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Aborto no Brasil: já passou da hora do assunto ser levado a sério

Leia matéria que a Agência Brasil publicou nesta terça-feira:

Quadrilhas envolvidas com abortos chegavam a lucrar R$ 300 mil por mês

A Polícia Civil do Rio de Janeiro desarticulou hoje (14) sete organizações criminosas envolvidas com a prática ilegal de abortos na cidade. Uma delas chegava a lucrar até R$ 300 mil por mês. Segundo o delegado Felipe Bittencourt, da Corregedoria da Polícia Civil, os grupos eram independentes, mas a colaboração entre eles evitava a competição.

Apesar de não terem comando unificado, os grupos respeitavam os territórios de atuação definidos para cada um. Alguns dividiam os bairros de Bonsucesso, Rocha e Tijuca, na zona norte. Outros dois atuavam em Campo Grande e Guadalupe, na zona oeste. Os demais comandavam a prática em Copacabana e Botafogo, na zona sul. Conforme o delegado, 75 pessoas acusadas de integrar as associações criminosas tiveram prisão preventiva decretada pela Justiça.

“O histórico dessas pessoas demonstra que ela atuavam há muitos anos. Alguns haviam sido indiciados na década de 60. É uma história de crimes e de impunidade. Deflagramos hoje uma ação que desmantela vários crimes. A legislação é muito benevolente. Podemos quase afirmar que, pelo retorno financeiro, vale a pena cometer esse crime”, salientou o chefe da polícia fluminense, Fernando Veloso.

Até as 11h30 de hoje, 56 mandados de prisão tinham sido cumpridos. Destes, cinco eram de pessoas que já estavam presas. Entre os presos, estão médicos, policiais civis e militares, advogados e um sargento do Exército.

As clínicas ilegais mantidas pelas organizações criminosas faziam abortos em mulheres com até sete meses de gestação. Os preços variavam de R$ 1 mil (para maiores de 18 anos e em estágio inicial de gravidez) até R$ 7,5 mil (para adolescentes com 23 a 26 semanas de gestação).

O processo conta com depoimentos de 37 mulheres submetidas a procedimentos abortivos. Elas não foram indiciadas pelo crime de aborto, mas poderão responder criminalmente, caso esse seja o entendimento do Judiciário.

Cada grupo tinha um chefe e contava com responsáveis pelas mais variadas tarefas, como procedimento cirúrgico, auxílio de enfermagem, agenciamento das gestantes, segurança do local, medicamentos e transporte das usuárias do serviço clandestino.

Os servidores públicos investigados, entre eles oito policiais civis e quatro militares, seriam responsáveis por tarefas de segurança,  proteção da associação criminosa, administração das clínicas e transporte das gestantes. Além disso, recebiam dinheiro para evitar a repressão ou investigação dos casos.

Entre os crimes apurados, estão aborto (pena de um a quatro anos de prisão), corrupção passiva (dois a 12 anos), exercício ilegal da medicina (seis meses a dois anos), associação para o tráfico (três a dez anos) e associação criminosa armada (um a três anos).

Entre os dez médicos denunciados à Justiça, alguns têm anotações muito antigas por aborto. Um dos acusados, por exemplo, havia sido autuado pela prática em 1962. Uma médica, com processos desde 2001, é suspeita de mais de mil procedimentos.

Secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame informou que a operação de hoje deve servir para a rediscussão da legislação relativa ao aborto. “Acho o momento muito oportuno para as coisas sereem discutidas. Não vamos dizer o que a lei precisa fazer. Entretanto, a sociedade tem de conhecer o efeito que uma pessoa sofre ao praticar um aborto. É um problema nacional. Temos de acabar com o tabu e recolocar a discussão à mesa”, acrescentou Beltrame.

