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TRISTE E BRASILEIRA: SOS PANDEMIA

Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou oficialmente a existência da atual pandemia do novo coronavírus. Por conta do COVID-19, um mundo já de cabeça pra baixo ficou ainda mais entortado. Muitas são as inseguranças e mistérios envolvendo o vírus, que se alastra tão rápido quanto fogo em pólvora. Como funciona? Por que existe uma gama tão diferente de sintomas e reações? Quantas mortes ainda teremos? É preciso mesmo dar banho em saco de arroz? Quais as melhores máscaras a serem utilizadas?

Desde então, sentei inúmeras vezes em frente ao computador na tentativa de escrever algo pra postar aqui. Não rolou. Nunca sentia firmeza nos meus próprios pensamentos, todos tão embaralhados por esse delicado momento que praticamente o planeta inteiro está a enfrentar. Agora é que finalmente me surgem palavras e consigo organizar algumas ideias. Mas só algumas, pois a confusão segue grande. Essa pandemia tem escancarado muitas coisas: desigualdades, incertezas, medos. O egoísmo humano e a ganância política estão em evidência, piscando em neon. Contudo, existem também iniciativas que demonstram lados melhores das pessoas, como projetos sociais de emergência ou redes de apoio informais (não que isso signifique que o momento atual tenha algum lado bom, longe de mim alimentar esse pensamento cretino e falsamente good vibes de quem vive iludido em bolhas de privilégio e negação).

Negligência bionazista

É um horror observar como o (des)governo atual tem utilizado essa crise sanitária para justificar uma crise econômica que já estava no horizonte faz tempo (e que é um projeto, sempre válido relembrar). Uma espécie de bionazismo está em curso no país. Em prol de uma agenda genocida, figuras de poder criam obstáculos e evitam medidas que poderiam proteger a população em diversas esferas ao mesmo tempo em que veiculam uma falsa ideia de que tudo o que está acontecendo, incluindo as mortes, é inevitável, foi sem querer, é o destino. Não existe sequer uma campanha nacional, de grande alcance, que explique o que já se sabe até o momento e que ensine as pessoas a usarem máscaras ou higienizarem as mãos corretamente, entre outras medidas necessárias para tentar conter a disseminação do vírus. Temos que ler abobrinhas diárias que celebram, com escárnio, o alto número de recuperados e ignoram lutos e memórias (e, por conta das possíveis sequelas pós-COVID, será que os recuperados estão mesmo tão recuperados assim?) ou que pregam tratamentos e profilaxias sem embasamento científico. Vacina, testagem em massa, auxílios para pequenas empresas e pessoas em situação de vulnerabilidade… Cadê?

Raiva e sensação de impotência são sentimentos comuns a qualquer um que tenha senso.

Como disse a professora de direito e psicologia da Universidade de Pensilvânia Tess Wilkinson-Ryan em um artigo publicado em julho do ano passado no The Atlantic, a situação atual coloca na mão das pessoas o fardo de fazer algumas das análises de risco “mais frustrantes e confusas de suas vidas”. Certas perguntas como “ir ao shopping é seguro?” ou “será que posso encontrar meus amigos?” não deveriam ser respondidas apenas por indivíduos, mas por políticas delineadas por autoridades. E é isso aí, né? Estamos em um cenário de individualização de culpas enquanto líderes e instituições se isentam de responsabilidades, as informações necessárias para tomadas de decisão mudam a todo o tempo e o cidadão comum não tem necessariamente os conhecimentos para decodificá-las, pois muitas estão em âmbitos técnicos e requerem certos acúmulos de saberes. O que sobra, em plena “era da informação”, é chuva de fake news e muita confusão, pois até “figuras de autoridade”, que deveriam se embasar em evidências, embarcam em baboseiras. Triste, triste, triste.

(Meu primeiro estágio de jornalismo foi em um site de saúde na época da pandemia do H1N1 e, ainda que fosse uma pandemia com outras dimensões, que diferença. Políticas e dados mais claros, líderes que não estavam tentando deliberadamente matar a população, entre mil outras coisas).

