notáveis da história mundial, o livro mencionado no texto, que é escrito por uma inglesa, acaba por privilegiar figuras europeias.

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Pensamentos soltos de uma mulher cansada

Ontem estava chovendo e mais uma vez passei em frente a um muro com um lambe que trazia a imagem de Marielle Franco, um pôster grande que estampava também a fatídica pergunta que tanto se faz por aí em busca de respostas concretas e oficiais do que todo mundo já desconfia e possui indícios aqui e ali: quem a matou? Lembrei do dia em que tudo aconteceu, a tempestade que acompanhava as tristes notícias, a sensação horripilante de que as coisas no país não eram as melhores e podiam ainda piorar.

Claro que, infelizmente, outras figuras políticas e lideranças importantes já foram assassinadas em outras ocasiões. Mas essa morte foi muito marcante e explícita, aconteceu no centro do Rio de Janeiro e em um momento em que minorias com pautas e identidades semelhantes às de Marielle estavam – e estão – em evidência. O crime simboliza também o que viria depois, a ascensão miliciana em um país dominado pelo que tenho chamado de Jesuscracia Neoliberal. Que tempos.

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Disputa de discursos e Marielle

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Eu já andava desanimada com o blog e comecei a escrever cada vez menos por aqui desde então. Tudo me parecia pequeno, bobo, raso. Como falar sobre sexo ou música em um mundo em pleno desmoronamento? Perder a fé na humanidade é uma frase que muita gente bem intencionada utiliza com uma certa constância enquanto passeia pelas notícias trágicas que diariamente povoam as redes sociais virtuais. Contudo, o que sinto não é nem uma perda de sentimentos, mas uma desesperança que é sedimentada a partir da constatação de que disputas violentas de espaço, poder e discurso estão postas e se desdobram de modo difuso e altamente complexo a cada segundo – e já era assim bem antes de sequer existirmos nesse planeta.

Mas chega de ter esperança, como diria o Comitê Invisível, né? Eles alegam no livro Motim e destituição do agora que a esperança acaba por ser uma ferramenta que nos mantém passivamente acreditando em uma solução abstrata que virá do futuro enquanto, na verdade, deveríamos estar construindo algo agora. Agora, aliás, é uma palavra que carrego no corpo, em forma de tatuagem e com a letra de fôrma de um amigo querido, como uma espécie de âncora para uma mente que está sempre se alternando entre o que já foi ou o que ainda pode ser. A ansiedade torna o agora um lugar muito difícil de se estar e ela é também o que fundamenta essa nossa era recheada de imagens, informações, palavras de ordem, capitalismo exacerbado, modelos de aparência e de comportamento, dissolução de valores e repaginação de preconceitos – tudo isso junto e misturado em um grande remix.

A questão é: perder a fé na humanidade me parece, na real, algo até bem otimista considerando que, historicamente, são muitos os fatos que evidenciam motivos para que ela não devesse sequer existir.

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Venho recebendo a newsletter da jornalista Sofia Perpétua, uma mulher incrível que conheci recentemente em um evento de literatura, e me acalenta o coração ler textos tão bem escritos que trazem o que ela vê, o que ela pensa, o que ela gosta, onde ela foi, tudo de modo tão bonito e bem amarrado com belas fotografias. Existem outras newsletters muito interessantes por aí (como as das maravilhosas Stephanie Borges, Aline Valek ou Carla, do Outra Cozinha) e isso tem me feito olhar com ainda mais amor pra esse lance de sistematizar e compartilhar ideias por meio da escrita de um modo mais afetivo.

Para mudar um pouco de ares, me inspirei a voltar aqui hoje e escrever de um jeito mais livre, leve e solto. Sem revisar o texto mil vezes ou demorar uma semana para colocá-lo no ar. Sem a obrigação de destrinchar um tema específico com alguma profundidade. Quero apenas falar sobre aflições e vontades. Mas trazendo sempre a tal da perspectiva feminista, em algum momento, porque é pra isso que este blog existe. Escrevo o tempo todo, profissionalmente e academicamente, mas nem sempre do jeito que eu gostaria. Aqui rola de fazer uns experimentos, né?

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Porém, tenho experimentado também o lado ruim de colocar as próprias ideias online. Existe um forte movimento de apropriação e cooptação do que pequenos grupos estão fazendo. Isso acontece em prol de algum tipo de lucro pessoal que, por vezes, é econômico também. Ou social. Vários tipos de capitais em questão, esses lances. As coisas mudaram e o ambiente virtual, que já foi o esconderijo aconchegante de muita gente, virou uma grande vitrine.

Sinceramente não aguento mais a figura do digital influencer que cospe um monte de besteira genérica em um ritmo frenético e ainda por cima utiliza pautas sociais de modo distorcido e dissolvido apenas para impulsionar a própria imagem. Não aguento mais grifes falsamente inclusivas e cheias de frases prontas. Não aguento mais gente achando que pesquisar conteúdo significa roubar ideias e formatos alheios. Não aguento mais a sensação de que a conversa no ambiente virtual está parecendo mais produção gratuita de conteúdo para empresas (inclusive para as próprias mídias sociais) e pessoas aproveitadoras.

Pesquisa envolve enfiar a cara em livros, revistas e sites, visitas a lugares, passeios pelas ruas, viagens, conversas com pessoas e afins para, a partir daí, construir a própria trajetória – uma trajetória que dê o devido crédito a quem fez parte dela. Então isso acaba sendo outro fator que me deixa desanimada. Fico muito feliz com o reconhecimento que vez ou outra recebo, com o diálogo que estabeleço com pessoas ótimas, mas ver gente ganhando edital, fazendo matérias ou vídeos no YouTube a partir de coisas que pensei, criei, produzi (e sem autorização) me deixa triste. Dinheiro e crédito são coisas importantes nesse mundo. Mas isso não é nenhuma novidade e acontece em movimentos sociais, culturais, artísticos e etc o tempo todo, como uma dança espelhada e esquisita.

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Esse negócio de apropriação me faz pensar também na memória de Marielle Franco, que foi quem abriu este texto. É importante que ela esteja sempre em pauta, mas de modo respeitoso e humano e não como nome de hambúrguer vegano de trinta reais ou de coleção de lingerie. Não de modo superficial e preguiçoso, com uma representação que traga a mera imagem dela repleta de buracos de bala em uma roupa de marca. Tudo isso aconteceu – e é pavoroso. É pavoroso não estar sendo feita metade da reflexão que é necessária em um país que tem suas bases construídas em cima do racismo e da misoginia. No capitalismo tudo é um produto, realmente.

O Dia das Mães passou e, mais uma vez, discutiu-se no âmbito virtual sobre ser mãe de pet (e agora teve até mãe de planta???) ou maternidade compulsória (tema importante, não nego). Quem lembra das mães que possuem a maternidade interditada pelo genocídio de seus filhos negros, por exemplo, para além das próprias militantes do feminismo/movimento negro? Uma amiga minha estudou essa questão e não vejo a hora de essa dissertação estar logo disponível de alguma maneira, para que todos possam ver. E ela cita Marielle, academicamente, resgatando também o legado teórico de uma pessoa que lutou em variadas frentes. Um salve para toda a mulherada que está no corre pensando no coletivo – sejam faxineiras, cozinheiras, pesquisadoras, escritoras, doulas, arquitetas e afins. Não é fácil, mas sempre tem alguém por alguém em algum lugar. E nessas horas até cogito ter a tal da fé.

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Falando em coletividade, recentemente conheci de perto muitas pessoas que admiro e outras que passei a admirar. Me sinto energizada por essa rede de troca que me traz, cotidianamente, tantos novos conhecimentos. Minha amiga de tantas aventuras, a querida Gabriela Sobral, idealizou uma feira de publicação independente intitulada Bancada, que aconteceu no Rio de Janeiro dia desses, e fiz parte da organização e curadoria. Pudemos reunir muitas dessas pessoas inspiradoras em um lugar só. Foi muito legal.

