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Hugh Hefner: representante do patriarcado, não da “revolução sexual”

Hugh Hefner morreu. Um ícone de nossa era.

Ícone do ódio às mulheres e da naturalização do pornô e da cafetinagem, como disse a pesquisadora feminista Gail Dines, especialista em pornografia. Segundo a estudiosa, ele chamava mulheres de “dogs” e comoditizou, no jogo capitalista, o corpo feminino. Por fim, acoplou tudo isso à intelectuais, para tornar cool a ideia do império que estava a construir em cima de noções bem misóginas do que é ser mulher.

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Hefner e mulheres que utilizava de acessório para pagar de poderoso

Hefner morreu de causas naturais aos 91 anos, na noite da última quarta-feira, 27 de setembro. Ele estava na Playboy Mansion West, casa em que vivia em Los Angeles (EUA). Desde então, o assunto está sendo abordado em diversos veículos de mídia. Claro, mais um pedaço do século XX se foi em uma figura histórica. É inegável a influência cultural do empresário: a Playboy não é apenas uma revista, é também uma ideia, um estilo de vida. Mas, espera aí… Empresário?

Em um artigo escrito em 2006 sobre os 80 anos de Hefner, Dines e Robert Jensen apontaram que ele é, na verdade, um dos cafetões mais famosos de que se tem notícia. Ele não apenas ajudou a naturalizar a venda de corpos de mulheres, como construiu a própria riqueza em cima dessa venda. E ainda conseguiu ser visto como um representante da “revolução sexual”, mesmo propagando um conceito de liberdade que se relaciona com o “acesso à sexualidade feminina baseado nas necessidades e regras masculinas”, nas palavras dos autores citados acima.

Como disse a feminista Claire Heuchan, que já teve texto traduzido por aqui, “Hefner não era, como alguns clamam, um pioneiro da revolução sexual. Não tem nada revolucionário em homens explorando mulheres para a própria gratificação sexual ou ganho financeiro – isso vem acontecendo por centenas de anos, e se chama patriarcado”. Ouch. Ela acrescentou ainda que, embora ele esteja sendo celebrado como um ícone cultural que mudou o mundo, as mudanças não foram boas: ele ajudou a normalizar a objetificação feminina e pavimentou o caminho para uma cultura pornográfica.

Para quem quiser argumentar dizendo que a Playboy não é pornografia, pense no seguinte: a revista – e a empresa – alimentaram (e ainda alimentam) uma imagem pornificada da mulher que reverberou culturalmente no imaginário coletivo. E a Playboy possui braços em inúmeras áreas, de canais pornográficos a licenciamento de produtos de diversos tipos. Essa atuação múltipla envolvia (e envolve) não apenas uma ~atmosfera pornificada~ mas também pornografia de fato – o que com certeza ajudou na disseminação da atmosfera glamourizada que envolve a marca, inclusive.

O problema é que, de acordo com relatos de várias “coelhinhas”, esse glamour é uma mentira – como sempre costuma ser. Como dizem por aí, marketing é a alma do negócio, não é mesmo? Existem diversas acusações contra Hefner e contra homens que estavam ao redor dele, que envolvem assédios, abusos, agressões e até estupros – o que, infelizmente, não é tão surpreendente assim. O que esperar de pessoas que enxergam mulher apenas como um produto lucrativo ou um brinquedo sexual?

Em 1963, a feminista Gloria Steinem se infiltrou em um Playboy Club que era parte da cadeia de casas noturnas e “entretenimento” da empresa e escreveu o icônico artigo “Eu fui uma coelhinha da Playboy”. Aqui neste blog, de mesmo nome do texto, é possível ler a tradução em português, bem como a repercussão gerada pela publicação de Steinem, que não apenas foi uma das primeiras pessoas a desnudar o falso glamour que era divulgado, como revelou questões trabalhistas problemáticas dentro da Playboy. A gama de problemas encontrada envolvia também invasão da vida pessoal e controle de saúde, sexualidade e aparência das trabalhadoras (as mulheres que trabalhavam nos clubes também apareciam nas revistas e etc, leiam para entender melhor).

Em 1970, Hefner disse que as feministas eram “inimigas naturais” da Playboy e ordenou que fosse escrito uma reportagem “devastadora” que destruísse as militantes. Várias foram as charges publicadas na revista ridicularizando quem se opunha aos ideais do magnata. A escritora feminista Andrea Dworkin, por exemplo, foi perseguida pela publicação diversas vezes. Por isso, é preciso observar atentamente o conteúdo do que homens assim tentam vilanizar para não acabar comprando e endossando a narrativa que eles querem empurrar como certa.

No mesmo ano, a escritora e jornalista feminista Susan Brownmiller disse a Hefner, em um programa de televisão, que o papel que a Playboy dava às mulheres era degradante por colocá-las apenas como objetos sexuais – e não seres humanas completas. E, então, quando perguntou se um dia ele iria aparecer com um rabinho de coelho na bunda, Hefner apenas sorriu e balançou a cabeça.

Claro que não.

Ainda assim, Hefner tentava disfarçar a própria misoginia afirmando apoiar a luta feminina. No entanto, o apoio dele se restringia a questões que o beneficiasse sexualmente, discurso batido que até hoje é fortemente veiculado por aí. Vivemos em uma sociedade que fala muito de sexo, mas sob um viés altamente heteronormativo e patriarcal. Sexo de verdade precisa envolver prazer e respeito mútuo – ideia aparentemente simples, mas que balança muitas estruturas do status quo que buscam dominar e controlar mulheres.

Por isso, considero preocupante que Hefner seja idolatrado e apontado como um herói a partir de um ideal deturpado, infantilizado (c’mon, mulheres gostosas com roupinha de coelho?) e violento do que é ter sucesso. Considero preocupante também que muita gente, ainda hoje, confunda senso crítico com moralismo. Discutir a mercantilização de corpos femininos e construções hegemônicas de sexualidade é importante. Estamos falando de mercados bilionários que moldam subjetividades, exploram pessoas (principalmente mulheres) e lucram bastante, sem sequer repassar isso de maneira justa a quem está na “linha de frente”.

Com a partida de Hefner sinalizando um marco, me pego pensando em como seŕá daqui pra frente. Dines e David Levy escreveram em um artigo sobre como o recente declínio do império Playboy não é uma vitória feminista (lembram quando a empresa estava tentando convencer mulheres a posar de graça?), mas da pornografia mainstream. Eles apontaram, inclusive, que o pornô, cada vez mais acessível, é também cada vez mais agressivo.

E, convenhamos: ninguém fala abertamente sobre sexo, como já lamentei acima, nem sobre os próprios desejos, medos, dúvidas ou anseios. Não se pode discutir esse tema em escolas, não existem programas suficientes que orientem a juventude nesse sentido, fundamentalismos ganham mais e mais espaços… As pessoas estão soterradas em desinformação.

Um pedacinho do patriarcado como conhecemos se foi, mas a tecnologia do século XXI está a todo vapor, criando realidades novas que continuam a carregar valores muito antigos. O que vem agora?

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Por uma sensibilidade que seja mais do que mera ferramenta estética

Ser mulher não é fácil, mesmo em meios alternativos. Assim como muita gente, sempre enxerguei cenários independentes como mais do que um lugar para se estar quando não se consegue fazer parte do mainstream. O considerado alternativo é – ou deveria ser – uma construção que visa peitar a hegemonia de discursos que se baseiam primordialmente em lucro excessivo, padrões impostos e o mito do sucesso individual.

Zines, discos gravados em estúdios caseiros, composições que contestam valores negativos vigentes, blogs, editoras pequenas, shows organizados por amigos ou o simples fato de explorar uma estética visual ou sonora específica porque se identifica e acha interessante constituem maneiras de não apenas fazer valer a própria voz, mas também de tentar orientar o mundo atual para um novo rumo.

Faça-você-mesmo, coletivize, expanda, integre – toda e qualquer pessoa é uma enorme potência.

Porém, estamos inseridos em uma realidade machista, racista, misógina, homofóbica e tudo mais. E isso acaba sendo reproduzido mesmo em ambientes que estão dispostos – pelo menos na teoria – a eliminar discriminações e violências. Daí o que acaba sendo criado pode funcionar mais como uma máscara do que como uma proposta real de ruptura com preconceitos e modelos ultrapassados. Palavras de ordem são esvaziadas em prol de marketing pessoal.

Claro que estou, para fins de entendimento, reduzindo e polarizando questões que são complexas. Na vida real, não é tão fácil assim traçar a linha entre quem está de um lado “bom” ou não, até porque discutir o que se passa em meios alternativos é ir para além de maniqueísmos. Qualquer pessoa pode fazer ou falar merda um dia, somos todos humanos – e a humanidade está fadada à imperfeição. No entanto, existem fatores que devem ser observados: vacilos isolados (desde que não extremos, claro) são coisas bem diferentes da escrotidão como modus operandi.

Muitos homens, infelizmente, repetem constantemente o modo de ser da masculinidade hegemônica em espaços independentes. Construir e somar vira uma simples ideia bonita que, na prática, é substituída por dominação e apropriação – das causas alheias, da força de trabalho alheia, do corpo alheio, do sentimento alheio, que seja. E ao mesmo tempo em que muitos deles agem sem cuidado com o outro, alimentam uma suposta imagem de diferentões e preocupados com causas sociais que só serve para benefício próprio – e também como escudo contra críticas e denúncias.

Certa vez, a artista londrina Polly Nor – que faz ilustrações incríveis, aliás, e quem acompanha o blog já deve ter percebido que sou fã – postou o seguinte comentário irônico no Twitter:

“Ele é um cara muito legal, é apenas meio merdão com as garotas” = Meu colega é ruim com outros seres humanos. Mas só com mulheres. Então quem liga? Eu não.

É exatamente assim que funciona. E é exatamente o que não aguentamos mais.

Mulheres não querem ser objetos, a população LGBTQI não quer ser alívio cômico e pessoas negras não querem ser invisíveis e excluídas. Portanto, é muito importante que artistas tenham em mente que a sensibilidade deve ser mais do que uma ferramenta estética. Mais do que um modo de emocionar, cativar e criar identificação. Para que haja verdade no que se diz e no que se faz, é preciso ser, de fato, sensível. A pluralidade existe, e os meios independentes precisam abraçá-la de forma realmente humana, e não com a mentalidade de usar e descartar – que é o que já acontece, de maneira geral, em diferentes situações.