Desigualdades escancaradas

O vírus pode atingir geral e causar mortes ou sequelas em categorias variadas de seres humanos, ainda que grupos específicos estejam mais vulneráveis – e eles são muito mais amplos e complexos do que o senso comum imagina. Quem, afinal, não tem pai, mãe, avô, tia mais velha? Quem não tem uma conhecida diabética e/ou gestante de alto risco, um amigo com asma ou um colega que mora em alguma região que falta água e o saneamento básico é precário? A desculpa de que quem morre tinha comorbidades, como uma espécie de justificativa, não é válida. Ninguém é “perfeito” e ninguém deveria ser descartável. Eugenia pra abafar negligência? Ridículo! E curioso notar que, no início disso tudo, os mais velhos eram sacaneados por não cumprirem o isolamento para, sei lá, irem ao mercado às seis da manhã, hoje temos muitas pessoas em festas, shows e outras enormes aglomerações esquecendo que, mesmo que fiquem assintomáticas, seguem sendo possivelmente transmissíveis. São muitas questões.

Pandemia e feminismo

Os debates feministas seguem importantes nesse momento, ainda que muita gente tente secundarizá-los. Ano passado, a escritora Thaís Campolina fez um importante apanhado que ressalta questões extremamente relevantes para as mulheres durante a pandemia: trabalho acadêmico, trabalho doméstico, violências dos mais diversos tipos, saúde sexual e reprodutiva, mercado profissional e geração de renda. Até mesmo a questão do negacionismo científico, como ela relembra, tem um componente de gênero e os homens acabam sendo a maioria entre os que não querem tomar as devidas precauções, pois pelo visto abala demais a masculinidade de alguns aceitar que um vírus pode derrubá-los e que cuidados coletivos são necessários. Leia: O que a pandemia tem a ver com feminismo?

Também no ano passado, foi lançada a pesquisa Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. Acesse aqui. O estudo foi realizado pela iniciativa Gênero e Número e pela SOF Sempreviva Organização Feminista com o intuito de mostrar, em dados e relatos, impactos do contexto de isolamento social na crise da saúde para a vida das mulheres, considerando desigualdades de raça. Os dados mostram que metade das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia. E mostram, ainda, que a realidade não é a mesma para todas: ao olhar apenas mulheres que estão em ambientes rurais, nada menos que 62% das participantes da pesquisa afirmaram que passaram a ter esse tipo de responsabilidade. Já as mulheres negras possuem menos suporte nas tarefas de cuidado e engrossam fileiras de desemprego. Entre outras importantes questões que devem ser observadas com atenção.

mascara

Meu universo particular

Como em tudo na vida, cada pessoa está vivendo esse momento de forma única. Passei, e passo, por vários estágios mentais: já fiquei completamente desesperada, já fiquei paralisada, meio sem reação e emoções, já fiquei mais tranquila e resignada… No momento, a ansiedade bate forte, afinal, já estamos na mesma situação tem um ano. Na verdade, a situação está pior, ruim, péssima, terrível. Cada vez mais pessoas próximas estão contraindo o vírus, ficando sequeladas, perdendo parentes e amizades. Dói. Por isso, e muito mais, nunca, nunquinha mesmo, podemos esquecer que a gestão da atual pandemia no Brasil está sendo feita de modo completamente criminoso e não precisava ser assim. Lá na frente, muitos dos responsáveis vão culpar as pessoas, as festas, a falta de aderência ao fajuto “tratamento precoce” etc. E vão lavar as mãos, apenas no sentido figurado mesmo, infelizmente. Aliás, isso tudo já está acontecendo, não é mesmo?

A pandemia se anunciou, em 2020, quando eu estava em uma viagem no exterior. Ganhei uma bolsa para ir ao festival SXSW (que, claro, foi cancelado) e, olha, começar a viver essa experiência nos Estados Unidos daria um outro post inteirinho de reflexões… De lá pra cá, mudei de casa, de cidade, de casa de novo, lancei meu primeiro livro de contos, chamado Homens que Nunca Conheci (é desafiador demais gerenciar um lançamento apenas pela internet, então CLIQUEM AQUI E COMPREM MEU LIVRO rs) e fiz várias outras coisas. Sigo trabalhando como repórter de cultura, participei de cursos (e ofertei um), passei na qualificação do mestrado e agora estou, aos trancos e barrancos, tentando terminar minha dissertação (meu cérebro está derretido, admiro demais quem anda conseguindo estudar normalmente ao mesmo tempo em que me questiono se essas pessoas realmente existem), me envolvi em projetos que vão da cultura à saúde, mergulhei no mundo digital (e não aguento mais, sinceramente), cozinhei muito, vi muita série, deixei o cabelo crescer, vou ter um filho (yay!) etc.