Além das minhas obrigações mais oficiais envolvendo estudo e atuação como jornalista, tenho trabalhado com feiras de publicação independentes, principalmente na parte de assessoria de comunicação. Vez ou outra organizo meus próprios eventos ou dou pitaco nos eventos dos outros. Acho esses rolês muitos potentes, horizontais e importantes: o compartilhamento de experiências é imediato e o público pode se perceber como parte fundamental na construção de um cenário em que grandes empresas e shoppings não precisem sempre ser intermediários entre seres humanos e artefatos culturais. Além disso, gosto de conversas cara a cara, de encontros presenciais. São importantes. São necessários.

Bancadarua

Bancada ❤

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Um sonho: pequenos produtores (de alimentos, livros, roupas e afins) em grande escala e não grandes escalas de coisas sendo produzidas por poucas empresas. Pessoas com tempo para cozinhar, ouvir música, dançar e compartilhar experiências sem esse peso do medo e da insegurança preenchendo corpos, mentes e existências com afetos de tristeza e terror – um quadrinista que sou fã me aconselhou ler Espinosa após me ver surtada no período das eleições, mas ainda sou nova no assunto. A crise é um projeto político, sabemos, e me sinto em uma música da Legião Urbana, com meus amigos procurando emprego, todo mundo sem dinheiro e a sensação de que estamos voltando a viver como anos atrás.

Mas, repito, sei que as coisas não estavam perfeitas. Muito pelo contrário.

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O agora escorre entre meus dedos e tento agarrá-lo. A cada passo que dou, me sinto entrincheirada entre passado e futuro (alô, Boaventura!), quase como em uma espécie de paralisia que nubla meus sentidos e me enche de dúvidas. Mas a dúvida é o combustível de toda caminhada, e a incerteza é a única certeza que podemos ter, não é? Por isso esse post com tantas perguntas, poucas conclusões e muitos acontecimentos soltos.

Respiro fundo e tento me localizar no agora, o agora de agora que não é mais o agora que escrevi a alguns minutos atrás. Que bom é estar aqui nesse instante silencioso em que nada mais existe e tudo importa. De qualquer maneira, ainda assim, me sinto exposta, mesmo estando dentro do meu próprio espaço, apenas porque escrevi de um jeito que nunca escrevi antes por aqui, seguindo a ordem desconexa dos meus próprios pensamentos. Respiro fundo de novo. É estranho viver no caos, mas já não deveríamos estar acostumados?

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Um beijo, um abraço e fiquem bem. <333

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Beleza, feiúra, estigmas e xingamentos como ferramentas para silenciar mulheres

“Quando se atrai a atenção para as características físicas de líderes de mulheres, essas líderes podem ser repudiadas por serem bonitas demais ou feias demais. O resultado líquido é impedir que as mulheres se identifiquem com as questões. Se a mulher pública for estigmatizada como sendo ‘bonita’, ela será uma ameaça, uma rival, ou simplesmente uma pessoa não muito séria. Se for criticada por ser ‘feia’, qualquer mulher se arrisca a ser descrita com o mesmo adjetivo se se identificar com as ideias dela”

Naomi Wolf em O Mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres

Desde cedo, garotas são doutrinadas a acreditarem que são inferiores e incompletas. “Menina não pode fazer isso”, “se você falar assim, ninguém vai te querer”, “tira a mão” daí” ou “comporte-se como uma mocinha” são frases comumente utilizadas durante todo o processo de tentar transformar um ser humano do sexo feminino em uma mulher. É claro que o repertório varia de acordo com fatores como cor de pele, condição econômica, etnia, peso e afins, até mesmo porque existem hierarquias entre as próprias mulheres. Enquanto se exige força de umas ou delicadeza de outras, por exemplo, é possível detectar a existência de alguns pontos em comum. Um deles é a validação masculina como um mecanismo que, a partir de premissas irreais e excludentes, define o quanto uma mulher vale.

A partir da crença de que é incompleta, uma mulher começa a ser vista como menos despedaçada a partir da legitimação de um homem – ou de vários. Porque não basta um ficante, um namorado, um marido, é preciso também agradar aos passantes na rua, o vizinho, o chefe e o olhar masculino generalizado que embasa os padrões atuais de beleza e de comportamento. Em 1975, o conceito de male gaze (ou olhar masculino, em tradução livre) foi cunhado no artigo Visual Pleasure and Narrative Cinema, da feminista e crítica britânica Laura Mulvey. O texto basicamente argumenta que as mulheres são representadas nas telonas como objetos que devem agradar a ótica do homem “padrão” – ou seja, do cara que possui algum poder de consumo e respaldo no meio em que vive. A provocação ainda hoje gera debates e foi estendida por diversas teóricas feministas para a sociedade como um todo pois esse olhar vai além dos enquadramentos de câmera.

Pouco antes da Mulvey, o crítico cultural John Berger, também britânico, escreveu no livro Ways of seeing (que tem série televisiva de mesmo nome) sobre como homens olham para as mulheres enquanto as mulheres olham para si mesmas sendo observadas pelos homens. Ainda que o foco dele tenha sido nos cânones da arte ocidental, essa análise pode se enquadrar também para além das galerias e afins. Logo, considerando tudo isso e partindo desses pontos, as mulheres se pegam constantemente preocupadas com a própria aparência, com o próprio comportamento, com as próprias escolhas. Com tudo. Não é possível falar ou viver livremente pois a necessidade de aceitação é mais do que uma questão social: em muitos casos, significa também algum tipo de segurança, ainda que ilusória.

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Ilustração exclusiva pela artista Mariana Destro

Ilusória pois, na prática, as mulheres que agradam o olhar masculino também sofrem assédios e coisas do tipo, ainda que as que não agradem costumem sofrer mais violentamente e constantemente as consequências de serem quem são. Como já falei, a respeitabilidade da mulher é medida por quanto um homem – ou um conceito que parte do olhar masculino – define o valor dela. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie discute em Sejamos todos femininistas (famoso discurso que virou também um livro) sobre como perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocuparem com o que os meninos pensam delas.

É desde cedo que as mulheres aprendem a observar a si próprias a partir de fundamentos que partem do olhar do outro – e se constroem com base nessa visão. A autora fala também que os homens são pressionados a serem sempre durões e acabam com o ego muito frágil, afinal, quem consegue ser “machão” e indestrutível o tempo todo? Isso faz com que as mulheres acabem empurradas para estarem sempre cuidando do frágil ego masculino. Não basta terem que lidar com as expectativas que os homens possuem delas, é preciso também cuidar dos sentimentos deles em relação a eles mesmos. Esse trabalho emocional é extenuante e faz com que as mulheres se diminuam para que a grandeza masculina possa ser enaltecida.

Portanto, é possível perceber que o olhar masculino não é apenas um enquadramento reducionista, mas também utópico: deseja mulheres perfeitas e imóveis, como pinturas a óleo, ao mesmo tempo em que é desejável que elas sejam emocionalmente e/ou fisicamente fortes e façam tudo por eles. O objetivo é que elas continuem a servir como esposas-acessório ou mão-de-obra precarizada sem reclamar muito e, apesar de tudo, sonhando com um príncipe encantado que mostre para o mundo, a partir do reconhecimento dele, o quanto elas são valorosas e merecedoras de coisas boas. Dentro desse cenário, o discurso da mulher é fortemente atrelado à aparência dela e, como mostrado na frase da Wolf que foi colocada ali no início deste texto, não existe saída.

Uma mulher considerada bonita será tratada como uma ameaça ou terá o rótulo de burra atrelado à ela, para que suas palavras percam força. Uma mulher considerada feia será ridicularizada, e todos os seus questionamentos serão tidos como frustração, queixa, bobagem. Além disso tudo, existe uma força patriarcal que busca desunir as mulheres fazendo-as terem medo de ter uma opinião. “Nossa, mas você é tão inteligente, e concorda com essa daí, que é burra, e só conseguiu publicar um livro porque dormiu com alguém, porque é bonita?” ou “claro que você concorda com essa baranga, você é baranga também kkkkkkk” ou “quem pensa igual à Fulana é porque é feia que nem ela” ou “quem pensa igual à Cicrana é porque é fútil que nem ela” são algumas das muitas frases possíveis, e o intuito de todas elas é o mesmo: calar a voz de mulheres – e diminuir a força do discurso delas.