Contudo, minha concepção de ~sensível~ não envolve andar de roupas brancas em um campo verdejante e sorrindo para os pássaros. Ou simplesmente falar de energias, vibes e amor. O que quero dizer é que é preciso, justamente, escapar desse clichê raso. Valorizar o trabalho alheio, tratar bem quem integra sua comunidade, desmistificar justificativas pessoais que colaborem com um estado contínuo de vacilação, falar sobre sentimentos reais – sejam eles tristes ou felizes – e se colocar em uma posição de escuta e troca de ideias já é um bom começo.

Felizmente, cada vez mais mulheres – e minorias em geral – estão tomando as rédeas da criação artística e ganhando espaço. Ou melhor, conquistando na marra mesmo, à custa de muito suor. Ainda há muito a ser trilhado, obtido e problematizado (de acordo com o recorte que se escolhe analisar, novas questões importantes emergem, em um árduo caminho sem fim), e é essencial estar sempre em movimento, desconstruindo e construindo, para que o próximo passo não seja dado em um buraco sem chão – ou no piso de sempre.

Para finalizar este post, deixo a dica desse vídeo maravilhoso com a cantora, poeta e mil outras coisas, Tatiana Nascimento. Ele foca mais em literatura, mas com certeza vale pra outras áreas também. Ela é uma artista brasiliense, negra e lésbica, que já foi de bandas de hardcore, é doutora em literatura, cuida da Padê Editorial, por onde se autopublicou e publica pessoas LGBTQI, criou a mostra Palavra Preta, que coloca autoras e compositoras negras em evidência, entre muitas outras atividades. Tive a honra de trabalhar com ela em alguns projetos esse ano e foi inspirador. Como afirmou na filmagem, é preciso essa “(…) coisa de ter uma política de anúncio de mundo novo que seja junta, colada, com a de denuncismo das estruturas velhas, que precisam ser derrubadas”. Avante!

Aproveitem também para conhecer mais trabalhos atuais de minas do cenário independente brasileiro. Tem muita coisa boa rolando por aí. Deixo aqui umas dicas de links que possuem várias referências legais de serem aprofundadas e pesquisadas individualmente:

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“Pink”: o novo cinema da Índia traz também novas ideias

Dia desses fui a uma mostra maravilhosa que rolou no Centro Cultural Branco do Brasil (CCBB) aqui de Brasília: a “Novo Cinema Indiano”, que passou também por outras cidades – mas infelizmente não está mais em cartaz. Como o nome diz, o objetivo foi evidenciar trabalhos recentes da Índia (os filmes da exibição foram realizados a partir de 2013) e que estejam, em grande maioria, fora do circuito de Bollywood.

O país é, com certeza, bastante rico e diverso em línguas, regiões, religiões e costumes, e a mostra captou isso muito bem ao dar espaço não apenas para produções de diferentes localidades da Índia, como também ao selecionar obras que abordam conflitos contemporâneos marcantes – e importantes.

Dentre os filmes que tive a oportunidade de assistir, quero falar especificamente sobre um que mexeu bastante comigo – e que tem muito a ver com os temas tratados aqui no blog: Pink (2016), dirigido por Aniruddha Roy Chowdhury e escrito por Ritesh Shah. Ele é uma das exceções da programação, por ser, na verdade, bem bollywoodiano. No entanto, é uma espécie de subversão do estilo: como aponta uma matéria da BBC (em inglês), Pink desafia o discurso padrão dessa indústria cinematográfica, que romantiza coisas como ameaça de estupro e stalking, por exemplo, como se fizessem parte dos ritos amorosos – nada muito diferente da tradicional Hollywood, rs.

Atenção: a partir daqui, contém spoilers.

O começo do filme mostra um carro cheio de homens com raiva – um deles com o rosto sangrando – e indo até a um hospital, entre lamúrias e xingamentos. Paralelamente, um táxi leva três amigas bastante apreensivas e nervosas para casa. A história envolve um grupo de garotas que, após um show de rock, vão tomar mais umas com uns rapazes semi-conhecidos. No entanto, o que era pra ser um pós-noite envolvendo diversão e alguns drinks, termina em confusão.

A cada nova cena, vai ficando claro que essa tensão inicial é, na verdade, um fio condutor que permeia toda a trama. Porém, aos poucos, o que aconteceu vai se tornando menos nebuloso: uma das moças machucou um dos rapazes, mas não se sabe ainda o porquê – embora seja possível notar que não houve uma briga justa entre as partes.

As amigas – Minal (Taapsee Pannu), Falak (Kirti Kulhari) e Andrea (Andrea Tariang) – são também colegas de apartamento e começam a sofrer, no dia a dia, as consequências dessa fatídica noite. Os caras tentam difamá-las o tempo inteiro, fazem ligações repletas de ameaças, as perseguem nas ruas (e chegam a sequestrar e abusar do principal alvo: Minal), intimidam e agridem o locador do apartamento delas, na tentativa de convencê-lo a mandá-las embora, entre várias outras coisas. Eles não querem nenhum tipo de conciliação e sim a propagação de um terrorismo – com ataques físicos e psicológicos – que os mantenha no topo de uma hierarquia de poder que foi ameaçada pela agressão de uma das jovens (e também pela rejeição que eles sofreram de todas elas).

Minal, a “agressora” de Rajveer (Angad Bedi), um playboyzinho filho de um influente político, se recusa a pedir desculpas pelo que fez: ao ser agarrada à força, acaba quebrando uma garrafa de vidro na cabeça dele para se defender e conseguir se soltar. Ela não considera que sua legítima defesa seja, de fato, uma agressão, e sim uma reação à violência iniciada por Rajveer, que não respeitou os limites impostos e utilizou força física e coação para forçá-la a ficar com ele.

Quando Minal, que é bastante forte e decidida, finalmente decide ir à polícia, o que começa a rolar exemplifica o porquê de muitas vítimas não terem coragem de realizar denúncias formais: a situação é tratada com extremo descaso e as moças são apontadas como as culpadas por terem “provocado” os rapazes. Fora a corrupção presente em todo lugar: por conta da influência familiar, Rajveer consegue realizar boletins de ocorrência com data adulterada bem como coloca panos quentes nas denúncias das jovens. O intuito final é fazer com que elas sejam incriminadas, e a desigualdade social somada ao machismo vai colaborar com que o foco dos dedos apontados mirem as vítimas, e não os agressores.

As amigas possuem um vizinho um tanto quanto estranho, que está sempre de butuca, acompanhando tudo. À medida que vai sendo revelado que ele é, na verdade, confiável, o filme vai mudando o tom. Enquanto a primeira metade é uma espécie de suspense urbano, a metade seguinte é um dramão de tribunal. O misterioso Deepak Sehgal (Amitabh Bachchan) não representa perigo: é apenas um homem doente, desencantado com a vida e prestes a perder a esposa. Porém, não consegue deixar de se envolver com o caso – e então é revelado que ele é também um advogado famoso e aposentado, que acaba decidindo fazer a defesa das moças. Uhu!

Não tem como negar que a obra tem uma vibe novelesca e melodramática em muitos instantes. Porém, considero isso uma qualidade: achei bom um tema tão importante ser tratado de modo tão acessível, descomplicado, quase esquemático. Pink fala sobre violência contra a mulher e coloca em debate a questão do consentimento, que é destrinchada de forma bastante didática (até demais, ás vezes, mas melhor pecar pelo excesso do que pela falta, nesse caso) durante o julgamento das moças.

No tribunal, as mulheres são acusadas de serem prostitutas que queriam se aproveitar financeiramente dos pobre rapazes, e são também, o tempo todo, acusadas de serem pobres – como se não ter dinheiro fosse crime! A acusação vasculha a vida inteira de cada uma delas, com o intuito de provar que possuem “cárater duvidoso”, e alega que “o aspecto do consentimento foi introduzido pela defesa porque está na moda hoje em dia”. A maior parte do tempo, a discussão gira ao redor das mentiras que os caras inventaram e dos supostos danos que eles sofreram. Tipo na vida real: é mais importante considerar não estragar o futuro de um agressor do que pensar no bem-estar de uma vítima e prevenir novos crimes.

O advogado de defesa dá umas vaciladas no começo, só pra deixar aquele clima de que tudo vai dar errado, mas depois engata e não para mais. Ele explica que mulheres são inferiorizadas o tempo inteiro apenas por serem mulheres, desmascara esquemas de corrupção, coloca em evidência como homens e mulheres que fazem as mesmas coisas – tipo beber, dançar ou sorrir – são vistos de formas diferentes e deixa bem claro que não é sempre não.

É bem emocionante porque é tipo um alívio. Vitórias – e justiça –  para essas questões ás vezes parecem ainda tão distantes…  Portanto, é gostoso enxergá-las pelo menos na ficção, para fins de inspiração, enquanto a gente vai transformando a realidade. E, querendo ou não, o cinema é também uma possível porta para transformações de realidades, não acham?

De acordo com uma das responsáveis pela mostra, Carina Bini, curadora, produtora e jornalista brasileira que já morou um tempão na Índia, um ponto importante para o sucesso da obra foi a escolha de Bachchan – conhecido também como “Big B” – para o papel de advogado de defesa. Considerado um ídolo nacional, o ator está desde os anos 70 nas telinhas e telonas do país, e ajudou a atrair vários espectadores para o cinema. Grande parte das falas mais impactantes que denunciam o machismo da sociedade indiana saem da boca dele, aliás.

Tal explicação me ajudou a ver de maneira mais positiva aspectos que poderiam ter sido interpretados de outra forma caso eu não estivesse ciente do contexto. Porque, assim, em um primeiro instante, chega a soar quase como mansplaining um filme dirigido e roteirizado por homens ter um outro homem falando pelas mulheres que elas precisam ser respeitadas.

No entanto, assistir uma figura admirada na Índia proferindo argumentações que desmontam o discurso machista e senso comum é impactante. E, sendo ele um advogado de defesa, fica mais coerente fazer isso (mas claro que, ainda assim, o cara é meio que colocado como um herói). Aliás, o cinema é ainda um território bastante masculino, como tantos outros. Será que um filme assim, mas feito e protagonizado por mulheres apenas, seria recebido da mesma forma? Vale uma reflexão. Essa resenha aqui (em inglês) do site Feminism in India discute um pouco essa questão e, a partir de uma ótica feminista, levanta alguns problemas existentes em Pink.