Apesar de tanta mesmice e silêncio, que faz com que o desânimo muitas vezes fale mais alto, a vida continuou. Porém, em um ritmo muito mais lento e com muito cuidado. E com uma constante sensação de que tudo está suspenso e estou eternamente esperando a volta de algo que nem sei bem o quê é. Precisamos encontrar motivos para continuar, todos os dias, mas sem entrar em um estado de negação. Sou contra esse negócio de “evitar notícias ruins” e, pelo contrário, estou sempre buscando me informar em fontes confiáveis, até para me proteger (e proteger quem está ao meu redor) de acordo com evidências mais recentes, já que elas mudam o tempo todo (recentemente, começou a se falar bastante da importância de utilização de máscaras mais potentes, por exemplo).

E é importante lembrar que no meu universo existe também muita angústia, câncer na família, solidão, dias repetitivos e enlouquecedores, calor, medo, saudades enormes de várias pessoas que não estou vendo pois realmente me isolei o máximo que posso (tenho a sorte de trabalhar de casa, mas só me venham com papo de “privilégio” quando eu não for mais pejotizada, please) e, como já falei várias vezes, minha mente está pifada. Sério. Tem vezes que me pergunto se um dia vou conseguir escrever ou ler igual antes da pandemia, mas estou tentando não me cobrar tanto – e falhando miseravelmente. Meus prazos e compromissos seguem batendo na porta. Minhas ambições pessoais também.

Sinto falta de andar em ruas lotadas, de festas, de lanchar com minhas amigas no final de um longo dia, de entrevistar pessoas ao vivo, de almoçar com minha família nos fins de semana, de sair sem rumo com meu namorado, de frequentar museus ou ir ao cinema, de ir ao mercado com tranquilidade… A lista é infinita. Nesse último ano, abracei minha mãe no máximo duas vezes. Maneiras de demonstrar cuidado, apoio e afeto estão sendo reinventadas (fazer compras pra alguém, ligar, levar uma comidinha, sei lá), e não sei se vou saber socializar em grande escala de novo um dia (até me pergunto se um dia já soube). Na real, é estranho lembrar que as coisas já eram difíceis antes, a sociedade já era egoísta, apressada, negacionista, já triturava existências com desigualdades profundas e depressão, e que um pós-pandemia (no contexto brasileiro não consigo nem visualizar quando pode ser) envolve uma necessidade urgente de mudança de valores, sistemas e organizações.

Não podemos simplesmente almejar o mundo anterior, pois ele que nos trouxe até esse mundo aqui.

Se cuidem ❤

Espero que, na medida do possível, você aí, que me lê, esteja bem. Mas sei que com o alto número de mortes que o Brasil possui atualmente em decorrência de uma única doença (número subnotificado, diga-se de passagem) e com o cenário de incertezas que se desenha pra todo mundo, em diferentes níveis, muita gente não vai estar. Temos consequências físicas, psicológicas, sociais e econômicas da pandemia para lidar, temos muitos lutos para enfrentar, temos rituais desfeitos, temos celebrações interrompidas… Então, do alto da minha sensação de impotência, mando beijos e abraços virtuais e desejo força para quem precisar. Valorizem a arte, a cultura, a ciência, as produções locais (de alimentos, roupas, livros, que seja), a educação, as redes de apoio.

(Ai, ai. Estranho escrever, escrever, escrever e ainda sentir que falta tanta coisa. Sabe?)

(Confesso que ando cada vez mais cansada do blog e de atuar nas redes sociais dentro dos moldes atuais que cooptam saberes ao mesmo tempo que invisibilizam pessoas, algo que já mencionei antes até. Somando isso com a estafa mental, ploft, me pego refletindo sobre a relevância de manter certos projetos, como esse aqui. Papo pra depois.)