No período das últimas eleições isso foi exemplificado com clareza. Quem votasse em sei lá quem era mais bonita, quem fizesse isso ou aquilo era feia. Perceba que as que recebiam elogios eram sempre as que estavam de acordo com a vontade dos homens que proferiam as categorizações, óbvio. E isso acontece o tempo inteiro, em todos os espectros políticos, mas não dá para negar que mais em uns do que em outros.

Quanto mais medo uma mulher tem de expor as próprias opiniões ou de endossar a opinião de outras mulheres, mais difícil fica unir demandas em comum. Não é à toa que tantos homens gostam de rotular feministas como feias, peludas, mal comidas, lésbicas e etc, como se, oh, essas coisas todas fossem muito ofensivas. São justamente as feministas que estão tentando libertar as mulheres das amarras do patriarcado e, por isso, são consideradas perigos que devem ser combatidos. E não é à toa também que, infelizmente, mulheres em geral e até mesmo muitas que se consideram feministas tentam se vender como dóceis, tranquilas, depiladas e heterossexuais para não serem colocadas no mesmo pacote das que desagradam o olhar masculino.

É uma armadilha perfeita essa em que as mulheres foram colocadas: voz, aparência e, consequentemente, peculiaridades e necessidades acabam soterradas embaixo do constante medo de sofrer violência, rejeição e tudo mais. Consideradas e tratadas como incompletas, um rompimento brutal com um sistema machista que julga e oprime se torna difícil, afinal, é preciso sobreviver. Além disso, afeto, autoestima, segurança, emprego e afins são também coisas importantes que podem estar em jogo quando uma mulher se posiciona assertivamente, se veste e comporta como quer ou abala as estruturas de poder ao redor dela. A possibilidade da estigmatização está sempre por perto, como um sopro quente na nuca que causa medo e incômodo. Como uma eficaz tática de vigilância.

O que fazer, então? Também estou tentando descobrir. Penso em algumas saídas, como, por exemplo, seguir lutando cotidianamente contra os mil tentáculos do racismo, uma das maiores ferramentas utilizadas para manter padrões de beleza e, principalmente, desigualdade social e econômica. No Brasil, o fenótipo que mais sofre preconceito é também o que mais precisa garantir os próprios direitos, e isso não é coincidência. Não é coincidência perceber que quando uma mulher negra levanta as próprias questões logo tenha o próprio comportamento rotulado como “raivoso” ou escute alguma ofensa em relação à própria aparência, porque o intuito não é apenas silenciá-la naquele momento e sim fazer com que ela se desgoste tanto a ponto de silenciar-se nas próximas vezes por conta própria – e internalize o papel de subalternidade.

Outra coisa importante é que mulheres em geral rompam com o ciclo da vigilância e parem de julgar umas às outras por conta de roupa, peso, cabelo, relacionamento e afins. Isso é algo que só colabora com a criação de mais estigmas e com a desunião feminina. A vadia de amanhã sempre pode ser você. A feia de amanhã também. A isolada. A que não merece nada. E assim vai. Isso não significa que todas as mulheres devem ser melhores amigas ou que nunca possam ser criticadas, só significa que é importante ultrapassar as fronteiras da misoginia para que mulheres possam ser julgadas, para o bem ou para o mal, a partir de motivos concretos e relevantes.

Não acaba por aí. Seria interessante se as mulheres tivessem um olhar mais justo e amoroso não apenas com as companheiras ao redor, mas com elas próprias. É preciso tentar construir um novo universo em que a luz interior emane de dentro para fora, e não o contrário. É preciso aceitar a própria humanidade e imperfeição ao tentar edificar uma percepção nova sobre si mesma que não parta apenas do olhar do outro. Longe de mim tentar soar como uma espécie de autoajuda cretina. Só acho que, em um nível individual, pode ser importante tentar se conhecer melhor para, a partir daí, se definir a partir dos próprios gostos e desejos e não da mera vontade alheia. Isso ajuda mulheres a observarem melhor quem são, quem querem ser e quem podem ser para além das expectativas do desejo masculino. E ajuda também a bloquear julgamentos destrutivos.

A partir do ponto anterior, é possível ampliar o olhar em relação a mulheres admiráveis e buscar referências e informações que valorizem mais do que rostinhos considerados bonitos. Tenho uma amiga que é fã da Marilyn Monroe, por exemplo, e ela sabe várias coisas interessantes sobre a carreira dela que envolvem aulas de atuação e envolvimento com política. E existem mulheres de muitas outras áreas que merecem reconhecimento porque escrevem, cantam, ensinam, tocam um instrumento, pilotam aviões, rebocam paredes, pesquisam ou fazem milhões de outras coisas de uma maneira formidável.

Muitos são os homens reconhecidos pelos talentos e habilidades, inclusive homens considerados feios pelo padrão vigente. No entanto, essa sociedade faz com que as mulheres precisem sempre passar por avaliações estéticas e a partir do momento em que agradam ou não o olhar masculino é que o destino delas é traçado. E nesses tempos hiperimagéticos, principalmente, muitas pessoas são glorificadas simplesmente por se “manterem jovens”, possuírem dinheiro e estarem dentro de um padrão branco e heteronormativo de beleza. Ultrapassar esse ciclo é não apenas reconhecer o trabalho de outras mulheres, mas adquirir mais conhecimentos e trabalhar a própria inteligência – porque esse culto à aparência é também uma forma de estimular emburrecimento coletivo, controle social e gatilhos de consumo, né?

Dentro de uma sociedade que se organiza a partir de hierarquias diversas, as mulheres se tornam ainda mais vulneráveis (psicologicamente, economicamente e afins) dependendo do lugar em que se encontram dentro dessa escala – embora, de um certo modo, todas estejam correndo riscos. Sim, meu sonho é chegar em um patamar que ofensas ridículas não façam nem cócegas em mulher alguma e todas apenas sigam em frente, conquistando mais e mais vitórias. Mas sei que não é fácil e que cada uma tem sua realidade específica, com problemas e questões específicas.

De qualquer modo, conseguir construir essa noção de que uma atuação em rede fortalece grupos e de que o poder estabelecido realmente possui uma estratégia em curso que tem o intuito de silenciar mulheres e desmobilizar a luta feminina por direitos é fundamental. Dessa maneira, fica mais fácil erguer um escudo que auxilie nos momentos difíceis e blinde de ofensas gratuitas. Ah, um idiota te chamou de feia? Isso diz menos sobre sua aparência e mais sobre a capacidade argumentativa dele e sobre os medos de um frágil ego masculino que teme mulheres com poder, autoestima e espaço. A admiração condicional, passageira e nem sempre verdadeira do olhar masculino é infinitamente menos importante do que as reais vontades, necessidades e desejos de uma mulher. Que todas possam um dia falar e ser, sem medo.

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O problema não é o “gênero”

As pautas ditas “morais” são prioridade de quem quer acabar com ~tudo isso aí que tá errado~ e, enquanto todo mundo se preocupa com quem o outro dorme, nossos direitos vão escorrendo pelo ralo. Uma das grandes medidas aprovadas após a retirada de Dilma Rousseff do poder foi a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que congela o gasto com “despesas” do país por alguns anos. Isso significa que serviços públicos de saúde, educação e afins podem sofrer ainda mais baques nos próximos tempos. Contudo, pensando mais profundamente, essas coisas são realmente despesas ou, na verdade, são investimentos? Vários pontos de vista devem ser analisados.

Existem estudos que asseguram que o ideal é que países em crise, enfrentando momentos de austeridade, sigam com práticas de seguridade social para o bem da população e até da economia. Dessa maneira, suicídios podem ser evitados e doenças podem ser controladas. Além disso, levando em consideração um contexto capitalista, trabalhadores sem saúde produzem menos e geram mais demandas aos sistemas públicos. O dinheiro que deixa de ir para saúde ou educação não vai magicamente para o bolso de quem precisa, muito pelo contrário. Cortar política social ou restringir serviço público, por exemplo, não reduz corrupção, até porque favorece corruptos que estão no mercado querendo emplacar os próprios negócios.

Bom, mas o que esperar de uma bancada política altamente conservadora e comprometida com o dinheiro, e não com as pessoas, não é mesmo?