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Uma coisa interessante é que o filme trata de uma história que não envolve vítimas virginais e perfeitas. Mostrar mulheres jovens, que vivem sozinhas em um contexto urbano, trabalham e vão para festas talvez facilite a identificação de pessoas de outros países com a obra – e facilite também o entendimento geral de que violências acontecem em todos os lugares e são cometidas/sofridas por pessoas de diferentes recortes sociais.

E, como já falei antes por aqui, essa “mulher perfeita” (que nunca vai existir) em contraste com todas as outras (que são horríveis e usam roupas curtas e são vadias e merecem apanhar e falam demais e deveriam estar em casa lavando a louça) é uma invenção do machismo, seja ele individual ou institucional, para tentar culpar as vítimas pelas violências que sofrem. Gente, existem casos em que as pessoas conseguem arrumar desculpas para culpar até mesmo crianças que foram alvo de violência sexual, argh!

Outro aspecto interessante que é mostrado é o machismo enquanto um acontecimento coletivo. O universo individual respalda o institucional – e vice-versa – e, a partir disso, o senso de impunidade caminha junto com a inferiorização de quem se encontra fora da esfera do poder masculino. Mentiras, corrupção, agressões verbais, físicas e psicológicas: tudo se torna válido para manter o status quo. Porém, fica evidente também que a sede por vingança dos rapazes é bastante infantil e que a masculinidade é algo paradoxalmente forte, quando se pensa nos estragos que são causados por ela, mas bastante frágil, no sentido de identidade.

A sociedade indiana se organiza por um sistema de castas que expõe principalmente mulheres em um nível “inferior” à violência – mas todas estão sujeitas a sofrer algo (qualquer semelhança com nossa pátria amada não é mera coincidência). E, assim como na China, por exemplo, é estimulado o aborto seletivo de fetos do sexo feminino (nem sempre por “escolha”, li relatos envolvendo coação externa), o que ocasionou na diminuição da população de mulheres do país.

Por lá, acontecem muitos estupros, sejam eles individuais ou coletivos, mulheres são atacadas com ácido, existem problemas de exploração sexual e meninas são obrigadas a se casar com adultos, entre várias outras coisas horríveis. A sociedade brasileira adora apontar para essas questões com o intuito de reforçar a “incivilidade” de países que não sejam os Estados Unidos ou lugares famosos da Europa (que também possuem tretas, não se iludam). Até parece que estamos em uma situação assim tão diferente de vários locais que criticamos (e postamos notícias com comentários tipo “ohhh, que absurdo”), né? Então, no fim, sobra muita coisa pra pensar sobre.

Pink ganhou vários prêmios, foi exibido para a polícia do Rajastão, um dos maiores estados da Índia, com o intuito de sensibilizá-la sobre os direitos das mulheres, e foi também convidado para sessão especial na sede da ONU, em Nova York. Clique aqui e veja o catálogo da mostra “Novo Cinema Indiano” para saber mais sobre os outros filmes que foram exibidos.

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DEZ COISAS QUE NÃO CAUSAM ESTUPRO

O estupro é uma violência que possui dois lados. A sociedade trata a questão como um crime horrível, pelo menos na teoria e se a situação envolver uma “vítima perfeita”. No entanto, uma simples lida nos jornais diários mostra os inúmeros casos de crianças, adolescentes e mulheres sendo estupradas por familiares, amigos, desconhecidos, colegas de trabalho ou conhecidos da igreja, faculdade, balada, entre outros (pena que a abordagem no geral é tão sensacionalista e pouco profunda nas raízes da questão). Pessoas do sexo masculino são as que mais cometem esse tipo de agressão e pessoas do sexo feminino são as que mais sofrem – o que não impede que existam situações em que violências sexuais ocorram seguindo outro roteiro.

A discussão sobre o assunto acontece por vários meios, informalmente ou de modo organizado. Porém, muitos preconceitos e simplismos acabam sendo disseminados nesse debate, e questões importantes são deixadas de lado. Por isso, vou abordar aqui neste post as dez hipóteses mais estúpidas entre as que já li como as possíveis causas de estupro (mas existem muito mais), e propor uma conversa mais centrada na realidade: a culpa é sempre do estuprador. E ponto final.

1) Roupa curta não causa estupro

Isso é um consenso que feministas estão cansadas de repetir: a mulher tem o direito de usar a roupa que quiser. Pode ser um vestido rosa e curtinho, tipo o da Geisy Arruda, biquíni grande ou fio dental, burca, camiseta larga, shortinho, saia longa ou qualquer outro tipo de vestimenta. Achou o look feio, bonito, atraente, repulsivo, muito descolado ou super brega? Problema seu. Se você for homem, deixe esse espírito de predador sexual com pinceladas de crítico de moda no armário, porque roupa não justifica agressão. Se for mulher, não jogue pedras nas outras para provar o próprio valor ou achar que isso vai te proteger de alguma coisa (spoiler: não vai). E a tentativa de encontrar alguma desculpa que tire a culpa do estuprador e transfira para a roupa da vítima é uma forma de naturalizar não apenas o comportamento violento do homem, mas a ideia de que respeito é algo que a mulher deve “merecer” para ter. Sem contar que pessoas usando todos os tipos de roupa aqui citados já foram estupradas, o que mostra que o problema está muito além de qualquer vestimenta.

2) Bebidas ou drogas não causam estupro

Muita gente acha que uma mulher alcoolizada ou sob efeito de drogas “merece” ser estuprada. Aposto que, alguma vez na vida, você já ouviu alguém falar que “cu de bêbado não tem dono”, não é mesmo? Se as pessoas começassem a frequentar botecos e baladas com o intuito de buscar homens bêbados para serem empalados com cabos de vassoura, isso não seria uma violência terrível? No entanto, por que mulheres na mesma situação são estupradas com o aval da sociedade? Pessoas bebem ou consomem substâncias para se divertir, afogar as mágoas, por vício, depressão ou outros motivos, e você não precisa concordar com isso – dá para problematizar o uso de álcool e drogas por um ângulo de saúde pública ou do tráfico, por exemplo. Mas culpar uma vítima de estupro que estava entorpecida é, mais uma vez, defender o estuprador e a ideia de que homem é um animal descontrolado.

No mais, uma pessoa viciada precisa de ajuda, uma pessoa dormindo precisa de sono e uma pessoa com a consciência alterada não consegue responder por si mesma. De novo: desliga aí o suposto instinto predador, homem, porque sexo nessas condições não é ‘sexo fácil’, é estupro mesmo (caso sua empatia falhe ainda assim, aqui vai mais um incentivo: e é crime). E se você tem impulsos agressivos e violentos quando usa alguma coisa (ou não), procure ajuda (ou se tranque em casa, obrigada). Ah, vale lembrar que alguns caras colocam sedativos na bebida de mulheres ou as obrigam a inalar substâncias entorpecentes também – algo que, somado à violência sexual que sucede tais práticas, contabiliza uma dupla quebra de consentimento.

3) Ruas pouco movimentadas também não causam estupro

Vários fatores tornam a rua um ambiente inseguro para mulheres: homens, primeiramente, e coisas como iluminação ruim, falta de movimento e de segurança, demora no transporte público e outros itens que as colocam em situação de vulnerabilidade. Portanto, o ideal é que sejam elaboradas estratégias de educação e segurança pública que tornem a rua um espaço menos hostil para pessoas do sexo feminino. Tenho uma fantasia que envolve um toque de recolher para homens até que eles, enquanto categoria, se eduquem, rs. Mas tô brincando. Queria mesmo era um monte de poste, gente e ônibus pra todo lado e, principalmente, pessoas com a consciência humana aflorada.

E vale lembrar que a ideia do estupro como algo que só acontece em um local ermo, com um cara ameaçando a mulher com uma faca, não é necessariamente o retrato fiel da situação: muitos algozes estão dentro da casa da vítima ou nas redondezas, o que significa que ~tomar cuidado por onde se anda~ não é sempre o necessário para evitar uma agressão sexual (mas a gente toma mesmo assim).

4) A falta de uma ~bola de cristal~ não causa estupro

Algumas vítimas são cobradas por não terem se preparado para enfrentar a agressão sexual e escutam coisas como: “mas por que você não gritou?”, “devia ter saído correndo”, “não percebeu que ele ia chegar perto de você?”, “você não anda com spray de pimenta na bolsa?”, “por que ficou sozinha em casa com ele?”, “não sabia que isso podia acontecer?” e etc. Frases do tipo não fazem o tempo voltar, cada pessoa tem uma reação diferente quando está em perigo e existem casos em que não é muito seguro reagir a uma situação de violência (e não tem como saber, de antemão, quais). Não vamos cair, mais uma vez, na armadilha de culpar quem não tem culpa. No caso de estupros cometidos por amigos, parentes ou vizinhos, como a vítima iria descobrir as reais intenções de homens, teoricamente, “de confiança”? E se a violência for cometida por um estranho em um local inusitado ou em uma situação inesperada, como a vítima poderia adivinhar? E tem mais: nem sempre um estupro acontece de forma explícitamente agressiva. Cada caso é um caso – e o que todos possuem em comum é que a culpa não é da vítima. E não existe uma bola de cristal capaz de prever quando um estupro pode ocorrer.

5) Crise ou pobreza não causam estupro

Lembram quando o responsável pela Secretaria de Segurança de São Paulo, Mágino Alves Barbosa Filho, falou que a crise econômica tem a ver com estupro, porque o cara acaba ficando frustrado demais, sem emprego, bebendo e cometendo esse tipo de coisa?  Isso é uma estratégia que busca voltar o debate público para a criminalização de pessoas pobres, e não para a busca de soluções efetivas para os problemas que as mulheres enfrentam. Breaking news: filhinhos de papai que nunca precisaram sequer pensar em trabalho também estupram. Jovens universitários de classe média também estupram. Autoridades de governo também estupram. Cantores famosos também estupram. Filhos de donos de grupos de comunicação também estupram. Sabe o que não estupra? Ah, essa pergunta eu deixo no ar…

Essa relação entre pobreza e violência já foi desmistificada pelas ciências sociais há pelo menos três décadas. A socióloga feminista Helleieth Saffioti bem dizia que a violência contra a mulher é extremamente democrática porque ela atinge a todas as classes sociais.