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Achar que o Brasil não é racista já é racismo

Hoje é 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. E o que isso significa? Bem, a data marca a morte de Zumbi dos Palmares, que foi líder do Quilombo dos Palmares e representa um ícone da resistência negra durante o período de escravidão no país. O dia coloca em evidência a luta da população negra do Brasil contra o preconceito e a discriminação, e serve também para gerar reflexões coletivas na sociedade por meio de debates, resgates históricos e da divulgação da cultura afro-brasileira.

Ainda que a escravidão tenha acabado há algum tempo, as marcas do período continuam presentes em nosso povo: os negros e negras são os que mais possuem desvantagens econômicas e sociais, e são sistematicamente dizimados de forma covarde e silenciosa – esse extermínio é noticiado com menos frequência do que furtos bobos em lojas, casamentos de subcelebridades ou protestos “atrapalhando” o trânsito, por exemplo.

Uma breve – muito breve mesmo – história da escravidão de pessoas negras no Brasil

A raiz da desigualdade racial e social do país está no seu processo de colonização, que teve Portugal como um dos atores principais. Em 1500, o Brasil foi “descoberto” – ou violentamente roubado da população nativa? – e, pouco depois, o território começou a ser moldado de acordo com as vontades e necessidades de seus “novos donos”. Na época, a demanda por mão-de-obra aumentava cada vez mais. Estimativas afirmam que, em trezentos anos de escravidão, mais de 4 milhões de pessoas negras foram retiradas forçadamente do continente africano e trazidas para cá.

Algum tempo atrás, dei uma folheada no livro “Do reclame à comunicação – A pequena história da propaganda no Brasil”, de Ricardo Ramos, e vi anúncios nos classificados de jornais do período da escravidão com pessoas negras sendo vendidas como produtos mesmo: “bons dentes e forte”, “troco escravo por isso e aquilo”, “empresto ama-de-leite”, etc. Horrível demais – embora, infelizmente, não seja nenhuma surpresa. Um pouco de estudo ou uma simples conversa com pessoas que tem antepassados que foram escravizados nos mostra como era pesada, violenta e desumana a realidade da população negra aqui no Brasil – e ainda é, só que de outras formas. O racismo institucional, a discriminação, o difícil acesso a educação formal e a mecanismos de ascensão social e econômica, a exploração da força de trabalho e o extermínio de negros e negras nos mostra que a nossa sociedade ainda carrega uma herança sombria desse passado não muito distante. Vale ressaltar que as mulheres eram – e ainda são – tratadas como objetos sexuais e estupradas de forma repetida.

Além de tudo isso, os africanos não podiam praticar suas próprias religiões e rituais, mas isso não os impediu de manter a cultura africana viva aqui no Brasil. As pessoas escravizadas resistiam, e além das fugas, dos embates e tantos outros acontecimentos, a perpetuação da própria cultura foi também uma forma de resistência. Podemos ver que é possível conectar muito do que aconteceu no passado com a nossa história atual: praticantes de religiões de matriz afro-brasileira, como o Candomblé, são constantemente perseguidos e têm seus terreiros atacados, enquanto igrejas Evangélicas ou Católicas são vistas como os lugares “corretos” para se expressar religiosamente.

Em 1888, foi instituída a Lei Áurea, que previa a extinção da escravidão no Brasil. Ela foi precedida pela Lei do Ventre Livre (1871) e pela Lei dos Sexagenários (1885), que, respectivamente, davam liberdade a filhos de pessoas negras escravizadas e libertava quem tivesse mais de 65 anos. Nada disso aconteceu porque os brancos ficaram bonzinhos de uma hora para a outra e decidiram “libertar” quem estava sendo escravizado, ok? Isso tem muito mais a ver com fatores econômicos: ex-escravos se tornariam um novo mercado consumidor e não dariam mais “prejuízo” por morar “de graça” na casa dos patrões, por exemplo.