Outras medidas não tão benéficas para a população também estão em destaque, como a reforma da previdência, a flexibilização de leis trabalhistas e afins. A retirada de direitos é um projeto e, para que isso seja acobertado, foi criado um monstro feio e horripilante a ser combatido: a “ideologia de gênero”. Criou-se um mito de que existem professores-doutrinadores passando vídeos pornográficos nas escolas enquanto toca Pabllo Vittar (adoro) e merendas são distribuídas em mamadeiras de pinto. Isso é um desrespeito infinito com a classe educadora do Brasil, que não é reconhecida como merece e ainda precisa lidar com acusações absurdas.

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Gênero: mais polêmico que mamilos! Foto de Lailson Santos (reprodução).

Mas, afinal, o que é gênero?

A resposta para essa pergunta é longa e complexa. Muitas são as pessoas que estudam o tema (sou uma delas) e os conflitos, questionamentos e divergências são variados, mesmo entre quem aparentemente está do mesmo lado. Em um resumo bem rápido, gênero é um termo que floresceu a partir do objetivo de separar o lado biológico e o lado social do ser humano. Um corpo do sexo feminino pode, na maioria dos casos, gestar uma criança, por exemplo. O gênero é a construção social que dita que todo corpo capaz de gestar uma criança é uma mulher, e que toda mulher deve sonhar com ser mãe, ter filhos, agradar o marido e coisas do tipo.

O gênero, portanto, pode ser uma narrativa imposta aos corpos com o intuito de regulá-los de acordo com as expectativas de uma determinada sociedade. Ele não é “natural” e, por isso, é raramente acolhido de forma unânime (mulheres estudando quando era proibido já era um rompimento de barreira, entre vários outros exemplos). Supõe-se, inclusive, que as diferenciações sexuais hierarquizantes nascem como estratégia de controle social, reprodutivo, econômico e tudo mais. Logo, discutir gênero envolve debater um universo inquantificável de assuntos. E eles vão muito além da questão meramente moral (que tem sua importância) e abrangem gravidez, abuso sexual, divisão do trabalho e outros temas que atravessam a vida de todas as pessoas de modo bem concreto.

Desmistificar que “homem que é homem resolve briga na porrada” ou que “mulher tem que aguentar tudo” também significa conversar sobre gênero. Bem como explicitar que uma pessoa com pênis pode ter cabelo grande e adotar um nome considerado feminino ou que uma pessoa com vagina pode jogar futebol e cortar o cabelo bem curto. Existem muitas angústias e violências a serem resolvidas. E as pessoas precisam ter a chance de se sentirem mais confortáveis na própria pele ou de abandonarem papeis que foram empurrados à força. Além disso, desmistificar papeis femininos e masculinos e aliar isso à educação sexual ajuda crianças, adolescentes e jovens a identificarem situações de abuso.

E tem mais: um homem que mata uma mulher porque “não aceitou o fim do relacionamento” é, na verdade, uma pessoa que assimilou a hierarquia de gênero de modo tão profundo e natural que chega se torna legítimo aniquilar a existência de quem não mais quer ser posse dele. E é também alguém que não aprendeu a lidar com frustrações e sentimentos de rejeição de uma forma emocionalmente equilibrada.

Porque “homem não chora”.

Por isso, o debate de gênero envolve, fundamentalmente, o respeito ao próximo, ao corpo do próximo, às vontades do próximo, às escolhas do próximo, à orientação sexual do próximo, à maneira de ser do próximo e assim vai. E falar sobre gênero é falar sobre liberdade de expressão e liberdade para expressar a si mesmo.

Os que falam em combater a tal da “ideologia de gênero” e fingem estar preocupados com a “defesa da família” querem, na verdade, a manutenção do poder patriarcal. E querem as pessoas presas nos papeis de sempre e vigiando umas às outras, porque assim é mais fácil controlá-las. E assim são criados bodes expiatórios e respostas simplistas que serão úteis caso a desigualdade social aumente ainda mais por conta das medidas tomadas pelos tais “defensores da família”. Porém, incitar desconfiança entre semelhantes (não somos todos iguais?) e dificultar a melhoria de vida da população é realmente uma maneira de defender alguém? Ou é uma cortina que busca distrair todo mundo de problemas reais enquanto direciona ódio para quem não tem culpa de nada?

O problema não é o “gênero”, pode acreditar.

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POSTO, LOGO EXISTO

Se eu não postar, então não aconteceu? Estou te vendo, fala comigo. Se demorar muito, posso perder o interesse. Ou ficar obcecada e te googlar até encontrar fotos que você tirou durante uma viagem de férias em dois mil e sete. E sabe-se lá o que mais. O tempo anda muito acelerado, não temos paciência e nem concentração. Antes, um livro inteiro era devorado em um dia. Hoje, pulo de aba em aba, tentando ler ao menos metade dos textos que guardei para depois. Mas, a cada aba fechada, surgem outras dez abertas.

Alimentamos o presente com um senso de urgência causado por uma constância excessiva de informações. No entanto, não nos damos o tempo da digestão: todo-mundo-tem-que-ter-uma-opinião-sobre-tudo. Agora, neste exato instante. A presença online é um misto de marketing pessoal com doses amargas de autossabotagem. Jogamos The Sims com a nossa própria imagem. Quem sou eu, para além do meu avatar?

Notificações ativam o sistema de recompensa de nossos cérebros. Experimentos behavioristas, entretenimento ou construção coletiva de conhecimento? Like me, please. Pay attention to me. Tecnohedonistas em um panóptico virtual. Vigiar, punir, mandar nudes e ver uns gifs de gatinho. Novos formatos para antigos valores e a velha cooptação empresarial de sempre. A democracia continua a ser um sonho não colocado em prática. O seu desabafo não deixa de ser conteúdo gratuito. Passos mapeados, cliques monitorados e mentes controladas. Como é mesmo que se descobria as coisas antes de elas simplesmente aparecerem em nossas timelines?

Não quero instruções de uso e sim alguém que me ajude a montar. Dizer que faz não é fazer. Confirmar presença não é ir. Digitar dirigindo é vício? De qualquer maneira, deixa meu celular aqui embaixo do travesseiro. Gosto de dar olhadinhas nele antes de dormir e depois de acordar. De manhã, de tarde e de noite. Estamos livres e aprisionados. No que você está pensando agora?

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Este texto é a introdução do zine VULVA CONEXÃO, que lancei em junho de 2017 com o intuito de reunir algumas inquietações pessoais em relação a temas que envolvem principalmente capitalismo, machismo, seres humanos & a nossa querida rede mundial de computadores. Caso queira adquirir, ler na íntegra ou compartilhar os seus próprios pensamentos, deixe um comentário ou mande um email para vulvalarevolucion@gmail.com.

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Pelo direito de ser complexa: uma conversa sobre feminismo

Finalmente estou tirando a poeira do blog e fazendo o primeiro post de 2018. São tantas coisas acontecendo que, às vezes, me sinto tonta, inútil e paro de ver o sentido de ficar postando minhas ideias na internet. Contudo, navegar é preciso, não é mesmo? Por isso, tenho a honra de receber aqui mais uma conversa entre eu e duas mulheres que admiro muito: Clarissa Wolff, do canal A Redoma de Livros e da incrível coluna na Carta Capital com o mesmo título, além de autora do blog Doce (Catárticos); e Amanda V. (Deixa de Banca), jornalista e a mente por trás de um dos blogs mais divertidos que conheço.

Esse formato foi proposto pela Amanda e tem sido muito agradável poder abordar temas importantes de forma descontraída. Espero que vocês estejam gostando de nos conhecer desse modo um pouco mais íntimo! Em nossa primeira conversa, falamos sobre aquilo que nos une: escrever na internet. A segunda abordou reflexões sobre beleza. Agora, na terceira, relembramos como entramos em contato com o feminismo pela primeira vez e discutimos os desdobramentos que o tema trouxe para nossas realidades.