Um homem que perde o emprego não é um estuprador em potencial. Homens numa sociedade patriarcal são estupradores em potencial porque têm uma certa legitimidade social (ainda que não legal) para violar os direitos de uma mulher, violar sua integridade e sua dignidade, seu corpo e sua vida. O que acontece em geral é que nas classes altas, a violência contra a mulher e o estupro são escondidos sob um manto de hipocrisia e dupla moral, onde não se registra, não se denuncia e não se expõe homens ricos, homens de altos cargos, frente a suas práticas violentas. Existe um silêncio e uma impunidade brutal com um professor universitário, um juiz, um político – o que não acontece com um pedreiro, um motorista de ônibus ou um trabalhador das classes populares, por exemplo.

Izabel Solyszko, feminista, assistente social, professora e doutora em Serviço Social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Leia mais opiniões de especialistas aqui. 

6) Funk não causa estupro

Esse é outro argumento que tenta colocar pessoas negras e pobres como as únicas culpadas por agressões sexuais. O objetivo, mais uma vez, não é o bem-estar de mulheres, mas calar a cultura que surge na periferia, encarcerar essas pessoas e criar uma diferenciação entre os “homens de bem e civilizados” e os estupradores. No entanto, a lista de astros do rock que cantam letras machistas de música – e/ou estupraram adolescentes e mulheres  – é grande, por exemplo. Não precisa nem ser um astro, o meio independente está cheio desses exemplares também. Música popular brasileira, música brega, sertanejo, música pop… Se a gente cavar, acha coisas problemáticas em todos os estilos. Não estou dizendo que não existam funks machistas e com letras horríveis, ou funkeiros com comportamentos questionáveis, só quero chamar atenção para o fato de que isso não é exclusividade do gênero – que, como todos os outros, tem partes ruins e boas.

Existe um machismo no funk que não é exclusivo no funk. É que sua linguagem é muito direta em relação a tudo. Não há floreio, a batida é reta, seja para falar de amor, sexo e violência. É sempre uma linguagem muito direta, o papo reto, como dizem. Com o machismo, não é diferente. E existe uma reação escancarada a ele. Com as mulheres falando de sua liberdade sexual, da escolha de parceiros, sobre o que fazer com o corpo e exercitar seu desejo. E elas abordam todos esses assuntos em um ambiente masculino, como é o da música popular — ressalta Adriana [Facina, antropóloga e professora da UFRJ], que destaca a ascensão das mulheres dentro do cenário funk nos últimos anos. Leia mais aqui.

7) Não é a falta de armamento que causa estupro

Mais uma vez, a pauta conservadora tenta cooptar os debates feministas. Alguém realmente acha que é assim que as coisas vão ser resolvidas? A jornalista Nana Queiroz pesquisou o assunto e constatou o que a gente já imaginava: essa não é a solução. Muitos estupradores são pessoas próximas, o fator “surpresa” dos ataques dificulta a ação, mulheres são socializadas para serem mais passivas e, quando em ambientes violentos, assimilam aquela situação como normal, entre vários outros fatores. Leia a matéria aqui.

Uma sociedade toda armada mas carregando os mesmos valores de sempre vai resultar em um constante tiroteio, gente. Só isso. Antes de qualquer coisa, temos que começar grandes campanhas nacionais para discutir sobre papeis de gênero e afins. E, de acordo com a jornalista, “a maioria dos casos de estupro à brasileira não é fruto de problemas de segurança pública, mas de uma cultura machista que prega um poder do homem sobre a mulher. O crime de estupro tem uma característica no Brasil: a cifra negra. A expressão ‘cifra negra’ significa que um número muito pequeno de ocorrências de um determinado crime chega ao conhecimento das autoridades. Deste já pequeno número, uma ínfima parcela chega ao conhecimento do judiciário, e uma menor ainda resulta em condenações”.

8) ~Excesso de libido~ masculina não causa estupro

Não é o ~excesso de desejo~ masculino que faz com que as mulheres sejam estupradas (aliás, engraçado como são as feministas as que mais batem na tecla de que os homens não são “animais irracionais” e as mais acusadas de vê-los como tais). A sexualidade do ser humano é um terreno complexo e envolve mais do que a mera vontade de transar. Existe toda uma construção de ideias anterior ao ato sexual – e à violência sexual também – que faz com que o sexo seja algo que vai muito além dos órgãos genitais. Portanto, propostas que envolvem a castração química, por exemplo, vindas de pessoas que querem impedir que a sociedade discuta e debata questões de gênero, ainda por cima, estão muito mais perto de algum tipo de fetiche com violência e tortura do que de empatia com vítimas de estupro.

Em uma reportagem do Uol, o psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC, afirma que o termo “castração química” é, inclusive, mentiroso. O que ocorre, na realidade, é uma diminuição de impulsos sexuais. Porém, o interesse continua. “Em casos de estupradores não é apenas uma questão orgânica que importa, o problema também é ‘intelectual’. É claro que a castração não cura, não transforma a ideologia. Mesmo se não tiver ereção, o agressor pode praticar violência sexual de outras maneiras”. Leia a matéria completa aqui 

9) Vida sexual ativa não causa (nem justifica) estupro

Vamos deixar uma coisa bem clara: sexo é o encontro de corpos que se desejam mutuamente. Se não existe consentimento de alguma parte, é estupro. Mesmo que esses corpos já tenham se desejado mutuamente em alguma ocasião anterior, é preciso que o acordo seja reafirmado a cada novo encontro. E se esses corpos já estiveram com outros corpos, não significa que vão querer estar com todo mundo que aparecer pela frente. Tem homem que acha que mulher é igual máquina de refrigerante: se ela já transou com ele ou com outras pessoas alguma vez na vida, ele tem direito a refil automático. Não é assim mesmo. Sexo não é uma obrigação, e sim uma escolha autônoma.

Tem gente que diz coisas tipo “ah, mas ela nem era virgem” e eu sempre fico meio chocada, me perguntando em que século pessoas assim vivem. Vasculhar o passado sexual de vítimas de estupro é reafirmar o corpo da mulher como público e violável. Essa imposição histórica não é natural e, por isso, a luta que busca construir a equidade de gênero e destruir a misoginia (que tem bases profundas na inferiorização do corpo do sexo feminino) é fundamental. E tem mais: mulheres não dizem não querendo dizer sim. Não é não, e não importa o que elas já fizeram antes na cama (ou no chão, no sofá, na barraca de camping ou na areia).

10) Estupro não tem nenhuma justificativa aceitável, na verdade

Falamos em ~construção social~ com o intuito de não essencializar comportamentos ruins, porque acreditamos na possibilidade de humanidade em vocês, homens (algo que, infelizmente, não parece recíproco em muitos momentos). Logo, não acreditamos que um rapaz nasça automaticamente querendo fazer mal às mulheres e sim que ele cresce absorvendo mensagens diversas — da religião à pornografia, passando por esferas como arte, medicina, música, ambiente de trabalho e outros — onde uma hierarquia sexual existe e ele precisa reforçar a própria masculinidade, bem como estreitar laços com outros caras e demarcar seu papel de ‘poderoso’ (no âmbito do controle do espaço público e dos corpos femininos pelo menos) por meio de práticas que inferiorizem e subjuguem o sexo feminino. Por isso, nós, mulheres, precisamos urgentemente do reconhecimento de que somos humanas também.

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Crédito: Eduardo Valente

E se fosse haver algum apelo ou alguma questão nesse grito, seria essa: por que vocês são tão lentos? Por que vocês demoram tanto para entender as coisas mais simples – não as ideologias complicadas. Vocês entendem essas. Mas as coisas simples, os clichês. Que as mulheres são humanas precisamente no mesmo degrau e qualidade que vocês são.

(…) O poder exercido pelos homens no dia a dia é um poder institucionalizado. É protegido por lei. É protegido pela religião e pela prática religiosa. É protegido pelas universidades, que são fortalezas da supremacia masculina. É protegido pela polícia. É protegido por aqueles que Shelley chama de “os legisladores não reconhecidos do mundo”: os poetas, os artistas. E contra todo esse poder, nós temos silêncio.

É uma coisa extraordinária tentar entender e confrontar o motivo pelo qual os homens acreditam – e eles acreditam – que eles têm o direito de estuprar. Eles podem não acreditar quando perguntados diretamente. Quem aqui acha que tem o direito de estuprar, por favor levante a mão. Poucas mãos vão subir. Mas é na vida que os homens acreditam que têm o direito de forçar sexo – que eles não chamam de estupro. E é algo extraordinário tentar entender que homens realmente acreditam que têm o direito de bater e de machucar. E é igualmente extraordinário tentar entender que homens realmente acreditam que têm o direito de comprar o corpo de uma mulher para fazerem sexo – e que isso é o seu direito. E é também surpreendente tentar entender que os homens acreditam que essa indústria de 7 bilhões de dólares, que traz vaginas para as suas vidas, é algo a que eles têm direito.

(…) Eu acho que, se você quer olhar para o que o sistema faz com você, então é aqui que você deveria começar: as políticas sexuais da agressão, as políticas sexuais do militarismo. Os homens estão com medo dos outros homens. Isso é algo que muitas vezes vocês tentam discutir em grupos pequenos, como se, caso mudassem suas atitudes uns com os outros, deixariam de sentir medo.

Mas enquanto sua sexualidade tiver relação com agressão, enquanto seu senso de direito sobre a humanidade significar ser superior a outras pessoas – e tem tanto desprezo e hostilidade nas suas atitudes com mulheres e crianças – como vocês podem não ter medo? Eu acho que vocês percebem, corretamente, mesmo sem conseguir lidar com isso de forma política, que homens são perigosos: porque vocês são.

Andrea Dworkin. Trechos de discurso feito em 1983, intitulado “Eu quero 24 horas sem estupro”. Leia aqui.

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8 de março: apagamento histórico

Flores, bombons, cursos de automaquiagem e homenagens que exaltam a beleza, a delicadeza e a generosidade feminina são coisas que começam a pipocar para todo lado assim que o calendário marca 8 de março, data celebrada como o Dia Internacional da Mulher. Observando superficialmente, parece tudo muito bonito e até bem-intencionado, afinal, precisamos presentear e enaltecer essas guerreiras que conseguem trabalhar fora, cuidar dos filhos, dos maridos e da casa, né? E elas fazem tudo isso de salto alto, ainda por cima! Que legal… Será?