No entanto, paralelamente a tais medidas, não existiu o planejamento de ações que qualificassem e incluíssem essa nova classe trabalhadora dentro da sociedade. De escravizados, os negros e negras libertos tornaram-se força de trabalho barata. Quem continuava em vantagem eram os ex-escravocratas, enquanto ex-escravos encontravam-se sem instrução, renumeração justa ou acesso a bens e serviços. Outro agravante à condição da população negra era uma visão institucionalmente racista por parte da sociedade e governo da época (que permanece até hoje), que passou a estimular a vinda de imigrantes europeus para o Brasil, com o intuito de “embranquecer” a população (as teorias eugenistas eram, inclusive, socialmente aceitas e aplicadas). Ao contrário dos africanos, eles receberam incentivos e não foram trazidos à força. Esses imigrantes trabalharam bastante, sim, mas ainda que pudessem se encontrar em situação precária, tiveram acesso a recursos e terras, entre outros benefícios que nunca foram concedidos à população negra. Aliás, por um certo período, foi proibida a entrada de mais negros e também de asiáticos no país.

De acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 82 milhões, dos cerca de 200 milhões de habitantes do Brasil, se declararam pardos e 15 milhões, negros. Em comparação com o Censo de 2000, houve aumento na autodeclaração negra e parda no país. Dados da Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios (Pnad) de 2013 mostram que, em dez anos, a população autodeclarada preta no país cresceu e passou de 5,9% do total de brasileiros em 2004 para 8% em 2013. Além dos pretos, cresceu também o número de pessoas autodeclaradas pardas. Ainda de acordo com o Censo de 2010, existe grande diferença entre população negra e branca no que diz respeito ao acesso a educação: entre pessoas de 15 a 24 anos que frequentavam o nível superior, por exemplo 31,1% dos estudantes eram brancos, 12,8% negros e 13,4% pardos. Foram encontradas diferenças salariais também (sendo a população branca a que recebe mais), entre outras.

Leia também: “A história da escravidão negra no Brasil”.

E por que estou falando tudo isso?

Se você acha que não vivemos em um país racista (ou melhor, em um mundo), isso já é racismo. O período da escravidão passou, mas as consequências da época continuam vivas em nossa sociedade. Acreditar em mérito quando o próprio destino já está traçado de forma positiva é fácil. Quem tem a pele branca geralmente tem muito mais chances de frequentar escola, universidade, de ter o que comer, o que vestir, de ver a própria cara representada em produtos midiáticos como sinônimo do sucesso e com mais nuances de personalidade, entre outras questões. É cruel afirmar que racismo não existe e cada um consegue o que quiser se trabalhar para isso, porque não é bem assim. Isso é naturalizar as diferenças, como se elas não tivessem sido geradas por sistemas políticos e sim pela capacidade de cada indivíduo.

É correto afirmar que uma pessoa negra que não veio de uma família que acumula bens há gerações, por exemplo, e que precisou trabalhar em empregos exploradores a vida inteira para sobreviver (o que tirou o tempo de estudo e lazer), além de ter tido a autoestima abalada constantemente por comentários racistas e perdido oportunidades por conta de discriminação não passou no vestibular ou não conseguiu um emprego melhor porque “não conseguiu”? Eu considero que essa pessoa sequer teve a chance de tentar.

Claro que existe quem consiga ultrapassar barreiras que pareciam antes intransponíveis, mas em uma sociedade justa não deveriam ter grupos com enormes obstáculos para vencer, enquanto outros sequer precisam pular um degrauzinho. E por isso é importante revisitarmos nossa própria história, para que a gente não caia no conto de que a vida é feita de indivíduos escolhendo viver como querem e sofrendo as consequências disso. Na real, nem sempre existem escolhas, apenas imposições que são fruto justamente de acontecimentos anteriores vividos por um mesmo grupo.

Estou tratando de assuntos básicos nesse texto porque acho importante lembrar, nessa data de hoje, um pouco das condições que criaram os abismos sociais, econômicos e raciais que temos hoje em nosso país. No último dia 18, aconteceu a Marcha das Mulheres Negras aqui em Brasília (DF), e ficou evidente a vontade de alguns em manter esses abismos: elas foram ameaçadas e atacadas com bombas e tiros por membros daquele acampamento bizarro – praticamente uma milícia – que está montado ali na frente do Congresso já faz um tempão (e que, finalmente, está sendo “convidado a se retirar”, digamos assim).