A gente debateu sobre questões atuais que envolvem o feminismo no contexto da internet e de uma sociedade consumista, que dissolve movimentos com o intuito de torná-los palatáveis, e enfatizamos a constante necessidade de práticas realmente politizadas, que priorizem as urgências atuais e tenham um posicionamento ético como norteador. Não deixamos de abordar também contradições e complexidades inerentes ao ser humano! Se liguem:

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Vulva Revolução: Oi, gente! Eu queria falar sobre como o feminismo começou a fazer parte de nossas vidas. E discutir como a relação com o movimento, teoria e afins acaba influenciando tanto a nossa forma de se relacionar com o mundo, quanto como o mundo se relaciona com a gente. Falar de cobranças, exigências de perfeição, benefícios e muito mais.

Pra começar: quando vocês entraram em contato com o feminismo, inicialmente?

Deixa de Banca: Acho que a primeira vez que entrei em contato com o feminismo foi lendo “O diário da princesa”, rs, um livro do começo dos anos 2000. A personagem principal se considera feminista. Um dos conflitos da história inclusive é ela querer ser uma “mulher independente” mas acabar desejando coisas que reconhece como misóginas. Como eu gostava muito desse livro, eu acabei não antagonizando o feminismo, eu o reconhecia como uma parada massa e da qual eu queria fazer parte.

Clarissa Wolff: Minha mãe sempre falou que era feminista, e eu cresci convivendo com essa palavra. Ela não estudava a fundo teoria de gênero na época como veio a estudar mais tarde, era aquele feminismo zero acadêmico, mas muito material: mulher pode fazer tudo que homem pode etc.

Vulva Revolução: Comecei a ler muito cedo e passava muito tempo sozinha lendo livros da biblioteca pessoal do meu tio. Foi assim que descobri o que era, tinha livro que citava ironizando, tinha livro que citava apoiando… Mas foi adolescente que comecei a ouvir bandas feministas, tipo Bikini Kill, e entender mais, embora eu também tenha crescido com essa ideia de que mulheres podem tudo. Ou melhor, quase tudo, pois sofri cerceamentos em um misto de conservadorismo familiar e senso de proteção das mulheres da minha família, que sabiam na pele que estamos expostas à violências específicas e, do modo que consideravam certo, tentavam alertar as mais novas.

Deixa de Banca: Minha mãe nunca se reconheceu como feminista, eu nem ouvia esse termo lá em casa… Mas ela sempre me incentivou a investir na minha carreira e a ter independência financeira em vez de priorizar casar ou ter filhos.

Vulva Revolução: Sobre “O diário da princesa”, o livro falava especificamente de misoginia e esses termos? Eu nunca li, então fico boiando.

Deixa de Banca: Fala sim! Elas falam sobre como a mídia é misógina, zoam os meninos da escola, hahaha. O livro é beeeeem moderno, me faz pensar em como estamos em momento de backlash mesmo.

Vulva Revolução: Gente, e eu sempre olhei com preconceito. Tá vendo que coisa feia, a gente às vezes descarta coisas que parecem “de menininha” automaticamente, rs.

Deixa de Banca: Bridget Jones também fala sobre feminismo aliás, haha.

Clarissa Wolff: Eu li ambos e não lembro disso.

Deixa de Banca: Mas naquela linha pós-feminista, acho que na época era bem forte esse conflito entre sentir que você precisa ser “independente” mas ao mesmo tempo querer viver um amor romântico, ser bonita etc.

Vulva Revolução: Que é o feminismo que a maioria de nós entra em contato primeiramente, não é? Essa ideia que “lava” os preceitos fundamentais do movimento para que ele permaneça vendável e a gente continue pensando a partir de um viés que privilegie a heteronorma e agrade o olhar masculino.

Deixa de Banca: Sim! Na adolescência foi bem forte pra mim essa visão do feminismo enquanto “liberdade sexual”, de poder transar “com quem quiser”.

Clarissa Wolff: Siiiiiim!

Vulva Revolução: Isso me faz pensar que, sei lá, às vezes nossas avós dizendo “não vá sair com esse cara, menina” porque sabem que um desconhecido (e até mesmo conhecido, convenhamos) pode nos causar males que a gente sequer imagina acaba sendo mais feminista na prática do que o que a gente absorve do feminismo mainstream que nos mantém na engrenagem que o sistema quer. Pra falar de liberdade sexual entre quem se relaciona com homens, por exemplo, tem que alertar sobre violência masculina, não tem jeito. É o nosso tempo ainda, infelizmente.

Deixa de Banca: Com certeza! Minha mãe ficava super preocupada comigo, falava que eu não podia confiar nos homens, que eles iam ficar falando mal de mim. E eu ficava com raiva porque achava que ela tava sendo conservadora, haha, mas hoje entendo que ela estava certa. Só mais velha fui ver que não era liberdade nenhuma, eu só tava colaborando com a minha própria objetificação. O que ajudou a despertar pra isso foi ler “Female Pigs Chauvinists”, da Ariel Levy, e o “Intercourse”, da [Andrea] Dworkin.

Clarissa Wolff: Mesma coisa comigo. O que me levou pra uma leitura mais estrutural das coisas foi refletir sobre anorexia e padrão de beleza. Fui ler coisas sobre esses processos, li [Michel] Foucault na época (de novo por causa da mamãe). Foi com essa consciência mais de classe que comecei a refletir as outras, e daí veio a liberação sexual e aquele meu texto que ficou famoso [“A falácia da liberação sexual e as novas formas de dominação”]. Mas sempre primeiro com essas pautas “classe média” que doíam em mim. E daí li esses mesmos livros.

Deixa de Banca: Caramba! Nossa, eu fico muito frustrada com esse ódio que é destilado contra a Dworkin na internet. Muita gente chama ela de desatualizada também. Mas tenho certeza que qualquer mulher que se relaciona com homens pegar um livro dela pra ler vai se identificar de alguma forma

Vulva Revolução: Eu gosto muito daquele texto, Clarissa! Ele super me inspirou a escrever um com desdobramentos do mesmo tema, o “Mulheres não gostam de sexo ou homens não gostam de mulheres?” e até hoje vem gente falar que sentia essas coisas todas, mas não sabia como dizer. Ou pensava que era conservadorismo sentir essas coisas.

Clarissa Wolff: (opa vou ler!)

As pessoas chamam a Dworkin de desatualizada?

Deixa de Banca: Sim, ela e feministas da segunda onda em geral… São “velhas”, a teoria “não se aplica mais” à nossa realidade…

Vulva Revolução: Nossa, sim. E o que me entristece sobre o ódio destilado contra a Dworkin é que foi uma estratégia de desmoralização orquestrada principalmente pela direita norte-americana e por veículos de mídia tipo a Playboy, que faziam charges e textos ridicularizando não apenas as ideias dela, mas a aparência. E isso até hoje reverbera! Até mesmo feministas compram essas ideias de que ela é um ser temível.

Clarissa Wolff: Já vi gente falando que a Dworkin é conservadora (por ser antipornografia etc), mas nunca desatualizada. O argumento não faz nem sentido. Mas tá, ignorando isso…

Deixa de Banca: Sim! Essa ideia de que ela é uma conservadora radical que odeia homens contaminou muitas feministas… E aí muita gente deixa de LER o trabalho dela pra formar uma opinião, que é justamente o objetivo dessa estratégia.

Clarissa Wolff: …eu acho que a Dworkin foi muito diabolizada por ser radical e também porque ela trabalha com conceitos bastante complicados e as pessoas não se aprofundam pra entender. Ler o “Intercourse” de cara é difícil sem ter nada de bagagem teórica anterior. Por isso tem macho que aparece falando que ela dizia que sexo é estupro, quando até na página da WIKIPEDIA tem citação dela dizendo que nunca disse isso.

Vulva Revolução: Vejo pessoas falando que o feminismo dos anos 1970 é desatualizado como um todo. Se for assim, ninguém vai ler nada de filosofia, sociologia e afins nunca mais então, porque sempre é preciso resgatar ideias antigas para pensar o agora.

Deixa de Banca: Exato! Como construir conhecimento sem olhar para o que foi produzido no passado? E às vezes na internet rola muito essa lógica de que se uma parada é “problemática” a gente não deveria ter contato algum com ela… O que é tão contraprodutivo! Porque até pra criticar a gente precisa ter um conhecimento profundo das opiniões adversárias

Clarissa Wolff: Sim!!!!

Deixa de Banca: E foi bem nesse clima que a internet estava quando eu comecei a usar mais redes sociais. Nos grupos “feministas” era quase só briga e gente postando nude, hahaha.