É importante contextualizar que a data surgiu no início do século XX com o intuito de gerar reflexões sobre a luta de mulheres operárias que reivindicavam melhorias de vida por meio da garantia e expansão dos próprios direitos. Pouco antes desse período, trabalhadoras de fábricas têxteis, por exemplo, chegavam a passar até 16 horas por dia na labuta – e recebendo, muitas vezes, menos da metade do salário dos homens. A ideia da homenagem surgiu em 1910, a partir de uma sugestão da professora, jornalista e política alemã Clara Zetkin durante a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, na Dinamarca.

No entanto, o que acontece hoje em dia é um apagamento histórico desse cenário de luta em prol do consumo e da manutenção de valores que, há muitos anos, diversos grupos de mulheres tentam derrubar. O ato de entregar medalhas àquelas que aguentam jornadas triplas de trabalho e se submetem ao rigoroso padrão de beleza, por exemplo, é uma forma de naturalizar toda a pressão colocada nas costas femininas como algo aceitável e, até mesmo, positivo. Elogiar “boa aparência” e “bom comportamento” é o outro lado de quem xinga mães que frequentam festas; critica esposas que quiseram se divorciar de maridos violentos ao invés de aguentar tudo de forma altruísta, colocando uma relação ruim acima do próprio bem-estar; censura estudantes que denunciam abusos de colegas e professores; chama de “exagerada” a amiga que manifesta desconforto perante comentários machistas e assim vai. A “mulher de verdade” é a que come pouco, mas compra muito, fala quase nada, mas faz bastante coisa (pelos outros, principalmente). Essa sim é celebrada. Mas ela existe?

Plantar a insegurança feminina e depois vender a solução para a vida das mulheres por meio de produtos estéticos e domésticos é a solução perfeita… Para o bolso das empresas. Pra que falar de “coisas chatas”, como divisão de tarefas do lar? Vamos vender aparatos que facilitam a vida da “dona de casa” (e, na verdade, acabam virando mais louça para ela lavar e mais entulho guardado na cozinha). Pra que falar de melhorias nas condições de emprego para mulheres? Isso só vai colocar mais coisa na cabeça dessas empregadas “folgadas” que, vejam só, têm a coragem de querer a própria carteira de trabalho assinada!

O incentivo ao consumo desenfreado e a homenagem genérica e vazia de sentido que a cooptação do 8 de março propõe não cria apenas um nicho muito lucrativo, mas funciona também como estratégia de marketing empresarial ou pessoal para quem quer fingir preocupação com mulheres sem precisar fazer nada que realmente mexa nas estruturas que emperram a vida delas. Chefes, filhos, maridos, pais, irmãos, netos e amigos podem expiar toda a culpa de serem negligentes ou sobrecarregarem as mulheres que convivem com o simples ato de depositar dinheiro em um objeto que represente a importância e o valor da homenageada. Dessa maneira, ações que dependem também de todos aqueles que estão ao redor da mulher saem de cena à francesa. Reflexões e mudanças de atitude não são consideradas tendências porque não são comportamentos vendáveis – e ainda flertam com terrenos perigosos, como o despertar coletivo de consciências.

Texto publicado originalmente na coluna ‘Água & Óleo’ da Revista Traços, na edição de março de 2016. Por conta da limitação de caracteres, o foco foi no apagamento geral e na cooptação mercadológica do dia. No entanto, existem outros aspectos importantes a serem abordados quando se aprofunda no tema, como a historicidade da data (antes Dia da Mulher Trabalhadora), ou a questão das mulheres negras e o trabalho forçado, que acaba naturalizado em seu esquecimento (na mesma coluna e mesma edição, a militante negra e feminista Dalila Fernandes escreveu sobre isso), entre outros. 

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Feminismo suave não liberta, mas gera lucro

Por que o feminismo existe? Puxo essa provocação com o intuito de iniciar uma reflexão ampla e não de buscar uma verdade absoluta. No meu caso, por exemplo, acredito que uma desigualdade histórica entre os sexos – e não necessariamente entre os gêneros apenas – levou (e leva) pessoas do sexo feminino a forçarem o próprio acesso a espaços de educação, poder, lazer e outros. Assim como desigualdades em outros aspectos da sociedade, como a exploração e a discriminação de pessoas negras, fizeram com que grupos que compartilhavam opressões semelhantes precisassem (e ainda precisem) se organizar para conquistar direitos. Aliás, grupos minoritários diversos possuem histórias de luta igualmente diversas para contar. E elas se entrecruzam: existem mulheres negras e lésbicas, por exemplo, o que as tornam possivelmente mais suscetíveis a violências e exclusões motivadas por preconceito.

Claro que estou resumindo bastante questões que são bem complexas e abrangentes, mas faço essa introdução para que a gente possa começar a se entender. O que quero dizer é que o corpo é um território de disputa ou, como diria a artista Barbara Kruger, um campo de batalha. Portanto, dentro de um esquema que envolve a necessidade de domínio de corpos para criação e manutenção de poder, nascem diferentes narrativas sobre grupos sociais específicos com o intuito de confiná-los em papeis previamente determinados. Desse modo, se garante uma engrenagem onde muitas pessoas possuem deveres e poucas possuem direitos – e menos ainda possuem privilégios.

Se formos pensar no feminismo, ele é um movimento social que tem o objetivo de gritar para o mundo que os estereótipos sobre as mulheres estão errados: elas não são fracas, burras, incapazes, fúteis, inferiores, loucas por homens ou nasceram para a maternidade. No entanto, precisamos sempre lembrar do caráter político do movimento. Para que nossa humanidade seja levada em conta, não basta que a gente se sinta humana, não ligue para o que os outros digam e simplesmente aceite continuar vivendo na precariedade. O que busca nos desumanizar são ações específicas e cotidianas e a construção da nossa humanidade parte da destruição dessas ações. Um sentimento por si só não constrói creches ou aprova leis a nosso favor.

No Brasil, por exemplo, enfrentamos problemas como mulheres sendo mortas por parceiros e outros homens próximos, como se fossem objetos descartáveis, apenas por não desejarem mais manter um relacionamento. Existe também um alto nível de violência física, psicológica e sexual contra pessoas do sexo feminino em geral. E desde cedo precisamos nos acostumar com assédio de estranhos nas ruas – o que vejo como uma forma de terrorismo contra nossa “invasão” ao espaço público, que é relativamente recente. No espaço virtual, somos as mais atacadas. O aborto ainda não é descriminalizado no país, embora a pesquisadora Débora Diniz tenha a esperança de ver essa conquista tomar forma por aqui um dia. Mulheres negras ganham menos do que todo mundo e possuem menos acesso ao mercado formal de trabalho – e são as que sempre estiveram aí, na labuta. Adolescentes engravidam de homens mais velhos, mas o senso comum trata a questão como mera “safadeza” da parte delas, e esquece a responsabilidade que adultos deveriam ter. Entre outras coisas.

Em 1999, a pesquisadora Karen Giffin escreveu, em um artigo chamado “Corpo e conhecimento na saúde sexual: uma visão sociológica”, que “agora colocada na agenda feminista como direito, a definição da saúde sexual não tem avançado além do abstrato (…)”. E aponta questões que precisam de atenção, como o “novo perigo da AIDS feminilizada, da prostituição infantil internacionalizada no turismo sexual, da violência sexual globalizada contra mulheres e crianças, etc”. Será que dezoito anos após a publicação do artigo, conseguimos dizer, sem buscar no Google, quais as respostas que temos para tais questões, ainda tão atuais e urgentes?

De cabeça, provavelmente não. Mas se utilizarmos o Google, poderemos perceber que, sim, existem debates, propostas e outros artigos. Mas a maior parte das discussões aprofundadas estão restritas a círculos específicos. Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher – que envolvem direito ao próprio corpo e a própria sexualidade, expressa como e com quem quiser – ainda protagonizam ferrenha disputa. A constante reformulação do mito da mulher como máquina-de-fazer-bebês, a pouca atenção que se dá à saúde sexual da mulher lésbica ou a prostituição sendo tratada primordialmente pelo viés da “escolha” mostra que ainda temos muitas batalhas. E que precisamos tomar as rédeas do debate público ao invés de procurar meios de dissolver o feminismo para torná-lo palatável.

Ás vezes me pergunto se estamos cometendo erros estratégicos. Onde estamos falhando? Já é 2017 e ainda é difícil debater questões relacionadas a pornografia, estética, violência sexual ou prostituição sem cair dentro da mesma ladainha de sempre, de que “mulher faz o que quiser”. A mídia mainstream e os homens adoram essa frase, mas apenas quando mulheres-fazendo-o-que-querem significa “liberdade sexual” e nudez (de corpos brancos e magros). Muitas feministas de grande alcance, principalmente as do tipo que utilizam o movimento para impulsionar a própria imagem sem necessariamente possuir um comprometimento coletivo, acabam abraçando essa falácia para que não precisem lidar com temas que não são populares. É uncool falar de abuso sexual, apontar agressores, problematizar a indústria da beleza – uma das poucas a não entrar em crise no país – ou desestabilizar muito o status quo, por exemplo. Corre o risco de a coisa fica chata demais.

Aliás, percebo que é nessa junção de mídia e homens (ou instituições historicamente masculinas – ou seja: quase todas, risos) legitimando o feminismo “correto” que um feminismo lavado passa a existir. Um feminismo chique, com roupas de marca, caras, bocas, batom, orgasmos múltiplos e cantoras pop postando fotos do grupo de amigas loiras com legendas tipo “girl power” ao mesmo tempo em que diminuem denúncias de racismo de colegas de profissão negras. Um feminismo que gosta de afirmar que é feminino, que não é como aquelas despenteadas, peludas, histéricas, exageradas, odiadoras de homem – ew, imagina ser confundida com uma lésbica!  Um feminismo que separa mulheres entre boas e más, que menospreza a construção teórica elaborada por pessoas do sexo feminino, que descarta o valor do envelhecimento e da experiência e propaga um sem-fim de frases feitas sem saber o porquê. E não questiona, profundamente, salários, acordos e papeis sociais. Um feminismo que poupa os homens e aponta todos os dedos para as “manas”. E que se estabelece mais como uma tribo urbana do que como um movimento social de fato: legal mesmo é ser uma it girl feminista.