Além da violência a que essas mulheres foram expostas, acredito que tais atos buscaram tirar o foco dos temas relacionados à elas. Leiam o texto “Mulheres negras em marcha: racistas não passarão!”, de Carmela Zigoni, em que ela informa melhor sobre como foi o dia e destaca as pautas importantes do movimento (e cliquem aqui e aqui para ver fotos maravilhosas dessas guerreiras).

“A Marcha das Mulheres Negras de 2015 defende diversas pautas, dentre estas, o fim do femicídio de mulheres negras, o fim do racismo e do sexismo nos veículos de comunicação e no ambiente de trabalho, a titulação e garantia das terras quilombolas, especialmente em nome das mulheres negras, o fim do desrespeito religioso e a garantia da reprodução cultural de práticas ancestrais de matriz africana. Aqui você encontra o manifesto da marcha com as reivindicações na íntegra” (via página do Ministério da Cultura no Facebook). 

As negras passam por situações específicas relacionadas à aparência, afetividade, oportunidade de estudo e emprego. Muitas vezes, o feminismo, por exemplo, homogeniza as questões das mulheres como se todas estivessem partindo de um mesmo local, com as mesmas experiências (no dia 20 de novembro do ano passado, postei um texto da Sueli Carneiro que fala sobre essa questão: “Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”). Portanto, vamos aproveitar o dia de hoje para refletir as raízes históricas da desigualdade racial em nosso país. Como eu já disse no texto sobre o filme “Que horas ela volta?”, nenhuma pessoa é naturalmente inferior. Chega de racismo e misoginia tentando minar a autonomia e a garantia de direitos das mulheres negras brasileiras.

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Foto por Janine Moraes durante a Marcha das Mulheres Negras de 2015

LEIAM MULHERES NEGRAS:

À Margem do FeminismoBelezas de KiandaBlogueiras Negras; Cidinha da SilvaFavela Potente; Geledés – Instituto da Mulher NegraGorda e Sapatão; Eu, Mulher Preta; Identidade Negra; Mônica Aguiar SouzaMulher Negra & CiaNegra Solidão; Poema Preta; População Negra e SaúdePreta ‘Dotora’Preta & Gorda; Preta MaternaServiço de Preta.

Fiquem à vontade para deixar mais dicas nos comentários! :}

P.S: Em 2009, fiz o curso de extensão “Pensamento Negro Contemporâneo”, na Universidade de Brasília (UnB), com o professor Sales Augusto dos Santos. Foi excelente e meus olhos se abriram de forma que não tem mais volta. Por isso, bato novamente na tecla de que estudar e conhecer a história do nosso país é algo muito importante. E quem realmente entende de racismo é quem passa por ele, não é mesmo?

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VULVA LA REVOLUCIÓN!

Eu já pretendia falar sobre o VULVA LA REVOLUCIÓN! por aqui, mas a correria da vida acabou atrasando um pouco esse post. Muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, gente… No entanto, aqui estou, pronta pra contar como foi esse lindo dia. Pra quem não sabe, o VULVA LA REVOLUCIÓN! foi um encontro que rolou 26 de setembro e surgiu com o intuito de estreitar laços entre mulheres e celebrar o primeiro ano de existência aqui do blog – e também a nova e exclusiva identidade visual, criada pela artista brasiliense Nana Bittencourt, que foi também a responsável pela arte do evento. Ela é uma mina muito cuidadosa e talentosa em tudo o que faz, com uma sensibilidade incrível.

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O Espaço Criaticidade – um lugar novo em Brasília (DF), que nasceu com o objetivo de movimentar a cena independente local de artistas & arteiros – foi o escolhido para abrigar uma tarde de feirinha, bebidas, músicas, rodas de conversa, jogos e muito, muito amor femininja. Aproveitei a ocasião para recolher roupas e produtos de higiene pessoal para a Casa Abrigo do DF, e livros para entregar para a galera do Slam das Minas, que realizou atividades relacionadas à literatura e poesia na Colmeia, presídio feminino do DF. Muitas doações foram recebidas! Já entreguei os livros, e essa semana entrego o que vai para a Casa Abrigo.