Clarissa Wolff: Hahahaha, caramba! É verdade, rolavam muitos nudes. Em Porto Alegre a gente tinha um grupo mais organizado que foi o primeiro grupo que a gente realmente discutia coisas mais profundas – com briga, mas com argumento teórico, discussão e etc.

Vulva Revolução: Nossa, tinha muito isso mesmo e era bastante desgastante ver tanta gente depositando energia em busca de treta. Sou um pouco mais velha, então peguei uma fase boa no Orkut, com fóruns mais bem organizados e temas sendo discutidos com um pouco mais de profundidade. Tinha um grupo chamado “Feminismo e libertação” que era excelente, me ensinou muita coisa e conheço algumas meninas de lá ao vivo e mantenho contato até hoje. O Facebook deixou tudo mais chato, acho que pelo próprio formato dele. Parece uma arena com um monte de gente falando aleatoriamente com um megafone em busca de visibilidade para si e não em prol de uma construção coletiva de conhecimento…

Deixa de Banca: Sim! Era um uso bem individualista de conceitos que são coletivos. Então era fácil mobilizar as pessoas umas contra outras por tretas individuais como se isso fosse uma grande ação política.

Vulva Revolução: Já participei de lista de emails também que eram bem legais e informativas, mas hoje é tanta coisa o tempo todo que não consigo mais me organizar. Eu abro meu email e tem tanta propaganda, tanta coisa, me sinto zonza. Talvez realmente seja a hora de a gente aprender a organizar o conteúdo que já tem e não só de produzir mais conteúdo? Não sei…

Deixa de Banca: Nossa, sim! Eu também sinto que meu principal problema é não conseguir me organizar pra consumir o conteúdo que eu tenho interesse de consumir. Acaba que eu passo muito tempo lendo potoca no Twitter por já ter me acostumado com esse processo mais passivo das redes sociais, que já fazem toda uma curadoria pra gente

Clarissa Wolff: Eita, como assim?

Vulva Revolução: Não sei, só sinto uma enxurrada de informação me golpeando a todo o instante e às vezes acho que não consigo absorver ou me concentrar em algo como já consegui antes.

Deixa de Banca: Eu nunca usei Google Reader, mas direto vejo gente falando que sente saudade porque ajudava nisso de se organizar

Vulva Revolução: Acho que isso acaba facilitando esse momento atual de dissolução do feminismo e de outros movimentos, né? Todo mundo consumindo manchetes loucamente, todo mundo nessa desorganização e excesso, nesse bombardeio de spam e propaganda, tentando fazer algo útil, mas se sentindo soterrado e absorvendo mais facilmente um feminismo mais clean, prático, rápido.

Clarissa Wolff: Mas será que não foi sempre um pouco assim? O consumo de televisão e revista e jornal e toda a lógica publicitária e de hierarquia de informação existe há 100 anos, fico nervosa com o fatalismo da análise do momento atual, hahahah. Eu acho que qualquer ferramenta é passível de manipulação que gere usos “negativos”.

Vulva Revolução: Ah, sempre! Mas acho que estamos numa transição de modelos e isso traz algumas novidades, embora nem tão novas assim…

Sobre isso de “mobilizar as pessoas umas contra outras por tretas individuais como se isso fosse uma grande ação política”, isso é muito real e me causa muita tristeza. Claro que desnudar machistas, racistas e buscar combater desigualdades e opressões expondo esses comportamentos é importante. Mas vejo essa estratégia sendo usada às vezes com um fundo de rivalidade feminina, quando é contra mulheres, ou com um senso de incompreensão da complexidade humana, exigindo figuras perfeitas.

Clarissa Wolff: A lógica da lacração, né? Nossa, me incomoda muito também.

Deixa de Banca: Nossa, sim. E o pior é ver quem chama esse comportamento de “militância” kkkkkk. Taí mais uma palavra que teve o significado esvaziado.

Vulva Revolução: Uma vez uma moça que mal conheço veio me mostrar prints de uma briga boba que ela teve com outra. Era uma questão que poderia ter sido resolvida entre ambas, envolvia desconfianças e coisas que não eram tão “graves” e tal. Como confiar nessa moça e continuar conversando com ela, por exemplo? Como saber o contexto real daqueles prints? Por que, aliás, eu estava entrando em contato com prints de pessoas que sequer conheço pessoalmente? A gente tem que ficar sempre atenta, porque realmente, há muita confusão entre o que é prática política ou não.

Clarissa Wolff: SIM.

Deixa de Banca: Sim! Pensando nisso, uma coisa que me interessa muito é a recepção ao trabalho criativo de mulheres… Porque se você já fala de uma experiência feminina por um viés um pouquinho mais crítico já colocam aquela etiqueta de FEMINISTA e com ela todo aquele peso que a Vulva falou mais cedo, aquela cobrança de perfeição.

Vulva Revolução: E quando falo dessas coisas, não é em momento algum visando dar munição pra conservadores e pessoas contra o feminismo. Mas pra alertar a nós mesmas sobre como podemos nos machucar, às vezes. A impressão que tenho em alguns momentos é que os homens se unem contra as mulheres, e as mulheres se unem contra elas mesmas. Ou seja, estamos sempre em desvantagem. Queria um senso de ética mais forte entre a gente, de proteção, de saber resolver nossos problemas com diálogo franco e privado, pois nossa liberdade é muito frágil e sempre tem urubus à espreita querendo uma chance pra nos atacar.

Clarissa Wolff: Esses tempos eu entrevistei a Giovana Madalosso, escritora, e ela me falou algo que eu gostei muito. Ela disse “eu sou feminista, minha literatura não”. Porque o trabalho criativo pode ser isento de intenção, saca?

Deixa de Banca: Eu vi essa entrevista! Muito boa. Me identifiquei bastante! Porque a arte não precisa ter um caráter prescritivo, né? E quando a gente entra no campo da política inevitavelmente estaremos discutindo como as coisas deveriam ou não ser. Sem contar que nem sempre a vida pessoal da pessoa vai ser exemplar porque todo mundo é meio confuso… Já vi falarem que a Frida Kahlo não é “feminista” por causa do relacionamento dela com o Diego [Rivera]. Pra começar, por que a gente precisa discutir se a Frida era ou não feminista? Por que a gente não pode entender quem ela é e o que o trabalho dela era, em vez de tentar encaixar ela em expectativas do que uma mulher “forte” ou “livre” deveria ser?

Clarissa Wolff: Sem falar que existe uma diferença entre a nossa compreensão racional e o quanto o nosso emocional nos permite desconstruir na nossa vida. O ser humano é naturalmente incoerente, sabe?

Vulva Revolução: Sim!! Não sei se concordo que o trabalho criativo é isento de intenção exatamente, mas sei que ele pode, muitas vezes, estar trazendo outras facetas que existem dentro de uma pessoa. E a gente precisa complexificar mais o nosso olhar, para entender a complexidade alheia, ao invés de ficar desejando ícones perfeitos e que dialoguem com os nossos anseios de uma forma literal, didática, tatibitati.

Clarissa Wolff: Sim! A gente tem uma tendência de necessidade de ídolos, né? Sobre ser isenta de intenção, me corrijo: não é que ela obrigatoriamente seja, mas pode ser.

Vulva Revolução: Tem aquela moça do Carne Doce, que sempre criticam uma música dela, “Passivo” e, tipo, embora eu nem concorde com muita coisa que já vi ela defendendo, entendo que, enquanto artista, ela explora o que quiser dentro dela e joga pro mundo. Ela não está cantando que quer apanhar enquanto uma líder da ONU, mas enquanto uma artista investigando e apresentando lados diversos de sexualidade e violência, sei lá? Já vi também criticarem uma quadrinista que conheço por ser “falocêntrica” sendo que a personagem que ELA CRIOU está explorando um caminho único que não tem o intuito de ser a representação de todas as mulheres do mundo.