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barbie. se você pode sonhar, você pode ser — uau, agora vai, hein! // propaganda da mattel, de 2014.

Em “Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada as mulheres”, de 1991, a escritora Susan Faludi mostra como mídia, políticos, líderes trabalhistas e outras figuras tentaram (e ainda tentam) promover a ideia de que a mulher já conquistou tudo, mas se tornou infeliz por culpa do feminismo – como se tripla jornada ou desilusões amorosas fossem consequências do movimento, por exemplo. No entanto, ela prova como, na época, vários direitos ainda não tinham sido conquistados, mesmo com uma suposta autonomia da mulher sendo celebrada. Quando ela fala sobre “a natureza do backlash de hoje”, referindo-se aquele período, parece que estamos lendo algo sobre o momento em que estamos agora:

A mulher reprimida do atual backlash distingue-se das suas predecessoras pois quer fazer parecer que escolhe a sua condição duas vezes – primeiro como mulher e segundo como feminista. A cultura vitoriana definia “feminilidade” como sendo aquilo que “uma verdadeira mulher” deseja; na estratégia de mercado da cultura contemporânea, também é o que uma mulher “liberada” almeja. Da mesma forma que Reagan assumiu ares populistas para vender um programa político que favorecia os ricos, os políticos, os meios de comunicação e a publicidade adotaram uma retórica feminista para passar adiante políticas que feriam a mulher, revendendo os mesmos velhos produtos de sempre ou escondiam opiniões antifeministas. Bush prometeu “maior poder” para as mulheres pobres – como substituto dos muitos programas de assistência social que ele estava cortando. Até a Playboy afirmou estar do lado do progresso feminino. “As mulheres avançaram tanto”, garantiu o porta-voz da revista à imprensa, “que já não é um estigma posar nua.” A cultura dos anos 80 suprimiu o discurso político das mulheres e depois redirecionou sua auto-expressão para os shopping centers. A consumidora passiva foi reeditada como sucedâneo feminista, exercendo o seu “direito” de comprar produtos, fazendo as suas próprias “escolhas” ao chegar no caixa. “Você pode ter tudo”, prometia um anúncio de cerveja a uma jovem em malha de ginástica – mas por “tudo”, a cervejaria queria dizer que o seu produto não dava a barriguinha de chope. Criticado por dirigir-se a jovens mulheres nos seus anúncios, um indignado vice-presidente da Philip Morris esbravejou que este tipo de censura é “sexualmente discriminatório” pois sugere que “mulheres adultas não têm capacidade para tomar as suas próprias decisões de fumar ou não”. A reivindicação feminista exortando que cada uma siga os próprios instintos tornou-se um apelo publicitário para se obedecer às solicitações do mercado – um apelo que enfraqueceu e aviltou a busca feminina de uma verdadeira autodeterminação. (…)

O atual contra-ataque aos direitos da mulher proporciona ainda outra tática inerente aos livros de estratégia dos antigos contra-ataques: a pose de uma sofisticada e irônica distância dos seus próprios fins destrutivos. A lista de emoções falsas do backlash –piedade pelas mulheres solteiras, preocupação com o esgotamento das que trabalham, envolvimento com os problemas da família –, a ofensiva atual acrescenta um escarnecedor cinismo em relação a quem ousa apontar mensagens discriminatórias ou antifemininas. (…) Ficar falando de injustiça sexual não só é feminino, mas não pega bem porque já não está com nada. A revolta das mulheres, assim, como qualquer outro tipo de revolta social, é alegremente descartada – e não por falta de conteúdo, mas simplesmente por falta de “classe”.

Já é bastante difícil desmascarar sentimentos antifeministas quando eles se vestem com roupas feministas. Mas é muito mais difícil enfrentar um inimigo que diz não se importar. O feminismo “cheira tanto a anos 70”, afirmam com tédio os papas da cultura popular. Agora somos “pós-feministas”, informam, não para dizer que a mulher chegou à igualdade de direitos e ultrapassou essa fase, mas para sugerir que eles mesmos se adiantaram tanto que já não pretendem nem mesmo importar-se com o assunto. É uma falta de compromisso que, no fim, pode representar o golpe mais devastador contra os direitos da mulher.

Logo, é importante pensarmos na raiz das coisas, para não ficarmos eternamente brincando de encenação política, feito hamsters na gaiola, enquanto permanecemos lucrativas. Claro que, dentro do capitalismo, que não irá sucumbir tão cedo, é importante que existam produtos de beleza também para peles escuras ou cabelos crespos ou roupas estilosas para pessoas gordas, e que propagandas sejam questionadas quando são preconceituosas, por exemplo. Não acho que esse tipo de coisa seja irrelevante. Aliás, não julgo ninguém, individualmente, por suas atitudes. Ainda vivemos em um mundo que valoriza muito a aparência, que conecta o “se sentir bem” com “se sentir bonita” e que, em certos momentos, sequer dá alguma chance de a mulher fingir que pode escolher. Existem empregos, por exemplo, que exigem salto e maquiagem, e pronto.

A caminhada ainda é longa, mas a nossa rede e a nossa força possuem potenciais enormes, que nos são mostrados diariamente: querendo ou não, estamos aqui, ainda que os nossos recursos sejam infinitamente menores que os dos detentores do poder. Existem conquistas para trabalhadoras domésticas, existem leis específicas para a violência contra a mulher, a  obstetrícia atual está em debate, entre várias outras coisas, mas claro que poderia ser muito melhor. É importante a gente continuar sempre a pensar na utopia, para que ela se concretize. Desejo que ruas iluminadas (segurança pública também é questão de gênero), para que mulheres igualmente brilhantes andem por elas, sejam uma realidade concreta e metafórica.

Por isso, precisamos entender que uma camiseta em uma loja de departamento com “feminista” escrito nela não significa muita coisa, principalmente se os funcionários continuam trabalhando muito e ganhando pouco, se artistas continuam tendo ilustrações roubadas para estampar produtos e se peças terceirizadas continuam sendo confeccionadas por meio de trabalho escravo. Relativizar depilação ou procedimentos de beleza ou minimizar os pontos negativos de cirurgias plásticas, como riscos ou o processo pós-operatório, também não são coisas que se enquadram exatamente em um viés feminista acolhedor e informativo, funciona mais como propaganda gratuita e marketing espontâneo e positivo para empresas mesmo.

Como analisou a teórica Nancy Fraser, no artigo “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história” (que chegou até mim por meio do coletivo Não Me Kahlo), houve uma fragmentação da crítica feminista que auxiliou na “incorporação seletiva” e “recuperação parcial” de algumas de suas tendências. Ou seja, de acordo com o interesse vigente, uma coisa ou outra é aleatoriamente pinçada sem levar em conta o seu contexto. E isso acaba auxiliando não na construção de uma nova realidade para mulheres, mas em uma nova forma de manter a organização social nos moldes hierárquicos de sempre. E mais:

É dito frequentemente que o sucesso relativo do movimento em transformar cultura permanece em nítido contraste com seu relativo fracasso para transformar instituições. Esta avaliação tem duplo sentido: por um lado, os ideais feministas de igualdade de gênero, tão controversos nas décadas anteriores, agora se acomodam diretamente no mainstream social; por outro lado, eles ainda têm que ser compreendidos na prática. Assim, as críticas feministas de, por exemplo, assédio sexual, tráfico sexual e desigualdade salarial, que pareciam revolucionárias não faz muito tempo, são princípios amplamente apoiados hoje; contudo esta mudança drástica de comportamento no nível das atitudes não tem de forma alguma eliminado essas práticas. E, assim, frequentemente se argumenta: a segunda onda do feminismo tem provocado uma notável revolução cultural, mas a vasta mudança nas mentalités (contudo) não tem se transformado em mudança estrutural institucional.

Acredito que mudar a pintura externa de uma casa não significa necessariamente reformar por dentro. Logo, não podemos nos deslumbrar com a festa feminista que tentam, literalmente, nos vender. Mulheres libertas não geram lucro, corpos autônomos são mais difíceis de controlar e pessoas conscientes da própria complexidade ameaçam a narrativa de papeis unidimensionais. Minha vontade é muito ambiciosa: não quero que as mulheres se sintam lindas e sim que se sintam – e sejam, de fato – livres. Vamos juntas?

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Como conversar com mulheres

Hoje o texto vai para aqueles rapazes que chegam em uma festa e não sabem como se aproximar desses exóticos exemplares da espécie humana: mulheres. Vai para os homens que, em uma fila de banco ou no ambiente de trabalho, não conseguem estabelecer diálogo algum com essas misteriosas criaturas. Ah, mulheres… Só de ler esta palavra, logo somos transportados para um mundo repleto de seres fantásticos e cheios de segredos. Mulheres! Figuras mágicas, divinas e, por vezes, inconstantes. Como entender o que se passa na cabeça dessa complicada parcela da população? O que será que tais mentes arquitetam, quando não estão pensando em batom, novela ou em comprar uma bolsa nova?

Quem nunca se sentiu paralisado diante da beleza feminina que atire a primeira pedra: lindos cabelos com produtos químicos, cílios postiços, seios com silicone… Todos amam a mulher do jeito que ela é! E chegar mais perto de uma delas para trocar uma ideia sempre pode ser, com certeza, muito interessante – desde que a escolhida seja loira, magra, não tenha muitas opiniões e esteja louca para transar, claro. Afinal, você não quer perder o seu tempo, não é mesmo?

Mulheres! Com certeza são a projeção real de suas fantasias, obtidas após muitos filmes, propagandas e sites obscuros acessados na calada da noite – com o volume no mute para a vizinhança não desconfiar de seus hábitos cotidianos. Portanto, venho aqui com o intuito de ser o facão que irá abrir a mata fechada que te impede de caminhar para perto das gatas. E trago boas notícias: adentrar o estranho universo feminino é mais simples do que parece. Quer saber o que você deve fazer para conversar com uma mulher?

  • ABRA A BOCA
  • FALE

Tcharam! Fácil, né? Mulher não é nenhum extraterrestre não, ou. Se você encontra problemas para conseguir falar com uma, não é porque somos difíceis de compreender. O mais provável é que os seus valores relacionados ao sexo feminino sejam tão deturpados, que você realmente acredite que exista um protocolo específico para lidar com a gente. Se os parágrafos anteriores deste texto não foram percebidos como uma completa ironia que simula todo o chorume estereotipante que se escreve – e que se impõe – sobre mulheres por aí, volte muitas casas no jogo da vida.