Tinha algum tempo que eu queria fazer algo do tipo. Porém, quem já produziu qualquer tipo de evento sabe o trabalho que dá: durante o VULVA LA REVOLUCIÓN! foi preciso cuidar de divulgação, decoração, entrar em contato com as mulheres dispostas a participar da feirinha, realizar inscrições para as rodas de conversa, comprar materiais para preparar as atividades propostas, montar os jogos, elaborar playlists de música, conseguir som, conversar com umas pessoas ao vivo, ligar para outras, olhar mensagem no celular, nas redes sociais, responder perguntas, analisar gastos, tirar fotos, entre outras milhões de coisas. E um evento independente & feminista, nossa, é ainda mais difícil. Porque não tem fim lucrativo e nem apelo comercial, sexualizado, VIP, drinks, balada, noite, hype, etc.

De qualquer forma, deu tudo certo. Primeiro, porque já trabalhei com produção – e já produzi coisas minhas antes, como a festa ¡LAS LOCAS!, que coloca minas no front na produção, discotecagem, fotografia e músicas selecionadas. E segundo porque sou rodeada de amigas e amigos maravilhosos, que me ajudaram muito e se envolveram no processo de forma bastante ativa e interessada, respeitando e entendendo minha proposta (aliás, muito obrigada, amo vocês).

Rolaram duas rodas de conversa. A primeira foi “Ecofeminismo, saúde e menstruação”, que teve Ariadne Hamamoto como guia (a outra mediadora infelizmente ficou doente e não conseguiu ir). Ela é estudante de design na Universidade de Brasília (UnB), manja muito sobre ciclo menstrual, trabalha com encadernação e desenvolve o projeto Diário da Lua Vermelha (ou Diário Lunar-Menstrual), que serve pra gente registrar e acompanhar nosso ciclo menstrual e o ciclo da lua. A partir de anotações relacionadas às mudanças físicas, emocionais, mentais e energéticas do corpo, fica mais fácil perceber as quatro fases desse ciclo — a menstruação, a pré-ovulação, a ovulação e a pré-menstruação. “Nascemos em uma cultura que é baseada em ciclos solares e masculinos, que menospreza os ciclos femininos e lunares. O resgate da conexão com o ciclo menstrual é o resgate do poder feminino, é empoderamento sobre nosso corpo e nossa fertilidade, é honrar e fortalecer a nós mesmas e a todas as mulheres”, segundo as próprias palavras de Ariadne.

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Mulherada reunida ❤

A segunda roda, “Conversa sobre museus e feminismo”, foi orientada por Laurem Crossetti, que é daqui de Brasília mas atualmente mora em Portugal. Ela é formada em Artes Visuais pela UnB e é especialista em Arte e Cultura, mestre em Estudos Curatoriais e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado na Universidade do Porto. Laurem é também uma das idealizadoras do projeto Nós e o mundo, que reúne arte e literatura do Brasil e de Portugal (tem texto meu na série de cartões postais editada por eles, aliás. Entrem na lojinha do site pra ver – e comprar, heh). A conversa teve como base a seguinte pergunta: quais relações podem existir entre os museus e o feminismo?

Confesso que, embora os temas fossem muito atraentes, fiquei com medo de deixar minhas convidadas falando sozinhas. Será que as pessoas iriam querer bater papo no sábado ao invés de ficar em casa de pernas pro ar? Ainda mais com o calor que estava (e ainda está, socorro) fazendo em Brasília… Fui recebendo diversas inscrições por e-mail e me tranquilizando e, no dia, tudo correu bem. Ufa! Mulheres maravilhosas apareceram para contribuir e trocar ideia. Foi bonito demais, sério, fiquei emocionada. Na primeira roda, compartilhamos informações sobre nosso corpo, ciclo, saúde física e psicológica, anseios, angústias, felicidades, tristezas… Já na segunda, falamos de aspectos mais amplos, relacionados à representatividade, espaço e voz no mundo das artes.