Deixa de Banca: Sim! E essa confusão entre ativista e figuras públicas é prejudicial pra quem de fato se engaja com militância, que tem seu trabalho ignorado

Vulva Revolução: Exatamente! Torna invisível quem está realmente trabalhando para representar ou ser a voz de um grupo. Creio que certas exigências são um tiro no pé por deixarem mulheres que criam de mãos atadas. Acho que tudo é passível de crítica sim, mas a gente tem que criticar com contextualizações. Tentando entender a trajetória da pessoa e não apenas levando em conta nossas expectativas de consumir produtos 100% “empoderados”, rs.

Clarissa Wolff: Exaaaato! Eu acho que existe uma diferença também da mulher falar da experiência PRÓPRIA x o homem falar da experiência do outro, da mulher. Tipo: uma coisa é a mulher falar que (pela condição de mulher e tudo que ela viveu) pode sentir vontade de ser submissa, outra coisa é o homem falar que quer uma mulher submissa. Mas, ao mesmo tempo, tenho um pé atrás com arte que normatiza situações de opressão, tipo “Cinquenta tons de cinza”, porque acho que a cultura e a arte são formas muito poderosas de mudanças e acho que a manutenção da ideologia do status quo passa muito pela arte e pelo entretenimento

Vulva Revolução: Ah, claro! Também acho e critico várias coisas, aliás. Só fico pensando que, às vezes, as mulheres tem um grau de exigência muito alto, tipo “VOCÊ NÃO PODE DIZER ISSO OU DIZER QUE SENTE ISSO” e, sei lá… Eu entendo a análise feminista que fala sobre a mulher erotizar a própria opressão e, ao mesmo tempo, já pedi pra levar uns tapas na hora do sexo?????? Ainda somos frutos desse tempo, em alguns momentos, por mais sofisticados que sejam os nossos pontos de vista, kkkkkkkk.

Clarissa Wolff: Ah, sim, com certeza. E retornando o que foi dito lá em cima, evitar 100% nem sempre é a solução. Me lembra aquele episódio da nova temporada de Black Mirror que a mãe censura o que a filha vê.

Vulva Revolução: Não assisti, mas minha mãe me deu os spoilers todos, rs. Sobre esse lance da perfeição, vocês se sentem cobradas por serem feministas?

Clarissa Wolff: Quando eu ainda era ativa na militância, sim. Hoje em dia que tô afastada, bem menos.

Vulva Revolução: É claro que, assim, com o florescimento da minha consciência feminista, passei a me esforçar pra ser cada vez mais uma pessoa melhor, mais ética e justa. E é muito bom esse sentimento, porque ele parte de um profundo senso de respeito ao próximo e não por medo ou coisas que religiões, por exemplo, tentam impor.

Deixa de Banca: Não. Eu sinto um conflito grande entre querer ter autonomia e ser codependente em relação a homens, mas não vejo em termos de estar sendo menos ou mais feminista. Mas eu nunca tive envolvimento com ativismo feminista, só leio livros sobre o tema e tento aplicar na minha vida pessoal mesmo.

Clarissa Wolff: Mas você não sente essa cobrança externa? As pessoas chegam pra você xingando “como pode gostar de x se é feminista”?

Deixa de Banca: Já rolou cobrança externa sim, por conta de alguns textos que escrevi, mas não me lembro de ter internalizado. Eu sou bem segura comigo mesma nesse ponto (em outros nem tanto). Mas acho que pode ser também porque nunca me envolvi com ativismo, então nunca fui cobrada a um nível que eu realmente considerasse importante. Gente me xingando na internet sempre tá falando besteira, nunca é uma cobrança que eu considerasse de fato válida

Vulva Revolução: Eu sinto que tem gente que tenta usar contra mim. Já me xingaram com termos misóginos, por exemplo, e depois me mandaram artigos acadêmicos sobre ressignificação de xingamentos e se eu fosse feminista mesmo, deveria aceitar e entender, rs. E sempre tentam me colocar nessa berlinda do “se você for feminista mesmo” e aí me empurram uma vontade meramente arbitrária e individual. E isso me deixa até confusa, pois feministas são as piores pessoas do mundo aos olhos do senso comum, mas ao mesmo tempo o senso comum espera as melhores coisas delas.

Você já teve envolvimento com ativismo feminista, Clarissa? Nesses moldes de se envolver politicamente? Eu sempre tive dificuldade, nunca fiz parte de nada organizado e presencial, tipo movimentos, grupos de mulheres, essas coisas. Nos últimos anos comecei a fazer mais eventos relacionados ao blog ou participar de eventos de outras pessoas, tenho um grupo de leitura feminista com outras mulheres, faço atividades em escolas ocasionalmente, ou oficinas em outros lugares, produzo material impresso, mas me sinto sempre muito sozinha. Ou, melhor dizendo, autônoma, independente?

Clarissa Wolff: Eu já, mas meio à distância. Ia em alguns encontros, mas não todos, saca? Também fazia muita coisa por mim, tipo ia em um protesto, fotografava e disponibilizava as fotos, ou produzia festa e doava os lucros. Eram coisas que mantinham um pouco uma distância, porque eu sou uma pessoa muito sozinha, não gosto de sair demais pra coisas presenciais. Então eu ia no que conseguia, tipo uma vez a cada dois meses.

Vulva Revolução: Nunca me sinto bem de me definir enquanto ativista, por nunca ter sido de um coletivo ou algo assim, mas ao mesmo tempo considero minha atuação importante. Acho que, de certo modo, nós todas temos uma personalidade parecida nesse aspecto! De ser mais pra dentro, não pra fora. Pra ser de coletivos e movimentos presenciais tem que ter um fôlego que eu não tenho, perdi o medo de falar em público tem pouquíssimo tempo.

Mas sempre fiquei muito tempo com minhas ideias e acho que a internet é fundamental nesse aspecto, porque se não fosse de outro jeito, eu não sei se estaria me articulando com tanta gente.

Deixa de Banca: Também tenho dificuldade de me relacionar com grupos de pessoas e essa é a questão que mais me afasta de um envolvimento com ativismo.

Clarissa Wolff: Eu acho também que qualquer grupo que constrói algo junto gera muita briga de ego, e isso também me manteve afastada.

Vulva Revolução: Nossa, sim! E nem sempre as pessoas estão na mesma página ou se dedicam com o mesmo afinco a algo que foi decidido conjuntamente. É muito complicado. Entendo que nem todo mundo tenha tempo ou disposição emocional pra se envolver com temas mais abertamente politizados, mas não dá pra negar que às vezes falta uma noção maior de responsabilidade sobre si mesmo. E sobre as próprias ações…

E o ser humano já é complicado por natureza, então acho que quando está lidando com questões tão dolorosas, pessoais, que envolvem direitos, experiências negativas, descobrimentos, tudo fica ainda mais difícil, porque cada pessoa está em uma fase diferente, enfrentando questões diferentes… Só político branco e rico mesmo que consegue achar que política não envolve áreas profundas do próprio subjetivo e fala toda hora em termos técnicos e supostamente imparciais, kkkkkk (cada k uma lágrima).

Clarissa Wolff: kkkkkkk (aqui também).

Vulva Revolução: Mas vamos falar de uma coisa boa: o impacto positivo do feminismo em nossas vidas. Porque temos críticas e anseios, mas acho que é um tipo de conhecimento que traz muita libertação também.

Deixa de Banca: Vamos! Acho que o feminismo foi muito importante para que eu pudesse me desprender de varias expectativas que me faziam mal. Como necessidade de estar maquiada, depilada, de ser sempre compassiva, de não valorizar minha produção intelectual, de antagonizar outras mulheres, de buscar aprovação masculina o tempo todo… E também foi pelo feminismo que eu reconheci meu racismo e consegui desenvolver empatia pelo movimento negro

Vulva Revolução: Eu melhorei minha relação comigo mesma, com os outros, com minha aparência, peso (uau, quem vê pensa que tô vendendo shake da Herbalife) e desconstruí muitas certezas sobre o mundo ao meu redor que me deixaram com um olhar mais aberto para novos modelos de relações amorosas, amizades, que me fizeram entender mais outras mulheres, inclusive as da minha própria família.

Deixa de Banca: Nossa, isso de entender mulheres da família foi muito forte pra mim também. Parei de antagonizar a minha mãe depois do feminismo. Nossa relação ficou muito melhor.