E mais: se você não consegue aproveitar a diversidade de mulheres ao seu redor para fazer amizades e conhecer coisas novas sem necessariamente uma transação sexual estar embutida nessa troca de ideias, o problema é seu ao se frustrar com uma expectativa não correspondida – e não delas. Você não é o cara legal que imagina ser caso acredite que sexo é uma recompensa obrigatória a ser dada para todos os que não tratam mal uma mulher. Enxergar mulheres primordialmente pela ótica de uma possível foda é deprimente pra vocês, que em 2017 ainda não perceberam que existimos para além disso, e desumanizante pra nós, que temos toda nossa subjetividade reduzida a esse tipo de coisa o tempo todo. Inclusive, acho muito estranha essa concepção masculina de querer planejar tudo previamente, como se estivesse montando uma armadilha, e não buscando viver um momento agradável e natural, que envolva ou não algo mais.

Nessas horas que a gente vê como a coisa tá feia: alguns caras acham que, só por ouvirem o que uma mulher tem a dizer, merecem uma condecoração. E o pior é quando reclamam da falta desse tipo de reconhecimento, como se fosse um sacrifício muito grande lidar com uma mulher ou como se fosse humilhante demais sair um pouco do papel grosseiro que a masculinidade impõe, não sei.

Se tem uma dica séria que posso dar é: não sigam dicas. Repense a sua relação com o sexo feminino e procure, dentro de você, o que pode estar te afastando das mulheres. Um amigo, dia desses, comentou que se ficasse solteiro, seria impossível ficar com alguém de novo, pois não consegue nunca conversar com uma mulher – elas sempre ficam bravas! No mesmo dia, ele havia julgado publicamente a aparência de várias minas e reduzido a tristeza de uma colega a “problemas com homem”. Não é difícil entender o porquê de as mulheres ao redor dele ficarem com raiva…

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allyson gutchell // allysongutchell.tumblr.com

E muitas dicas sobre ~como conversar com mulheres~ que li pela internet afora apenas disseminam estereótipos baratos sobre o sexo feminino (“ela vai gostar de você por causa do seu carro”, por exemplo) e ensinam táticas de manipulação, negging e outros tipos de abusos psicológicos e emocionais. Sabe como é, a gata não pode “se achar” muito, argh. A insegurança masculina é tão grande, que o ideal para muitos é diminuir a das mulheres também. É esse tipo de relação que você quer estabelecer com uma pessoa, mesmo? Dominar uma mulher não é conversar com ela – uma conversa é uma via de mão dupla.

Muitas vezes, mulheres percebem essas táticas de antemão, e se afastam. Ou percebem, mesmo quando não conseguem explicar muito bem, que tem algo de errado na forma que um cara fala sobre e com mulheres. Ou simplesmente não querem nenhum tipo de conversa e aproximação – e isso acontece com todo mundo, de todos os sexos, gêneros, orientações, sério, não apenas com rapazes. Antes de julgar, analise se já não fez o mesmo. Me parece muito mais comum homens sequer valorizarem o que uma mulher que não os atrai (ou que não está “disponível”) tem a dizer do que o contrário. E tem mais: mulher alguma tem a obrigação de disponibilizar tempo para outras pessoas quando ela não está afim. E homens precisam parar de achar que podem perturbar a paz de uma mulher em qualquer lugar e situação, mesmo sem contexto algum.

Por isso, quanto menos apego às fantasias e estereótipos sobre mulheres, mais fácil conversar com elas. Assim como os homens, mulheres são seres complexos, que possuem vários interesses e vontades. Ser uma pessoa mais aberta, sincera, com um timing maneiro e que realmente converse com outras, e não que apenas busque uma escada para a superioridade pisando em cabeças alheias, pode trazer muitas surpresas. Amores, amizades e até mesmo sexos casuais brotam em locais inesperados. E uma coisa eu garanto: ainda que existam muitas diferenças entre as pessoas, todas gostam de ser tratadas com humanidade. É bizarro ter que explicar isso.

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TODA MULHER É LOUCA

Certos homens agridem as namoradas na maior cara de pau, e falam da amiga louca. Disseminam preconceitos estéticos e raciais, disfarçando tudo isso de “gosto pessoal”, e falam da professora louca. Saem com qualquer uma que conhecem em qualquer lugar, e falam da colega de trabalho louca. Enchem a cara e agem feito uns idiotas, e falam da esposa louca. Praticam sexo não consentido com mulheres desacordadas ou vulneráveis –  vulgo estupro, sabe? – e falam da irmã louca. Não desfazem laços com caras que já fizeram o mesmo (e os legitimam socialmente), e só julgam a cunhada louca. Desumanizam as garotas com quem saem, separando-as entre as que merecem respeito e as que não merecem, e falam da mãe louca.  Arrumam briga e promovem atos violentos por motivos banais e fúteis, mas louca é aquela tia distante, que vez ou outra vem visitar. Chegam a machucar e até a matar mulheres e também outros homens, simplesmente porque não sabem lidar com diferenças e frustração, mas o foco da conversa? É a ex-namorada louca, claro. Abandonam a família, e apontam o dedo para a cantora louca. Incentivam a rivalidade feminina, fazem comparações entre mulheres e chamam de louca aquela garçonete que trabalha o dia inteiro no restaurante da esquina. Não lavam uma louça, e reclamam da diarista que aparece toda segunda-feira, que é louca. Apesar de adultos, namoram meninas adolescentes e facilmente manipuláveis – e diz para elas tomarem cuidado com as colegas de classe, que são loucas. Fingem que são bonzinhos e abusam de crianças, e falam da ativista louca. Se fazem de pobres coitados, frágeis, abandonados e doentes, mas a prima é que é louca. Exploram funcionários e chamam isso de trabalho, e falam da avó louca. Assediam mulheres em shoppings, hospitais e igrejas, e riem da moradora de rua louca. Dirigem rápido, achando que a vida é um filme de ação, e conversam sobre a vizinha louca. Fazem sexo que nem uma britadeira descontrolada, achando que os ensinamentos da pornografia são válidos, e falam da dentista louca. Aprisionam mulheres em relacionamentos “livres”, e falam da dona de casa louca. São incapazes de demonstrar afeto sem ironia ou constrangimento… E falam que todas, todas, todas, todas, todas as mulheres ao redor, por algum motivo, são loucas.

Desconfiem de adjetivações genéricas, reducionistas, preconceituosas e sem fatos ou análises embasadas como foco. E, não esqueçam: a louca que hoje você ajuda a isolar por acreditar que isso te dará algum tipo de proteção pode ser você amanhã. Mulheres são historicamente taxadas de loucas como forma de controle e dominação. Toda mulher que coloca o privilégio de um homem em risco ou quer romper com as sufocantes regras sociais impostas ao sexo feminino é vista como errada ou perigosa.

Na maioria das vezes, não basta apenas olhar para onde os dedos apontam. É preciso observar também de quem é a mão.

katrene

pintura de kat renee // katrenee.com
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Sobre o processo de se transformar em uma publicação impressa

Queria ter escrito este post aqui há mais tempo, porém, ando vivendo uma deliciosa bagunça nômade que me faz morar oficialmente em uma cidade e estudar em outra. Tenho me dividido entre milhares de coisas pra fazer e preocupações excessivas (oi, ansiedade). Além disso, quase assassinei o meu computador pela segunda vez, derramando água de coco nele (a primeira foi quando tive a brilhante ideia de limpar o teclado com lenços umedecidos). Andei também viajando para lugares fora da minha rota, uma das viagens como parte de um lindo projeto educativo e a outra de férias mesmo. E etc, etc e etc. Conto tudo isso apenas para justificar meu sumiço, pois com certeza o que listo aqui não me traz muitos motivos para reclamar (tirando a ansiedade e o computador molhado).

Agora que finalmente parei para sacudir a poeira do blog (estava com saudade), trago boas notícias: realizei um financiamento coletivo entre abril e maio deste ano com o intuito de arrecadar dinheiro para imprimir uma publicação independente. Felizmente, deu tudo certo e, por isso, o conteúdo da Vulva Revolução passou a ser algo que existe também no papel – é um zine! Como sou fruto dos rolês alternativos e do do-it-yourself, essa foi a linguagem que conheço e decidi utilizar para reunir parte do material escrito por aqui até hoje. E essa foi a maneira que escolhi para dizer que sou uma autora capaz de escrever em diversas plataformas. E, não vou mentir, é mais barato e fácil de produzir do que um livro, heh (que é algo que também está nos meus planos). Mas não quero, com esse comentário, criar nenhuma hierarquia, cada coisa tem sua estética, seu espaço, sua importância e sua razão de ser.

A ideia de fazer uma publicação a partir de textos aqui do blog era alimentada desde o ano passado. Sempre gostei muito de livros, revistas, zines, folhetos e afins. Ouvir o barulho de páginas virando, analisar formatos e o tipo de papel, bem como a beleza ou estranheza das imagens é muito agradável, não é mesmo? A experiência impressa é um romance em si mesma. E, além do mais, o que está no papel me parece ter um tipo de circulação diferente do material online – agora participo de mais eventos, faço vendas & trocas, conheço várias pessoas ao vivo e estou chegando em novos lugares.

zinevulva

Vários zines, oba!

Claro que a internet tem o seu posto essencial de principal divulgadora das minhas ideias – e é o meu habitat. E ela e o papel são meios diferentes, mas que não se anulam. No entanto, o que está impresso ainda me parece, de alguma forma, mais respeitado como “conteúdo de verdade”. É o que te chancela como alguém que realmente produz – principalmente quando o seu principal veículo é um blog totalmente independente. Isso tudo pode até estar mudando, estamos começando a criar o hábito de ler em outros meios (eu mesma já sou adepta do Kindle faz muitos anos), mas minha experiência me mostra um interesse diferente por parte do público em geral quando você começa a organizar o seu próprio material no papel – mas não sei se um e-book ou algo assim causaria o mesmo tipo de reação. São muitas possibilidades, temos muito a pensar.

