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Hugh Hefner: representante do patriarcado, não da “revolução sexual”

Hugh Hefner morreu. Um ícone de nossa era.

Ícone do ódio às mulheres e da naturalização do pornô e da cafetinagem, como disse a pesquisadora feminista Gail Dines, especialista em pornografia. Segundo a estudiosa, ele chamava mulheres de “dogs” e comoditizou, no jogo capitalista, o corpo feminino. Por fim, acoplou tudo isso à intelectuais, para tornar cool a ideia do império que estava a construir em cima de noções bem misóginas do que é ser mulher.

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Hefner e mulheres que utilizava de acessório para pagar de poderoso

Hefner morreu de causas naturais aos 91 anos, na noite da última quarta-feira, 27 de setembro. Ele estava na Playboy Mansion West, casa em que vivia em Los Angeles (EUA). Desde então, o assunto está sendo abordado em diversos veículos de mídia. Claro, mais um pedaço do século XX se foi em uma figura histórica. É inegável a influência cultural do empresário: a Playboy não é apenas uma revista, é também uma ideia, um estilo de vida. Mas, espera aí… Empresário?

Em um artigo escrito em 2006 sobre os 80 anos de Hefner, Dines e Robert Jensen apontaram que ele é, na verdade, um dos cafetões mais famosos de que se tem notícia. Ele não apenas ajudou a naturalizar a venda de corpos de mulheres, como construiu a própria riqueza em cima dessa venda. E ainda conseguiu ser visto como um representante da “revolução sexual”, mesmo propagando um conceito de liberdade que se relaciona com o “acesso à sexualidade feminina baseado nas necessidades e regras masculinas”, nas palavras dos autores citados acima.

Como disse a feminista Claire Heuchan, que já teve texto traduzido por aqui, “Hefner não era, como alguns clamam, um pioneiro da revolução sexual. Não tem nada revolucionário em homens explorando mulheres para a própria gratificação sexual ou ganho financeiro – isso vem acontecendo por centenas de anos, e se chama patriarcado”. Ouch. Ela acrescentou ainda que, embora ele esteja sendo celebrado como um ícone cultural que mudou o mundo, as mudanças não foram boas: ele ajudou a normalizar a objetificação feminina e pavimentou o caminho para uma cultura pornográfica.

Para quem quiser argumentar dizendo que a Playboy não é pornografia, pense no seguinte: a revista – e a empresa – alimentaram (e ainda alimentam) uma imagem pornificada da mulher que reverberou culturalmente no imaginário coletivo. E a Playboy possui braços em inúmeras áreas, de canais pornográficos a licenciamento de produtos de diversos tipos. Essa atuação múltipla envolvia (e envolve) não apenas uma ~atmosfera pornificada~ mas também pornografia de fato – o que com certeza ajudou na disseminação da atmosfera glamourizada que envolve a marca, inclusive.

O problema é que, de acordo com relatos de várias “coelhinhas”, esse glamour é uma mentira – como sempre costuma ser. Como dizem por aí, marketing é a alma do negócio, não é mesmo? Existem diversas acusações contra Hefner e contra homens que estavam ao redor dele, que envolvem assédios, abusos, agressões e até estupros – o que, infelizmente, não é tão surpreendente assim. O que esperar de pessoas que enxergam mulher apenas como um produto lucrativo ou um brinquedo sexual?

Em 1963, a feminista Gloria Steinem se infiltrou em um Playboy Club que era parte da cadeia de casas noturnas e “entretenimento” da empresa e escreveu o icônico artigo “Eu fui uma coelhinha da Playboy”. Aqui neste blog, de mesmo nome do texto, é possível ler a tradução em português, bem como a repercussão gerada pela publicação de Steinem, que não apenas foi uma das primeiras pessoas a desnudar o falso glamour que era divulgado, como revelou questões trabalhistas problemáticas dentro da Playboy. A gama de problemas encontrada envolvia também invasão da vida pessoal e controle de saúde, sexualidade e aparência das trabalhadoras (as mulheres que trabalhavam nos clubes também apareciam nas revistas e etc, leiam para entender melhor).

Em 1970, Hefner disse que as feministas eram “inimigas naturais” da Playboy e ordenou que fosse escrito uma reportagem “devastadora” que destruísse as militantes. Várias foram as charges publicadas na revista ridicularizando quem se opunha aos ideais do magnata. A escritora feminista Andrea Dworkin, por exemplo, foi perseguida pela publicação diversas vezes. Por isso, é preciso observar atentamente o conteúdo do que homens assim tentam vilanizar para não acabar comprando e endossando a narrativa que eles querem empurrar como certa.

No mesmo ano, a escritora e jornalista feminista Susan Brownmiller disse a Hefner, em um programa de televisão, que o papel que a Playboy dava às mulheres era degradante por colocá-las apenas como objetos sexuais – e não seres humanas completas. E, então, quando perguntou se um dia ele iria aparecer com um rabinho de coelho na bunda, Hefner apenas sorriu e balançou a cabeça.

Claro que não.

Ainda assim, Hefner tentava disfarçar a própria misoginia afirmando apoiar a luta feminina. No entanto, o apoio dele se restringia a questões que o beneficiasse sexualmente, discurso batido que até hoje é fortemente veiculado por aí. Vivemos em uma sociedade que fala muito de sexo, mas sob um viés altamente heteronormativo e patriarcal. Sexo de verdade precisa envolver prazer e respeito mútuo – ideia aparentemente simples, mas que balança muitas estruturas do status quo que buscam dominar e controlar mulheres.

Por isso, considero preocupante que Hefner seja idolatrado e apontado como um herói a partir de um ideal deturpado, infantilizado (c’mon, mulheres gostosas com roupinha de coelho?) e violento do que é ter sucesso. Considero preocupante também que muita gente, ainda hoje, confunda senso crítico com moralismo. Discutir a mercantilização de corpos femininos e construções hegemônicas de sexualidade é importante. Estamos falando de mercados bilionários que moldam subjetividades, exploram pessoas (principalmente mulheres) e lucram bastante, sem sequer repassar isso de maneira justa a quem está na “linha de frente”.

Com a partida de Hefner sinalizando um marco, me pego pensando em como seŕá daqui pra frente. Dines e David Levy escreveram em um artigo sobre como o recente declínio do império Playboy não é uma vitória feminista (lembram quando a empresa estava tentando convencer mulheres a posar de graça?), mas da pornografia mainstream. Eles apontaram, inclusive, que o pornô, cada vez mais acessível, é também cada vez mais agressivo.

E, convenhamos: ninguém fala abertamente sobre sexo, como já lamentei acima, nem sobre os próprios desejos, medos, dúvidas ou anseios. Não se pode discutir esse tema em escolas, não existem programas suficientes que orientem a juventude nesse sentido, fundamentalismos ganham mais e mais espaços… As pessoas estão soterradas em desinformação.

Um pedacinho do patriarcado como conhecemos se foi, mas a tecnologia do século XXI está a todo vapor, criando realidades novas que continuam a carregar valores muito antigos. O que vem agora?