Clarissa Wolff: Eu melhorei muito a minha autoestima, minha relação com o mundo e também entendi melhor quem eu quero ser e como me posicionar pelo que eu acredito. Acho que a relação com as outras pessoas também muda, vira mais verdadeira e a gente perde menos tempo com relações superficiais

Vulva Revolução: A gente para de culpar nossas mães por tudo, né? E começa a entender que elas sofreram ou podem ter sofrido todas as mesmas coisas que outras mulheres por aí, infelizmente (aliás, a gente sempre acaba mencionando nossas mães nessas conversas! Só uma observação curiosa).

Clarissa Wolff: Hahahahaha, é verdade. E, sim, o foco deixa de ser o conflito.

Vulva Revolução: Eu acho legal a gente abordar a parte boa, pra que fique claro que as críticas visam apenas reflexões que tragam melhorias para todo mundo. Já não tenho mais paciência pra umbiguismos, pra mulher branca sendo tratada como universal e mais importante, então se a gente pensa em como as alterações individuais podem ajudar nas mudanças coletivas, a gente vai guiando nosso trem pra trilhos mais firmes…

Clarissa Wolff: Eu admiro muito mulheres como a Gail Dines que seguem firmes no fazer político mesmo depois de tanto tempo.

Vulva Revolução: Nossa, e mesmo com tanta pedrada.

Essa parte de não antagonizar mulheres que a Deixa de Banca falou foi muito importante pra mim, até porque além do bem-estar causado por alimentar amizades profundas, existe também uma parte política importante no agrupamento entre mulheres. A gente ganha mais voz e força mesmo nos âmbitos mais individuais da vida. Só acho que isso precisa agora ser rompido com mais força quando se fala em brancas e não-brancas de modo geral. Às vezes me irrito quando alguém me fala “precisamos levar o feminismo para a periferia” e sempre respondo “você é que precisa conhecer o feminismo feito na periferia”.

Deixa de Banca: Concordo 100%!

Clarissa Wolff: Sim!

Vulva Revolução: Pois enquanto mulheres brancas, percebo que não temos que “levar conhecimento” desse modo paternalista, mas ajudar outras mulheres a ter acesso ao que temos. A maioria das mulheres sabe que não “merece” apanhar, mas não tem acesso aos próprios direitos, não é amparada por leis como deveria, não conhece os trâmites burocráticos (que é diferente de não entender a situação em que se encontra).

Clarissa Wolff: Você falou em Bikini Kill, a Kathleen Hannah largou o riot grrrl por coisas assim.

Vulva Revolução: Sério? Li uma entrevista muito boa dela naquele livro “Não devemos nada a você” em que ela estava em um período de muitos dilemas, mas não sabia. O que ela disse sobre o movimento?

Clarissa Wolff: Eu li no livro “Girls to the front” como o racismo impactou, ela acabou saindo por causa de coisas assim.

Vulva Revolução: Nossa, não sabia! Eu facilitei uma roda de conversa em um espaço no Rio de Janeiro [Motim] e a Bah Lutz, do Bertha Lutz [banda punk e feminista de Minas Gerais], desenvolve um projeto em forma de zine chamado “Preta & Riot” em que ela mapeia mulheres negras envolvidas com o riot grrrl no Brasil. Ela falou bastante sobre a invisibilidade negra nesse meio e sobre a canonização da Kathleen Hanna que acaba centrada nessa cultura de idolização e celebrização que tanto queremos acabar. Isso me fez ver que eu mesma conhecia poucas mulheres negras envolvidas com o riot grrrl e comecei a pesquisar mais e mais, com a ajuda do material dela, inclusive.

Deixa de Banca: Aliás, uma coisa que me incomoda é essa percepção de que o feminismo é branco quando, na real, sempre existiram mulheres negras organizadas para defender os seus interesses. A diferença é que as brancas têm mais credibilidade e visibilidade na sociedade. A bell hooks fala muito sobre isso em “Ain’t I a Woman”. Então às vezes uma crítica ao feminismo que se entende como racialmente consciente na verdade está invisibilizando mais ainda o trabalho de mulheres negras

Vulva Revolução: Sim, isso é! Existem mulheres negras organizadas desde sempre e que precisam de visibilidade enquanto grupo, e às vezes o discurso branco fica se repetindo muito entre “precisamos reconhecer nossos privilégios” e “precisamos incluir mulheres negras” (como se elas estivessem de fora e não como se já estivessem organizadas). Precisamos ler, consumir, assistir, naturalizar a intelectualidade negra e os feitos de pessoas negras em nosso cotidiano, e não só falar da nossa culpa branca e aceitar uma e outra.

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“Pela Moral e os Bons Costumes”

Quem me acompanha sabe que não apenas sou uma grande entusiasta do cenário independente e autoral, mas também me movimento bastante dentro dele, seja frequentando, apoiando, colaborando, escrevendo sobre ou produzindo o meu próprio material. Desde a minha primeira publicação impressa feita enquanto Vulva Revolução, muitas outras surgiram – e ainda vão surgir.

Fui convidada para escrever o texto que apresenta a exposição da MOTIM – Mercado de Produção Independente deste ano, que traz o tema “Pela Moral e os Bons Costumes” e conta com ilustrações diversas, e resolvi compartilhá-lo aqui no blog. O evento acontece em Brasília e, junto com outras iniciativas (como a Feira Dente, que sou muito fã), tem movimentado bastante a produção independente local. Literatura, quadrinhos, fanzines, pôsteres, fine art e música: tudo é possível nesses espaços, onde o que circula surge de mentes e esforços desconectados de uma lógica convencional de mercado.

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Leia o texto, apareça na MOTIM e apoie artistas independentes – ah, e eu vou estar por lá com as minhas coisas, claro! Por mais diálogo e gente que faz, e menos obscurantismo, por favor.

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Para abrir a 4ª edição do MOTIM – Mercado de Produção Independente, a exposição “Pela Moral e os Bons Costumes” traz pôsteres ilustrados por artistas de todo o Brasil. As imagens evocam reflexões sobre o cenário atual do debate político no país, que entre choques e polarizações, anda aflorando bastante os ânimos de uns e outros. Por Deus e pela família, cidadãos e cidadãs de bem rasgam a roupa alheia para limpar as nódoas que mancham os próprios tapetes.

A sujeira que é varrida para os cantos, no entanto, não esconde a moral que acaba por suspender a ética – e se preocupa mais em controlar a individualidade alheia em prol de uma massificação de péssimas práticas disfarçadas de bons costumes. Enquanto problemas concretos se acumulam, secundarizados e sem resolução, o grito agudo do pânico social preenche lacunas com respostas rasas e reducionistas. Ressona alto, é verdade, mas se dissolve no esquecimento na mesma medida em que faz barulho.

Talvez por isso seja tão fácil reciclar slogans que, em uma sociedade que se diz democrática, há tempos deveriam estar enterrados. O autoritarismo de quem quer limar o discurso alheio na porrada é um filho legítimo de um período obscuro do Brasil. Durante a ditadura militar, aparatos de repressão buscavam eliminar as dissidências – fossem elas políticas, sexuais ou sociais – justamente ao defender a tal da moral e dos bons costumes, termos tão abstratos quanto arbitrários no modo em que são utilizados.

Instituições de séculos atrás e figuras de autoridade detentoras de recursos financeiros e poder estão, a todo o momento, tentando disseminar a ideia de que a maior preocupação que possuem é o bem-estar coletivo. Enquanto alistam forças para atuar na linha de frente do ódio e do vigilantismo, trabalham também na sofisticada engrenagem que tem o objetivo de manter o status quo intacto. Artistas são utilizados como bodes expiatórios e taxados de criminosos e canalhas por aqueles que verdadeiramente merecem tais adjetivos.

O mal é tido como uma entidade oculta em manifestações artísticas que descortinam camadas diversas do comportamento humano que, na realidade, merecem análises atentas. Em uma caça maniqueísta que precisa encontrar culpados imediatos, contextualizações são atropeladas por conclusões apressadas e literais que não alcançam subtextos. O deboche, o escracho, a diferença, o desvio ou a crítica, porém, permanecem assinalados – e quem apertar bem os olhos poderá enxergar que estamos todos enrolados na manta de um rei que está nu.