Planejei tudo sozinha, mas contei com o apoio de várias pessoas durante o processo de nascimento do zine (que teve um protótipo com uma tiragem de 20 unidades realizada no ano passado). Um amigo fez o vídeo para o site do crowdfunding, por exemplo, e mulheres com as quais possuo diferentes graus de proximidade (mas admiro o trabalho de todas) colaboraram com as ilustrações presentes na publicação (e com um dos textos exclusivos), tornando-a coletiva e plural. Aprendi ainda mais sobre as diferentes etapas intelectuais e burocráticas de se produzir algo no papel, o que não é novidade pra mim, por conta da minha profissão e de produções anteriores, mas que foi mais intenso por ser um projeto pessoal cuja existência se deu, inicialmente, por conta do meu próprio interesse. Foi um exercício de aprender a dizer internamente, e para os outros: “o que eu faço importa” e “se eu quero fazer, importa”. Os feedbacks que recebo ajudaram, pois são várias as mulheres que afirmam se sentir contempladas com meus questionamentos (que bom, pois essa é a intenção). E elaborei uma linha narrativa que orientasse o material de modo coerente, editei os textos do blog para o formato impresso, diagramei o zine, fiz orçamentos e pedidos das recompensas prometidas no financiamento coletivo (camisetas, bottons e adesivos), entre outras coisas.

Não vou mentir, fiquei bastante orgulhosa de mim mesma, ainda que uma ou outra pessoa pessimista tenha cruzado o meu caminho com frases como “é só um zine” ou “é só um blog”. Sempre vai aparecer alguém projetando as próprias frustrações no que a gente está fazendo, colocando o foco em pequenos detalhes e não no todo. Deu trabalho e atrasei algumas entregas, pois precisei de mais tempo do que esperava para terminar algumas coisas, mas valeu muito a pena.

No meio disso tudo, fiz um curso de Produção Gráfica com a Aline Valli, que era da Cosac Naify, e foi bom para aprender mais sobre aspectos práticos e estéticos de uma publicação impressa. Mesmo que o meu interesse principal seja a escrita, achei legal ter mais noção de todos os processos que envolvem a realização de um livro – ou de qualquer outro material do tipo. E uma das aulas foi justo no último dia de existência da Cosac, o que deixou a professora bem emocionada. Não fiz o curso por causa do zine, mas pelo interesse geral na área mesmo – tenho um crush no meio editorial como um todo. Só que acabou sendo útil, lógico. Conhecimento nunca é demais.

Acompanhar um financiamento coletivo é bastante agoniante – ainda mais quando você é uma pessoa ansiosa. Isso que o meu nem era assim tão difícil de alcançar, imagina os que contam com uma grana alta? Meu coração não aguentaria. É importante assistir os vídeos e recomendações desses sites de crowndfunding – graças a eles, consegui tirar várias dúvidas e fazer prospecções de metas – e conversar com outras pessoas que já passaram pelo processo (isso me ajudou a aprender bastante com erros e acertos de colegas). Uma divulgação constante é essencial, bem como uma boa comunicação com veículos grandes que se comuniquem com o seu público-alvo. Contei com a ajuda de alguns blogs, sites e páginas, e até mesmo parceria com festa famosinha de Brasília eu fiz, o que não gerou o retorno financeiro esperado, mas foi uma noite muito divertida e que também ajudou na divulgação.

O zine foi lançado oficialmente em Brasília, Rio de Janeiro e Belém e a tiragem inicial foi de 500 unidades. Alguns foram doados para mulheres que realizam projetos que se relacionam com feminismo, educação e afins (tive notícias de alguns sendo utilizados em oficinas de educação e gênero para jovens e adultos, e me emocionei). Paralelamente a isso, várias outras coisas foram e estão sendo feitas, algumas delas pretendo contar por aqui assim que tiver tempo (e ânimo) de novo. São muitas novidades, pensamentos, ideias, mas também muito cansaço e falta de energia, em alguns momentos. De vez em quando, essa era atual faz a gente se sentir sempre a correr sem saber muito bem para onde ir, não é? Tipo, me pego fazendo um monte de coisa e achando que não estou fazendo nada pois esse monte de coisa ainda não é necessariamente aquela idealização da minha cabeça de coisas que imagino que “deveria” estar fazendo. Confuso, eu sei.

Por isso, parei aqui para respirar e relatar esse processo. Meu intuito foi, de certa forma, prestar contas a todo mundo que me apoiou, além de incentivar outras mulheres a tocarem seus projetos e a encararem o que fazem como algo importante – não importa se a sua vibe é escrita, desenho, crochê, pintura, matemática, gastronomia ou games. Nem se é algo para um público grande ou pequeno – até porque isso varia com o tempo. O que importa é a gente existir e falar sobre a nossa realidade, desenvolver competências artísticas, criativas, intelectuais, ganhar experiências e estreitar laços umas com as outras. Gosto muito de assistir ou ler sobre processos alheios – de pequenos quadrinistas independentes a fotógrafos com fama mundial, sei lá  – e essa foi a minha contribuição para quem tem o mesmo tipo de interesse. Como escrevi em muitos dos bilhetinhos que enviei para vários lugares do Brasil, junto com os zines e as recompensas adquiridas: juntas somos mais!

Tem Vulva Revolução no FacebookTwitter e Instagram também, viu?

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Pessoas brancas criticando “Feminismo Branco” perpetuam privilégio branco

O texto a seguir foi escrito em 2015 por Claire Heuchan, autora do blog Sister Outrider. Feminista radical, negra, lésbica e escocesa, ela é também mestranda em literatura com ênfase em estudos de gênero, e sua pesquisa se foca em Teoria Feminista Negra, ativismo e escrita. Se você lê em inglês, vale a pena procurar outros textos dela por aí. A tradução foi feita por mim e pela Carol Correia, que tem feito um ótimo trabalho em traduzir materiais do inglês para o português com o intuito de disseminar mais informações sobre feminismo em nossa língua. 

Gostei do texto por ser curto e direto. E é um convite à reflexão para as feministas brancas. Lutar contra o racismo é um papel de todas nós, mas é preciso uma postura ativa, que promova mudanças reais e eficazes. Não adianta só repetir palavras vazias e discursos simplistas. O racismo é um sistema complexo que embasa a nossa sociedade e precisamos entendê-lo para exterminá-lo. E é um assunto que deve ser tratado com seriedade, e não como um mero atalho para impulsionar a própria imagem de forma positiva. Boa leitura!

Se você se envolve em discussões feministas online, as chances são que você já tenha notado uma expressão particular se tornando cada vez mais comum: Feminismo Branco. Algumas vezes até mesmo um símbolo de marca registrada é adicionado, para dar ênfase. O termo Feminismo Branco tornou-se uma abreviação para certas falhas dentro do movimento feminista;  das mulheres com um determinado grau de privilégio falhando em escutar as irmãs mais marginalizadas; das mulheres com um determinado grau de privilégio falando por cima dessas irmãs; das mulheres com um determinado grau de privilégio centralizando o movimento ao redor de problemas que abrangem apenas a gama das próprias experiências delas. Originalmente, o termo Feminismo Branco era utilizado por mulheres não-brancas para abordar o racismo dentro do movimento feminista – uma crítica válida e necessária.

Ainda que mulheres brancas estejam em desvantagem pessoal e política por conta da ordem social vigente construída em cima de misoginia, elas também se beneficiam com o racismo institucional – queiram elas ou não.  Mesmo mulheres brancas com firmes políticas contra o racismo não podem excluir que se beneficiam do privilégio branco; que mulheres brancas recebem mais (embora deficiente) visibilidade da mídia do que suas irmãs negras e de minorias étnicas; que existe uma diferença salarial extensa em relação às mulheres não-brancas e que existe um aumento significativo do risco de violência policial que molda a realidade vivida por mulheres negras. É assim que o privilégio branco funciona. Nós vivemos em uma cultura impregnada de racismo, com uma grande quantidade de riqueza do nosso país decorrente do tráfico de escravos. Bem como a misoginia, leva-se muito tempo e reflexões conscientes para desaprender o racismo. É um processo de aprendizagem no qual nunca nos graduamos totalmente. Mulheres não-brancas desafiando o racismo de dentro do movimento feminista nos dá a oportunidade de conscientemente nos desligarmos de comportamentos recompensados pela supremacia branca do patriarcado.

No entanto, a expressão Feminismo Branco não está mais sendo usada exclusivamente por mulheres não-brancas para contestar o racismo que enfrentamos. Recentemente, tornou-se socialmente obrigatório para feministas brancas usarem o termo para descartar outras feministas brancas com as quais elas não concordam como incorporadoras do Feminismo Branco. As pessoas brancas começaram a chamar a atenção de outras pessoas brancas pela… branquitude. Não estou brincando. Em um artigo recente para a VICE, de alguma forma irônico, Paris Lees lamenta que “feministas brancas têm maiores plataformas de mídia…”. A artista Molly Crabapple, com plataforma de mídia e renda considerável (a não ser que se juntar à Samsung tenha sido um ato de caridade), fez tweets para invalidar pontos de vista, por conta do privilégio, das “senhoras brancas chiques“. Mas, daqui de onde estou sentada, ambas Paris e Molly parecem muito confortáveis.

Em vez de amplificar as vozes das mulheres não-brancas, ou de usar as próprias plataformas para destacar a intersecção entre raça e gênero, uma série de feministas brancas liberais sequestraram a crítica ao racismo com o intuito de dar suporte à própria imagem de progressistas – como se fossem o tipo certo de feminista, não uma Feminista Branca. Mas a cooptação da análise das mulheres não-brancas sobre o racismo dentro do movimento feminista é exatamente o tipo de comportamento para o qual a expressão “Feminismo Branco” foi criada para impedir. Pessoas brancas criticando “Feminismo Branco” perpetuam o privilégio branco. Priorizar a própria imagem, colocando-a acima da luta anti-racista liderada por mulheres não-brancas é, na melhor das hipóteses, narcisista, e na pior, racista. Essas ações apoiam a noção de que o racismo enfrentado por mulheres não-brancas é uma questão secundária, não uma preocupação principal dentro do movimento feminista.

Mulheres brancas usando o “Feminismo Branco” como uma vara para bater umas nas outras, e não como uma indução para que o próprio racismo seja considerado, é a branquitude em seu auge. Na corrida para “se lavar do privilégio”, as feministas brancas tornam-se as temidas Feministas Brancas por conta da apropriação indevida das palavras de suas irmãs marginalizadas para ganho pessoal.

Texto original aqui.

blackgirls

imagem via navy-bleu.tumblr.com