Ambas montaram banquinha no evento, que contou também com a participação de mulheres dos quadrinhos, artes plásticas, cinema e artesanatos diversos. Tinha também gente vendendo coletor menstrual, docinho, tatuagem removível, adesivos e imãs com imagens feministas, etc. O foco principal foi no que é único, artístico, criativo e independente, porque apoiar o que é feito localmente é apoiar a economia local. E apoiar as mina é fortalecer as mina! Tive a oportunidade de conhecer não só um monte de gente legal, como também um monte de trabalho maneiro (nota mental: um dia preciso fazer uma compilação de trabalhos interessantes realizados por mulheres para divulgar aqui, a cada dia descubro algo novo). Até hoje tem gente entrando em contato comigo para mostrar ações, trabalhos, pedir sugestões, indicações… Aliás, o som do evento foi bem elogiado e acho que vou até tirar a poeira do meu perfil no 8tracks.

Durante o VULVA LA REVOLUCIÓN! rolaram brincadeiras também. Fizemos a PEPEKA MALUKA, uma vagina gigante com um buraquinho, pra acertar bolinhas coloridas dentro (a criançada adorou), e uma piñata literalmente escrota, para liberar as tensões causadas pelo sistema patriarcal, rsrs. QUEM NUNCA QUIS BATER EM UM SACO ESCROTAL COM UM TACO DE MADEIRA QUE ATIRE A PRIMEIRA PEDRA11!

PPK

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Em uma breve troca de e-mail com a galera da Universidade Livre Feminista, recebi uma dica importante: faltam relatos e sistematizações de experiências que incentivem atividades semelhantes. Por isso estou fazendo esse post aqui, ainda que uma semana depois do evento. Porque quero que mulheres & garotas que me leem saibam que é mais possível e viável do que parece organizar atividades coletivas e presenciais. Dá trabalho, mas vale a pena e é super divertido e enriquecedor. Mesmo nos meios alternativos ainda é raro termos a nossa voz colocada em primeiro lugar, até mesmo esses espaços acabam nos usando como isca, produto ou objeto de decoração. Então é muito importante que a gente se reúna e saiba o que a outra está fazendo, pensando, sentindo. Dessa forma, construímos redes de apoio, amizade e divulgação que passam a correr fora dos meios de ~broderagem~ e necessidade de aprovação masculina. E, olha, só posso dizer que a sensação de ver essas redes surgindo é tipo respirar ar fresco na praia depois de tanto tempo sufocada dentro de um quarto abafado.

Mas, para isso, é preciso também que a gente abandone vícios da socialização feminina, como a rivalidade e a implicância. Isso não significa todas nós temos que nos tornar melhores-amigas-para-sempre, e sim que precisamos começar a enxergar umas as outras com respeito e como seres humanas criativas, fazedoras e capazes, e não como “ain, aquela vaca que beijou o meu namorado em 1997” ou “a mina que usa o cabelo de um jeito estranho” ou “aquela que é metida pra caralho”, sei lá. Deixem os estereótipos rasos para as pessoas rasas, só o regime machista em que vivemos ganha com mulheres desunidas. O isolamento nos aliena de nossa própria condição de isoladas – e confinadas, vigiadas e controladas.

Se reunir fora da internet é fundamental. Não adianta só falar de representatividade, a gente precisa é construir essa representatividade nos espaços presenciais (e é ali, no olho no olho, que você vai descobrindo com quem pode contar). Ainda que um pequeno encontro possa parecer algo muito irrelevante, imaginem o peso de milhares de minas realizando pequenos encontros. Eu era apenas uma adolescente na primeira vez em que fui em um rolê de mulheres ouvir sobre assuntos específicos de nossas vivências e isso abriu muito os meus olhos. Eventos de certa forma pequenos, não em importância, mas talvez em alcance, causaram grandes mudanças em mim. Infelizmente já aconteceu de macho vir me dizer “ah, mas é só uma festa” ou “é só um rolê” quando o assunto era esse tipo de evento, mas eles não sabem o que é passar a vida inteira tendo que aturar o ponto de vista deles sobre nós até mesmo em lugares onde as coisas supostamente deveriam ser diferentes. FáCiL FaLaR, DiFíCiL SeR eU, ok? A vibe do VULVA LA REVOLUCIÓN! foi muito leve, agradável e acolhedora, graças a todo mundo que participou. Valeu demais, galera.

Mais fotos aqui.

Além de Facebook e Twitter, a Vulva Revolução agora também tem Instagram! 🙂