Acho que, com essa notícia, podemos entender muita coisa. Como funciona todo o processo por trás de um aborto ilegal feito em clínica no Brasil (aliás, no momento que escrevo esse post, passa uma reportagem na televisão falando sobre a operação, frisando as más condições de higiene dessas clínicas). E como manter esse processo na ilegalidade é lucrativo. Tanto que existe toda uma rede de profissionais envolvida, que ganha em cima da falta de amparo que as mulheres sofrem: médicos, policiais, advogados e etc. Vejam bem: UMA clínica chegava a lucrar até R$ 300 mil por mês, o que gera mais de R$ 3 milhões por ano. Sendo cada procedimento entre R$ 1 mil e R$ 7,5 mil, vamos pegar um valor médio de R$ 3500: esse valor significa mais de 80 abortos por mês em, repito, UMA CLÍNICA. Nessa operação, foram desarticuladas SETE organizações, mas claro que existem muitas outras espalhadas pelo país.  Ou seja, os números são muito, muito mais altos do que estes aqui. Então, olha, vamos combinar que não são apenas questões morais que emperram o debate, né!?

Em maio deste ano, o aborto legal entrou para lista de procedimentos do SUS. Isso facilitaria o processo, definindo exatamente qual seria o repasse do governo para os hospitais, entre outras medidas. Porém, pudemos comemorar este avanço por muito pouco tempo: uma semana depois, a portaria que previa a medida foi revogada. O Ministério da Saúde minimizou a questão (que não se sabe se foi causada por pressão de bancada evangélica ou a alegada “falha técnica”), dizendo que era apenas uma mudança burocrática e que o SUS já faz a interrupção da gravidez em casos permitidos pela legislação. No entanto, parte da luta feminista é justamente para colocar a burocracia a favor da mulher, oras. Quanto mais definição e amparo, sem deixar margem para interpretações subjetivas da situação por parte de profissionais que misturam crenças e opiniões onde deveriam ser neutros, mais avanço. Se você quer saber em quais situações o aborto é permitido ou tem outras dúvidas, clique aqui. Existem estimativas de que 1 milhão de abortos aconteçam por ano no Brasil. 

As mortes recentes veiculadas pela mídia de mulheres que foram interromper a gravidez em clínicas clandestinas (leia aqui e aqui), estão trazendo o debate à tona novamente e desmistificam a frase que diz que só mulher pobre morre por conta de aborto. Na verdade, nenhuma mulher está segura. Quem não tem dinheiro está ainda mais vulnerável e exposta à riscos, claro, mas as que têm condições de ir para uma clínica podem se deparar com falsos médicos, entre outros tipos de golpistas, e ambientes sujos. É triste a questão do aborto não ser tratada com a devida urgência.

(Leia: Óbitos em clínicas clandestinas de aborto estimulam debate sobre o tema)

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É preciso acabar com o mito de que facilitar o aborto é “liberar geral, uhu, festa do aborto”. Esse é um procedimento cirúrgico que envolve não apenas o corpo, mas o psicológico da mulher (embora existam as que não sintam culpa ou não sofram em relação ao assunto. Esse é um outro ponto importante também: mesmo quem é a favor do aborto ás vezes espera que as mulheres estejam sempre chorosas e arrependidas, quase como numa espécie de pedido eterno de redenção pelo ato). Aborto é questão de saúde pública. Não importa o que eu faria na minha vida pessoal, a sua religião ou o que o seu vizinho acha moralmente correto. O que importa é a escolha da mulher. Sim, o uso do preservativo deve ser estimulado, educação, planejamento familiar, etcetcetcetc (lembrando que nenhum desses itens é dever apenas da mulher, mesmo que muitos homens se isentem de responsabilidades). No entanto, mulheres engravidam e muitas vezes não podem (ou querem) ter filhos.

E outra, o contexto atual é: muitas mulheres abortam e morrem. De acordo com o DataSUS, o aborto inseguro é a quinta causa de morte materna no Brasil. Como não se importar com a vida dessas mulheres é ser a favor da vida? Como não é muito importante para a sociedade como um todo preservar a vida dessas mulheres?

Clique aqui para ver comparativo sobre as possibilidades legais de aborto em diversos países do mundo (em inglês). Muitos dos países que as pessoas adoram apontar como ~avançados~ e ~desenvolvidos~ estão com as barrinhas completas. Vamos torcer para que não demore para o Brasil preencher todas as barrinhas também.

Clique aqui para ter acesso a guia com 139 perguntas sobre aborto.

Clique aqui para ler “A questão do aborto”.

Clandestinas é um documentário sobre aborto no Brasil onde mulheres contam sua experiência interrompendo uma gravidez. Atrizes interpretam relatos reais.